Localizada na Bacia do Alto Paraguai, a
planície do Pantanal é a maior área úmida contínua do planeta. Foi neste lugar
que há 10 ou 11 mil anos – logo após o término do último período glacial,
conhecido como Pleistoceno, e o início do período atual, o Holoceno – grupos humanos
resolveram se isntalar. Se considerarmos as áreas serranas que circundam a
região, a presença humana é ainda mais antiga. Esses homens e mulheres são
exemplos de como se vivia no território que veio a se chamar, milênios depois,
Brasil.
A partir do holoceno, o clima pantaneiro
passou a ser mais quente e úmido em comparação com o clima mais seco e frio que
predominara anteriormente. Pouco a pouco foi aparecendo uma expressiva
biodiversidade, com várias espécies de plantas e animais, a grande maioria
proveniente de biomas vizinhos, como o Cerrado e a Amazônia. A região passou
ainda a contar com uma sazonalidade marcante, caracterizada por episódios anais
de cheia e seca, chamada de pulso de inundação.
Os primeiros humanos que ali chegaram
eram populações indígenas ou ameríndias. Seus antepassados mais longínquos
vieram da Ásia para o continente americano, atravessando o Estreito de Bering. Na
época, o nível do mar era cerca de 60 metros mais baixo em relação ao atual. Havia
uma ponte de terra e gelo ligando a Sibéria, na Ásia, ao Alasca, na América do
Norte. Depois passaram pela América Central e atingiram o centro da América do
Sul. Esse processo de migração levou um tempo correspondente a dezenas de
gerações de ameríndios.
A essas antigas populações não é
possível atribuir o nome de qualquer povo indígena conhecido historicamente,
embora seja possível fazer certas distinções, como a de seus padrões tecnológicos.
Os primeiros habitantes encontraram na região condições ecológicas favoráveis à
sua reprodução biológica e sociocultural. Estabeleceram moradias em
assentamentos localizados às margens de grandes rios, como o Paraguai. Davam preferência
a locais de topografia elevada e protegida das enchentes anuais. Viviam em
famílias extensas, em pequenas comunidades estruturadas em redes de parentesco
formadas por pais, filhos, tios, avós e bisavós. Sua economia de subsistência
dependia especialmente da pesca, da caça e da coleta. Daí o nome com que são
conhecidos na arqueologia: pescadores-caçadores-coletores.
Para uma economia assim, as comunidades
desenvolveram uma tecnologia voltada à produção de artefatos de madeira, osso,
concha de molusco e pedra (rochas e minerais). Também possuíam conhecimentos
apurados sobre os ecossistemas regionais, incluindo o comportamento dos
animais, os locais de obtenção de matéria-prima para a produção de acultura
material, as variações climáticas e as áreas onde coletavam plantas de valor
alimentício e medicinal.
Entre 8,4 e 8,1 mil anos atrás, um grupo
de pescadores-caçadores-coletores estava estabelecido à margem direita do rio
Paraguai, precisamente na escarpa calcária sobre a qual foi fundada, na segunda
metade do século XVIII, a cidade sul-mato-grossense de Ladário. As pesquisas
arqueológicas realizadas no local comprovam que a pesca de pequenos peixes, a
coleta de caramujos aquáticos e a caça de jacarés e capivaras compunham parte
do total de proteína animal consumida por eles. Esta população se caracterizava
pela fabricação e pelo uso de artefatos lascados e polidos feitos
principalmente de quartzo e calcário.
Os três milênios seguintes – entre 8,1 e
5 mil anos atrás – ainda são puco conhecidos pelos arqueólogos. Essa lacuna, a
grosso modo, corresponde a um fenômeno conhecido como “ótimo climático”, quando
as temperaturas quentes e a umidade regional atingiram seu ponto máximo após o
fim da última glaciação.
A partir de 5 ou 4,5 mil anos atrás
houve a intensificação da ocupação indígena na região. Trata-se da presença de
grupos que construíram muitas estruturas monticulares conhecidas na arqueologia
como aterros, montículos, cerritos ou mounds.
Paulatinamente, passaram a se organizar em comunidades maiores e mais complexas
do ponto de vista socioeconômico e político, as tribos, contando com dezenas ou
centenas de indivíduos. Nelas, a diferenciação social tendia a aumentar, bem
como a concentração de poderes nas mãos de pessoas capazes de liderá-las.
Os aterros são verdadeiras obras de
engenharia. Constituem elevações elípticas do terreno, totais ou parcialmente
construídas pelos indígenas, em geral em forma subcircular. Em suas camadas
arqueológicas aparecem restos de alimentação humana (conchas de caramujos,
ossos de peixes, etc) e artefatos diversos (lâminas líticas de machado, pontas
de flechas feitas de osso, fragmentos de vasilhas cerâmicas, etc.). em alguns
casos foram encontrados esqueletos humanos nesses locais, cujos sepultamentos
atestam uma diversidade em termos de práticas mortuárias. Nos campos de savana,
os aterros apresentam-se como ilhas de vegetação. Sua construção requereu o uso
de conhecimentos arquitetônicos complexos e a organização do trabalho social,
além de fatores ideológicos, relações de poder e estratégias de
territorialidade. Os últimos índios que construíram aterros no Pantanal foram
os canoeiros guatós. Alguns de seus anciãos chegaram mesmo a morar em
montículos desse tipo entre a primeira metade do século XX e a década de 1970.
Do limiar do milênio anterior ao início
da Era Cristã teve início a formação de um rico mosaico sociocultural nesta
porção central da América do Sul. Foi constituído por povos canoeiros pescadores-caçadores-coletores
que lá estavam estabelecidos, além dos povos agricultores de origem amazônica
que migraram para a região. Entre os primeiros ocupantes houve a incorporação,
anterior a 3 mil anos atrás, de elementos cerâmicos relacionados a distintos
estilos tecnológicos e a diferentes etnias. Seu padrão tecnológico ceramista
está caracterizado pela fabricação de panelas, tigelas e moringas pequenas,
feitas pela técnica da sobreposição de roletes de argila seguida da queima do
vasilhame. Geralmente possuem capacidade volumétrica inferior a 4 litros. Eram utilizadas
para produzir, armazenar e servir alimentos sólidos e líquidos por pequenas
famílias pertencentes a uma comunidade maior, constituída por redes de relações
sociais. Em alguns sítios foram encontrados cachimbos e rodelas de fuso e
artefato usado para fiar fibras vegetais, o que denota o cultivo ou o uso de
plantas domesticadas, como o algodão e o fumo, entre grupos indígenas.
Os povos oriundos da Amazônia,
conhecidos no período colonial, seriam os antigos índios XARAY ou XARAYES e
ITATINS. Eram agricultores que produziam grandes vasilhas cerâmicas, às vezes
com capacidade volumétrica superior a 100 litros, tinham uma indústria lítica
mais apurada, assentamentos em locais de solos férteis e uma complexidade
social que sugere a existência de chefes ou caciques.
Associados aos antigos grupos que
construíram ou ocuparam aterros, também há sítios com grande quantidade de
grafismos rupestres (inscrições e pinturas). Neles se encontram figuras geométricas,
como círculos concêntricos, figuras antropomorfas, a exemplo de pegadas
humanas, e figuras zoomorfas de mamíferos e serpentes, além de pegadas de aves
e felinos.
Na porção meridional da região, onde o
Pantanal se funde e se confunde como Chaco (porção pantaneira do Paraguai), foi
encontrada outra tradição tecnológica ceramista, que deve ter sido produzida a
partir do segundo milênio da Era Cristã. Suas características tecnológicas
lembram a cerâmica dos atuais índios KADIWEUS que vivem em Mato Grosso do Sul.
Em tempos coloniais, muitos povos
indígenas se estabeleceram na região. Nas terras altas (serras, morros
isolados, terraços fluviais, etc.), havia aldeias de povos linguisticamente
aruák e guarani. Nas terras baixas (áreas inundáveis), era marcante a presença
de povos canoeiros , como os GUATÓS, os GUASARAPOS e os PAYAGUAS, dentre
outros. Nessa época, o Pantanal já era uma área de grande diversidade étnica e
cultural, com dezenas de povos cultural e linguisticamente distintos, falantes
de línguas vinculadas às famílias lingüísticas aruák, guaikuru, guató, jê e
zamuco.
Com o advento da conquista ibérica, a
partir do século XVI, vários povos sofreram abruptos processos de
desterritorialização e depopulação promovidos por espanhóis, portugueses e seus
aliados. Guerras e epidemais foram decisivas para isso. Mas muitos povos, como
os atuais BORORO, GUATÓ, KADIWEU e TERENA, resistiram e conseguiram sobreviver.
Eles representam tradições antiqüíssimas e modos de viver diversos dos praticados
hoje em dia, tendo também contribuído para constituir o atual Brasil.
Texto de Jorge Eremites de Oliveira
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