Os arqueólogos costumam debater qual o real significado das manchas de terra preta encontradas em sítios pré-históricos da Amazônia Central, um tipo de solo escuro que se destaca visualmente da monotonia marrom-amarelada característica das áreas de terra firme da região. Essa terra preta tem de duas a três vezes mais nutrientes do que o solo circundante, de baixa qualidade. É caracterizada pelo grande acúmulo de matéria orgânica e apresentam nutrientes como cálcio, magnésio, zinco, manganês, fósforo e carbono, além de restos de cerâmica pré-colombiana, artefatos líticos, carapaças de tartarugas e ossos. Em geral, cada mancha mede dois ou três hectares, mas calcula-se que a soma dessas manchas chegaria a 154.063 km² de terra preta na Amazônia, de acordo com artigo publicado no periódico Proceedings of the Royal Society B.
Para alguns pesquisadores, elas são um indicativo de que grupos indígenas pré-colombianos viveram por centenas ou até uns poucos milhares de anos em sociedades complexas e estruturadas, baseadas na agricultura sedentária e no manejo do ambiente, em meio à floresta. Esse solo teria, portanto, sua origem relacionada a povos ancestrais pré-colombianos e, por isso, chamada de TERRA PRETA INDÍGENA – TPI. Para outros, a existência desse tipo de terreno mais escuro, frequentemente recheado de fragmentos de peças de cerâmica, não é uma prova cabal de que houve ali um processo de ocupação humana antiga e prolongada antes do desembarque do conquistador europeu. Mas sobre uma questão, mais relacionada às ciências agrárias do que às humanidades, há consenso generalizado: a terra preta indígena é um oásis quase permanente de fertilidade numa zona recheada de solos pobres e incapazes de reter nutrientes por muito tempo. Estudo recente confirma que um componente importante dessa variante de solo é um vestígio inequívoco do estabelecimento de assentamentos humanos: as fezes dos índios.
Concentrações de um biomarcador associado à deposição de excrementos humanos no ambiente, o coprostanol (5ß-stanol), foram encontradas em amostras de terra preta oriundas de cinco sítios pré-históricos da Amazônia, de acordo com um artigo científico a ser publicado por uma equipe de pesquisadores do Brasil e da Alemanha na edição de junho da revista Journal of Archaeological Science. Quatro sítios estão localizados no Amazonas, a sudoeste de Manaus, numa faixa de terra firme na confluência entre os rios Negro e Solimões, e um se situa no Pará, a sudoeste de Santarém, no baixo Tapajós. “A rigor, o biomarcador também poderia indicar a presença de fezes de porcos domesticados”, afirma o engenheiro agrônomo Wenceslau Geraldes Teixeira, da Embrapa Solos, do Rio de Janeiro, um dos autores do trabalho. “Mas, como esse animal só foi introduzido na América do Sul depois da chegada dos europeus, descartamos essa possibilidade.” Todos os exemplares de terra preta analisados se formaram entre 500 e 2.500 anos atrás, antes da descoberta oficial do continente por Cristóvão Colombo.
Rica em minerais associados à fertilidade dos solos, a terra preta deve sua cor enegrecida à elevada presença em sua composição do chamado carbono pirogênico, uma forma estável de carvão aromático produzida pela combustão incompleta de biomassa. O modo de vida dos antigos índios da Amazônia – que queimavam os restos de animais consumidos, enterravam os mortos e depositavam lixo e excrementos nos arredores de suas comunidades – deve ter sido o responsável pela formação desse tipo de solo. “Estamos tentando entender a composição química da terra preta e descobrir qual aporte de material orgânico a mantém fértil até hoje”, afirma o arqueólogo Eduardo Góes Neves, da Universidade de São Paulo (USP), outro autor do estudo e coordenador de um projeto temático da FAPESP sobre a história pré-colonial da Amazônia. “Se tivermos sucesso nesse objetivo, talvez possamos aprender a melhorar a fertilidade em solos pobres e dar uma contribuição para uma agricultura tropical mais sustentável.” Pesquisadores consideram a terra preta indígena um dos solos mais férteis do mundo. Por isso, desde a década de 90, existem tentativas de reproduzir artificialmente as propriedades da TPI, mas os esforços ainda estão nos trabalhos iniciais.
Alguns especialistas acreditam que compostos presentes nas fezes humanas desempenham um papel importante na manutenção a longo prazo da fecundidade dessa variante do chão amazônico. Ao contrário dos empobrecidos latossolos típicos da Amazônia, a terra preta sofre pouca lixiviação, processo caracterizado pela perda de nutrientes devido à infiltração da água da chuva que “lava” o solo e lhe rouba os componentes químicos. “Os excrementos dão uma contribuição significativa para o conteúdo de nutrientes encontrados na terra preta, como nitrogênio e fósforo, e a ajudam a reciclar seus nutrientes”, afirma Bruno Glaser, da Universidade Martinho Lutero de Halle-Wittenberg, Alemanha, estudioso da biogeoquímica de solos e também coautor do artigo. “Nas sociedades modernas isso não ocorre mais, pois esses nutrientes são perdidos com a deposição do lodo de esgoto em reservatórios.” Na terra preta as fezes provavelmente se misturam ao solo devido à ação de minhocas, cupins, formigas e outros organismos.
Embora não costume ser diretamente apontado como um elemento capaz de conferir fertilidade ao solo, o carbono pirogênico parece conter uma conjunto único de fungos e bactérias, cuja sinergia pode estar relacionada à fertilidade da terra preta. Trabalhos feitos pela equipe da engenheira agrônoma Siu Mui Tsai, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da USP, em Piracicaba, mostram que a forma de carvão presente nesse tipo de solo abriga o DNA de até 3 mil espécies de microrganismos. “Essa biodiversidade é bem maior do que a encontrada em solos amazônicos vizinhos à terra preta”, afirma Siu. “Os índios não usavam produtos tóxicos e seu sistema estava em equilíbrio.” Ninguém sabe, no entanto, se os povos pré-colombianos criaram intencionalmente a terra preta, como forma de enriquecer o solo destinado à agricultura, ou se ela é uma mera decorrência acidental dos dejetos e do lixo produzidos por seu modo de vida.
Na sua maioria, as manchas de terra preta indígena têm uma idade entre 500 e 2.500 anos, mas alguns sítios foram datados em mais de 4.000 anos. Sua profundidade pode chegar a extraordinários 2 metros – sabe-se que são necessários dez anos de ocupação permanente e intensa para se produzir 1 cm de terra preta; portanto, dois metros equivaleriam a mais ou menos 2000 anos de ocupação ininterrupta. Outro dado importante é que as manchas de TPI encontram-se normalmente em áreas elevadas próximas a curvas de rio, lagos, igarapés e cachoeiras. Nas suas camadas mais profundas, foram encontrados urnas funerárias, algumas de sepultamento coletivo (mulheres e jovens junto com homens adultos).
“A ocorrência de milhares de sítios de TPI na Amazônia seria um forte indicador da existência de povoamentos permanentes, densos, hierarquizados e estáveis, a partir do quinto milênio AEP. Foram povos muito diferentes dos atuais, cujas práticas agrícolas e nomadismo não levam à formação de terras pretas”, de acordo com Evaristo E. Miranda.
Baseado em texto do NUPARQ – Núcleo de Pesquisa Arqueológica da UFRGS
Nenhum comentário:
Postar um comentário