A Constituição Federal do Brasil, de 1988, em seu artigo 231, reconheceu o direito e assegurou o respeito aos povos indígenas à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como o direito originário sobre as terras que ocupam tradicionalmente.
Tal conquista, foi fruto de uma coalisão entre movimento indígena e movimento de apoio ao índio, em 1987 mas que se estendeu por todo o processo da Assembléia Constituinte. A importância dessa união só pode ser devidamente avaliada dentro do contexto histórico em que foi gerada e formada. Como parte dessa compreensão, segue um texto de Manuela Carneiro da Cunha, de 1981, sob o título "Critérios de Indianidade ou Lição de Antropofagia".
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O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) vem manifestando há longos meses uma inquietação persistente, a de saber afinal "quem é e quem não é índio" (veja-se, por exemplo, a Folha de São Paulo, 17/9/1980), inquietação que culmina agora no anuncio de modificação de pelo menos dois artigos do Estatuto do Índio, um que define índios e comunidades indígenas e outro que especifica as condições necessárias para a emancipação. Não se trata, ao que parece, de um problema acadêmico, para o qual, aliás, a antropologia social tem respostas que veremos a seguir. Como a modificação anunciada permite resolver por decreto "quem é e quem não é", dado à Funai a iniciativa, até agora reservada aos interessados, de emancipar índios mesmo à sua revelia, vemos que não parece ser a curiosidade científica o móvel da pergunta. Esta indaga e não decreta. Trata-se, isso sim, segundo tudo indica, da tentativa de eliminar índios incômodos, artimanha em tudo análoga à do frade da anedota, quando, naquela sexta-feira em que devia se abster de carne, declarava ao suculento bife que cobiçava: "Eu te batizo carpa"... e comia-o em sã consciência.
O alvo mais imediato desse afã classificatório pare ser os líderes indígenas que estão aprendendo a percorrer os meandros da vida administrativa brasileira, agora ameaçados de serem declarados emancipados ex officio. A medida poderia acarretar até a proibição de entrarem em áreas indígenas, se continuarem incorrendo na ira do Executivo. Ou seja, os líderes poderiam ser separados de suas comunidades.
O que torna a ameça de modificação do Estatuto mais acintosa é ter sido ela anunciada logo depois do julgamento do Tribunal Federal de Recursos, autorizando a viagem do chefe xavante Mario Juruna, impedida pelo Ministério do Interior, num claro revide a essa manifestação de independência da Justiça. O procedimento, a bem dizer, não deveria surpreender: não é a primeira vez que se mudam as regras do jogo durante a partida.
A questão real, em tudo isso, é saber o que se pretende com a política indigenista. O Estatuto do Índio, seguindo a Convenção de Genebra, da qual o Brasil é signatário, fala em seu artigo primeiro em preservar as culturas indígenas e em integrar os índios, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Distingue-se, portanto, como o faz a Convenção de Genebra, entre a assimilação, que rechaça seu artigo 2º (2c) e a integração. Integração não pode, com efeito, ser entendida como assimilação, como uma dissolução na sociedade nacional, sem que o artigo 1º do Estatuto se torne uma contradição em termos. Integração significa, pois, darem-se às comunidades indígenas verdadeiros direitos de cidadania, o que certametne não se confunde com emancipação, enquanto grupos etnicamente distintos, ou seja, provê-los dos meios de fazerem ouvir sua voz e de defenderem adequadamente seus direitos em um sistema que, deixado a si mesmo, os destruiria: e isso é, teoricamente pelo menos, mais simples do que modificar uma lei. Trata-se - trocando em miúdos - de garantir as terras, as condições de saúde, de educação; de respeitar uma autonomia e as lideranças que possam surgir: lideranças que terão de conciliar uma base interna com o manejo de instituições nacionais e parecerão por isso mesmo bizarras, com um pé na aldeia e outro - por que não? - em tribunais internacionais.
Tudo isso parece longe das preocupações da presidência da Funai, mais interessada em "critérios de indianidade" que a livrassem de uns quantos índios "a mais". Esses critérios já estão consagrados na antropologia social e são aplicados na definição de qualquer grupo étnico. Entre eles, não figura o de "raça", entendida como uma subdivisão da espécie, que apresenta caracteres comuns hereditários, pois esta foi abandonada não só como critério de pertinência a grupos sociais, mas também como conceito científico. Raça não existe, embora exista uma continuidade histórica de grupos de origem pré-colombiana. Tampouco podem ser invocados critérios baseados em formas culturais que se mantivessem inalterados, pois isso seria contrário à natureza essencialmente dinâmica das culturas humanas: com efeito, qual o povo que pode exibir os mesmos traços culturais de seus antepassados? Partilharíamos nós os usos e a língua que aqui vigoravam há apenas cem anos? Na realidade, a antropologia social chegou à conclusão de que os grupos étnicos só podem ser caracterizados pela própria distinção que eles percebem entre eles próprios e os outros grupos com os quais interagem. Existem enquanto se consideram distintos, não importando se essa distinção se manifesta ou não em traços culturais. E, quanto ao critério individual de pertinência a tais grupos, ele depende tão somente de uma autoidentificação e do reconhecimento pelo grupo de que determinado indivíduo lhe pertence. Assim, o grupo pode aceitar ou recusar mestiços, pode adotar ou ostracizar pessoas, ou seja, ele dispõe de suas próprias regras de inclusão e exclusão.
Comunidades indígenas são pois aquelas que, tendo uma continuidade histórica com sociedades pré-colombianas, se consideram distintas da sociedade nacional. E índio é quem pertence a uma dessas comunidades indígenas e é por ela reconhecido. Parece simples. Só que se conserva às sociedades indígenas o direito soberano de decidir quem lhes pertence: em última análise, é esse direito que a Funai lhes quer retirar. Claro está que índio emancipado continua índio e, portanto, detentor de direitos históricos. Mas tal não parece ser a interpretação corrente da Funai, que lava as mãos de qualquer responsabilidade em relação aos índios emancipados.
Assestadas - como já dissemos - contra as incipientes lideranças indígenas, as modificações no Estatuto podem trazer malefícios adicionais: a emancipação leva, por caminhos que já foram amplamente discutidos em 1978, à exploração de terras das comunidades indígenas. Salta aos olhos, com efeito, que se trata de uma nova versão do famigerado decreto de regulamentação da emancipação, rechaçado pela opinião pública em 1978 e, em vista disso, engavetado. Desta vez, porém a versão é mais brutal: se o projeto do decreto era ilegal por contrariar o Estatuto do Índio, projeta-se agora alterar o próprio Estatuto, e conferem-se poderes discriminatórios a um tutor cuja identidade de interesses com seus tutelados snão é patente.
Na verdade, o que deveria estar claro é que a posição especial dos índios na sociedade brasileira lhes advém de seus direitos históricos nesta terra: direitos constantemente desrespeitados mas essenciais para sua defesa e para que tenham acesso verdadeiro a uma cidadania da qual não são os únicos excluídos. Direitos, portanto, e não privilégios, como alguns interpretam. Uma maneira de tratar a questão é fazer como o frade do apólogo: batizar os índios de emancipados... e comê-los.
Excelente texto. No entanto, seria muito importante que houvesse uma referência bibliográfica para nos auxiliar na devida citação do texto de Manuela Carneiro da Cunha.
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