domingo, 23 de fevereiro de 2014

A OCUPAÇÃO DO PANTANAL


Localizada na Bacia do Alto Paraguai, a planície do Pantanal é a maior área úmida contínua do planeta. Foi neste lugar que há 10 ou 11 mil anos – logo após o término do último período glacial, conhecido como Pleistoceno, e o início do período atual, o Holoceno – grupos humanos resolveram se isntalar. Se considerarmos as áreas serranas que circundam a região, a presença humana é ainda mais antiga. Esses homens e mulheres são exemplos de como se vivia no território que veio a se chamar, milênios depois, Brasil.

A partir do holoceno, o clima pantaneiro passou a ser mais quente e úmido em comparação com o clima mais seco e frio que predominara anteriormente. Pouco a pouco foi aparecendo uma expressiva biodiversidade, com várias espécies de plantas e animais, a grande maioria proveniente de biomas vizinhos, como o Cerrado e a Amazônia. A região passou ainda a contar com uma sazonalidade marcante, caracterizada por episódios anais de cheia e seca, chamada de pulso de inundação.

Os primeiros humanos que ali chegaram eram populações indígenas ou ameríndias. Seus antepassados mais longínquos vieram da Ásia para o continente americano, atravessando o Estreito de Bering. Na época, o nível do mar era cerca de 60 metros mais baixo em relação ao atual. Havia uma ponte de terra e gelo ligando a Sibéria, na Ásia, ao Alasca, na América do Norte. Depois passaram pela América Central e atingiram o centro da América do Sul. Esse processo de migração levou um tempo correspondente a dezenas de gerações de ameríndios.

A essas antigas populações não é possível atribuir o nome de qualquer povo indígena conhecido historicamente, embora seja possível fazer certas distinções, como a de seus padrões tecnológicos. Os primeiros habitantes encontraram na região condições ecológicas favoráveis à sua reprodução biológica e sociocultural. Estabeleceram moradias em assentamentos localizados às margens de grandes rios, como o Paraguai. Davam preferência a locais de topografia elevada e protegida das enchentes anuais. Viviam em famílias extensas, em pequenas comunidades estruturadas em redes de parentesco formadas por pais, filhos, tios, avós e bisavós. Sua economia de subsistência dependia especialmente da pesca, da caça e da coleta. Daí o nome com que são conhecidos na arqueologia: pescadores-caçadores-coletores.

Para uma economia assim, as comunidades desenvolveram uma tecnologia voltada à produção de artefatos de madeira, osso, concha de molusco e pedra (rochas e minerais). Também possuíam conhecimentos apurados sobre os ecossistemas regionais, incluindo o comportamento dos animais, os locais de obtenção de matéria-prima para a produção de acultura material, as variações climáticas e as áreas onde coletavam plantas de valor alimentício e medicinal.

Entre 8,4 e 8,1 mil anos atrás, um grupo de pescadores-caçadores-coletores estava estabelecido à margem direita do rio Paraguai, precisamente na escarpa calcária sobre a qual foi fundada, na segunda metade do século XVIII, a cidade sul-mato-grossense de Ladário. As pesquisas arqueológicas realizadas no local comprovam que a pesca de pequenos peixes, a coleta de caramujos aquáticos e a caça de jacarés e capivaras compunham parte do total de proteína animal consumida por eles. Esta população se caracterizava pela fabricação e pelo uso de artefatos lascados e polidos feitos principalmente de quartzo e calcário.

Os três milênios seguintes – entre 8,1 e 5 mil anos atrás – ainda são puco conhecidos pelos arqueólogos. Essa lacuna, a grosso modo, corresponde a um fenômeno conhecido como “ótimo climático”, quando as temperaturas quentes e a umidade regional atingiram seu ponto máximo após o fim da última glaciação.

A partir de 5 ou 4,5 mil anos atrás houve a intensificação da ocupação indígena na região. Trata-se da presença de grupos que construíram muitas estruturas monticulares conhecidas na arqueologia como aterros, montículos, cerritos ou mounds. Paulatinamente, passaram a se organizar em comunidades maiores e mais complexas do ponto de vista socioeconômico e político, as tribos, contando com dezenas ou centenas de indivíduos. Nelas, a diferenciação social tendia a aumentar, bem como a concentração de poderes nas mãos de pessoas capazes de liderá-las.

Os aterros são verdadeiras obras de engenharia. Constituem elevações elípticas do terreno, totais ou parcialmente construídas pelos indígenas, em geral em forma subcircular. Em suas camadas arqueológicas aparecem restos de alimentação humana (conchas de caramujos, ossos de peixes, etc) e artefatos diversos (lâminas líticas de machado, pontas de flechas feitas de osso, fragmentos de vasilhas cerâmicas, etc.). em alguns casos foram encontrados esqueletos humanos nesses locais, cujos sepultamentos atestam uma diversidade em termos de práticas mortuárias. Nos campos de savana, os aterros apresentam-se como ilhas de vegetação. Sua construção requereu o uso de conhecimentos arquitetônicos complexos e a organização do trabalho social, além de fatores ideológicos, relações de poder e estratégias de territorialidade. Os últimos índios que construíram aterros no Pantanal foram os canoeiros guatós. Alguns de seus anciãos chegaram mesmo a morar em montículos desse tipo entre a primeira metade do século XX e a década de 1970.

Do limiar do milênio anterior ao início da Era Cristã teve início a formação de um rico mosaico sociocultural nesta porção central da América do Sul. Foi constituído por povos canoeiros pescadores-caçadores-coletores que lá estavam estabelecidos, além dos povos agricultores de origem amazônica que migraram para a região. Entre os primeiros ocupantes houve a incorporação, anterior a 3 mil anos atrás, de elementos cerâmicos relacionados a distintos estilos tecnológicos e a diferentes etnias. Seu padrão tecnológico ceramista está caracterizado pela fabricação de panelas, tigelas e moringas pequenas, feitas pela técnica da sobreposição de roletes de argila seguida da queima do vasilhame. Geralmente possuem capacidade volumétrica inferior a 4 litros. Eram utilizadas para produzir, armazenar e servir alimentos sólidos e líquidos por pequenas famílias pertencentes a uma comunidade maior, constituída por redes de relações sociais. Em alguns sítios foram encontrados cachimbos e rodelas de fuso e artefato usado para fiar fibras vegetais, o que denota o cultivo ou o uso de plantas domesticadas, como o algodão e o fumo, entre grupos indígenas.

Os povos oriundos da Amazônia, conhecidos no período colonial, seriam os antigos índios XARAY ou XARAYES e ITATINS. Eram agricultores que produziam grandes vasilhas cerâmicas, às vezes com capacidade volumétrica superior a 100 litros, tinham uma indústria lítica mais apurada, assentamentos em locais de solos férteis e uma complexidade social que sugere a existência de chefes ou caciques.

Associados aos antigos grupos que construíram ou ocuparam aterros, também há sítios com grande quantidade de grafismos rupestres (inscrições e pinturas). Neles se encontram figuras geométricas, como círculos concêntricos, figuras antropomorfas, a exemplo de pegadas humanas, e figuras zoomorfas de mamíferos e serpentes, além de pegadas de aves e felinos.

Na porção meridional da região, onde o Pantanal se funde e se confunde como Chaco (porção pantaneira do Paraguai), foi encontrada outra tradição tecnológica ceramista, que deve ter sido produzida a partir do segundo milênio da Era Cristã. Suas características tecnológicas lembram a cerâmica dos atuais índios KADIWEUS que vivem em Mato Grosso do Sul.

Em tempos coloniais, muitos povos indígenas se estabeleceram na região. Nas terras altas (serras, morros isolados, terraços fluviais, etc.), havia aldeias de povos linguisticamente aruák e guarani. Nas terras baixas (áreas inundáveis), era marcante a presença de povos canoeiros , como os GUATÓS, os GUASARAPOS e os PAYAGUAS, dentre outros. Nessa época, o Pantanal já era uma área de grande diversidade étnica e cultural, com dezenas de povos cultural e linguisticamente distintos, falantes de línguas vinculadas às famílias lingüísticas aruák, guaikuru, guató, jê e zamuco.

Com o advento da conquista ibérica, a partir do século XVI, vários povos sofreram abruptos processos de desterritorialização e depopulação promovidos por espanhóis, portugueses e seus aliados. Guerras e epidemais foram decisivas para isso. Mas muitos povos, como os atuais BORORO, GUATÓ, KADIWEU e TERENA, resistiram e conseguiram sobreviver. Eles representam tradições antiqüíssimas e modos de viver diversos dos praticados hoje em dia, tendo também contribuído para constituir o atual Brasil.


Texto de Jorge Eremites de Oliveira

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