Para
compreender alguns dos fundamentos da prática jurídica Guarani é necessário ter
em vista a importância da mitologia no contexto das sociedades indígenas. Os
mitos definem e organizam constantemente as condutas, as idéias e os ideais das
pessoas de um dado grupo. Eles expressam uma forma de pensamento, de concepção
de mundo que é bastante diversa da nossa. Nesse sentido, os mitos expressam em
suas narrativas as categorias de pensamento de uma determinada cosmologia, de
modo que cada sociedade indígena possui sua própria teoria do mundo, a qual
estabelece o lugar preciso de todos os seres e da própria condição humana. O
mito é, portanto, o lugar da reflexão, pois trata de complexos problemas
filosóficos.
A
cosmologia enquanto concepção de mundo articula-se à vida social, e norteia a elaboração
de categorias de pensamento locais bem como de atributos da identidade pessoal
e coletiva. Ao dar sentido à experiência humana no mundo, a cosmologia também
estabelece o princípio da virtude, do delito e da justiça.
É
importante observar que os mitos têm muitas camadas de significação e no
contexto social que integram são repetidamente narrados ao longo de toda a vida
das pessoas. De acordo com o amadurecimento social e intelectual, as crianças e
os jovens vão desvelando para si os códigos da sociedade e da cultura que
partilham. E é dessa forma que a sensibilidade jurídica se estabelece, assim
como se institui o ideal de ser humano e de sociedade, a partir da cosmologia,
que explica, fundamenta e legitima as relações sociais.
A
mitologia guarani possui como figura de Deus principal o NHANDERUVUÇÚ (Nosso Grande Pai). De acordo com as narrativas
míticas, seu aparecimento é sublime, surge sem ser gerado: trazendo em seu
peito a luz resplandecente que iluminou seu trabalho da gênese, o Grande Pai se
descobre a si mesmo em meio às trevas e surge como o criador de todas as coisas.
Este é o Deus principal, não só por ser o grande criador, mas por representar
aquele que irá destruir o universo e toda a sua criação. Como conta a tradição
mítica, Nhanderuvuçú possui o poder da destruição. A desgraça e o mal são
controlados por ele, que aguarda o momento certo para permitir o cataclismo.
O
mal é representado pelos seres que Nhanderuvuçú mantêm em sua casa, nas trevas,
onde reina pacientemente enquanto decide quando será o fim. Na cumieira da casa
pende o Morcego Originário, que pode
devorar o sol se o Grande Pai assim o permitir; embaixo de sua rede permanece
deitado o feroz Jaguar Azul, que
aguarda o sinal para lançar sua fúria e destruir a humanidade; e na porta da
casa, uma grande serpente imóvel completa
o cenário. Todos esses seres imputam extremo temor ao povo Guarani, e apenas o
canto dos pajés faz com que Nhanderuvuçú mantenha o mal distante.
Exatamente
por isso o líder espiritual, Ñamandu
(o pajé), tem a posição social mais elevada, e seu papel no mundo religioso é
central para os Guarani. Dessa forma, sua autoridade deve ser respeitada ou o
próprio equilíbrio do cosmo pode ser rompido. A prática jurídica, nesse
sentido, liga-se visceralmente à figura do pajé, aquele que se comunica com os deuses.
É
importante destacar que dificilmente um Guarani não saberá contar os mitos de
sua sociedade. De acordo com Clastres, quase todos conhecem e sabem
narrar os mitos. Entretanto, apenas uma pequena parte das pessoas sabe se
comunicar com os Deuses compreendendo suas mensagens e proferindo as belas
palavras adequadas às divindades. Para a sociedade Guarani Mbyá, o juízo é uma
ferramenta da divindade, um mecanismo coletivo que conecta a dimensão terrena
com a sagrada. Tal sistema jurídico tem seus padrões definidos pelos mitos,
pelas crenças e pela religião que prescreve a aplicação das suas normas de
acordo com a necessidade da convivência social. Não há, nesse sentido, exclusão
de classes na participação da prática jurídica, assim como não há código de
leis escritas tal como existe entre nós.
A
inexistência de códigos escritos, entretanto, não representa o caos, ou
ausência de ordenamento. As regras e princípios morais se fazem presentes no
quotidiano próprio das aldeias, e são preservadas por meio dos mitos e
narrativas guardados e contados pelos mais velhos, que manifestam sua sabedoria
e memória. Uma interessante peculiaridade do estabelecimento dessas normas para
o convívio social entre os Guarani é que elas não estão escritas no papel, e
não permanecem gravadas apenas no código dos mitos e na memória simplesmente.
As normas estão dentro das pessoas, não são exteriores a elas. Todos aqueles que
receberam dos deuses um nome, integrando assim a comunidade dos eleitos,
guardam em si, por sua própria natureza, as regras fundamentais da vida
(Clastres, 1990).
Para
os Guarani Mbyá, um ato reprovado pela comunidade representa mais do que mero delito.
O que nós concebemos como crime, ato contrário ao ordenamento jurídico, para os
Guarani tem implicações cosmológicas; é muito mais graves que a violação de um
bem jurídico protegido, uma vez em que constitui desobediência ao princípio
religioso que ordena a própria sociedade, aos desígnios dos Deuses, aos
preceitos de Nhanderuvuçú. Por esse motivo, ocorre a inevitável contaminação de
toda a comunidade: os demônios das trevas invadem a aldeia e o mal se alastra;
os deuses precisam ter sua ira aplacada.
Nesse
contexto, o Direito é o que a religião delineou como sendo o necessário para
que se mantenha o equilíbrio das relações temporais em contraponto ao universo
sobrenatural. O objetivo da prática jurídica, para os Guarani, é evitar o
infortúnio e a desgraça maior, que recai sobre a comunidade, a mercê das
conseqüências funestas, que o desequilíbrio cosmológico provoca.
Restabelecer
a tempo a perigosa ruptura causada pela desonra ou transgressão da ordem instituída
é uma questão essencialmente espiritual – entretanto, em uma sociedade com práticas
norteadas pela cosmologia, diferentemente do que ocorre na concepção do Direito
estatal, que se afirma laico, o aspecto espiritual não é dissociado da
existência física. É compreensível, portanto, que o poder xamanístico constitua
a principal fonte de prestígio, e faça do pajé o tipo social mais culturalmente
valorizado entre os Guarani. Assim, no universo cosmológico
dessa sociedade, o herói mítico que representa a concepção do tipo ideal do ser
Guarani não se trata de um grande guerreiro, mas necessariamente de um grande
pajé, portador de poderes mágicos excepcionais. E nesse
sentido, as figuras mitológicas que se destacam em meio ao panteão guarani são os
gêmeos KOARAHY e JAHY. A vida dos dois é caracterizada
pela sucessão de aventuras que marcam o desenvolvimento da sociedade Guarani.
Nhanderuvuçú é o grande criador do mundo, mas foi papel dos gêmeos completar a
criação, elaborando seus detalhes e pormenores; além disso, toda a ação dos
gêmeos liga-se de forma imediata ao destino da humanidade.
Embora
apareçam sempre juntos nas histórias, apenas um dos gêmeos é filho de Nhanderuvuçú.
Trata-se de Koarahy, aquele que recebeu as insígnias de seu pai, quais sejam,
suas armas e objetos de pajelança, que usa para cumprir a tarefa designada pelo
criador: o governo do mundo, até o dia do cataclismo inevitável quando, Nhanderuvuçú
decidir libertar os seres abrigados em sua cabana, que espalharão o mal por
todos os lados.
A
vida pessoal e social dos Guarani desdobra-se sob o olhar dos Deuses. Nesse
sentido, é evidente a presença de elementos simbólicos e representações da
cosmologia Tupi-Guarani como fundamento do sistema jurídico próprio da
sociedade Guarani Mbyá. A figura dos deuses é primordial para se pensar o
sistema jurídico, uma vez em que para os Guarani a vida é o resultado de uma
existência imperfeita; este mundo propriamente dito é, para eles, imperfeito no
sentido espiritual, de modo que há o desejo de transcender a condição humana e
alcançar divinização. E a prática jurídica tem um papel importante no processo
de ajustamento dessa imperfeição.
Para
os Guarani, os delitos têm sua origem no sobrenatural, não sendo
necessariamente dependentes da vontade do indivíduo. Há uma convicção nisso, de
modo que a figura do ñamandu, o pajé, é central no processo de manutenção da
ordem. Sobretudo porque não se trata de uma ordem meramente social, de
convívio, e sim de uma ordem cósmica, acompanhada por Koarahy, aquele que cuida
da terra.
Diante
dos delitos menos graves, é o próprio chefe político que dirime o conflito,
assim que este emerge no tecido social. O castigo ou punição, em tais casos
podem ser trabalhos comunitários, mas dependendo do delito cometido, o que
ocorre é a mera censura pública. Por outro lado, no caso de delitos graves,
como o homicídio, por exemplo, o equilíbrio e a ordem cósmica são profundamente
abalados, colocando a aldeia em perigo: o evento significa que existem
espíritos malignos à espreita. Assim, enquanto para a sociedade hegemônica o
crime de homicídio é uma violação à ordem social e a subtração do direito de
viver de um determinado ser humano, dotado de dignidade, para a sociedade
Guarani tal ato é uma violação que compromete a integridade e existência de
toda uma comunidade, podendo inviabilizar a continuidade de suas práticas diárias.
Dessa forma, demanda a adoção de medidas mais severas que as aplicadas em
delitos menos graves; a mais alta instância do Direito Guarani deve ser
acionada: o ATY GUASSÚ (Grande
Assembléia), que corresponde a um ritual semelhante ao que os preceitos jurídicos
ocidentais definem como julgamento.
Em
razão de o ato transgressor afetar a todos, pois gera o desequilíbrio
cosmológico, a prática da jurisdição entre os Guarani Mbyá não é monopolizada
por um grupo especializado, mas exercida pela comunidade, no Aty Guassú, que
constitui, dessa forma, uma espécie de juízo holístico, ou jurisdição holística.
Essa
Grande Assembléia, o Aty Guassú, é composta pelas autoridades religiosas e políticas
de outras aldeias e por todos os integrantes da comunidade onde a ocorrência do
crime causou o desequilíbrio. Mas não se trata de uma assembléia qualquer, e
sim a mais importante das assembléias Guarani, pois representa um diálogo com
os Deuses. Com a detenção do acusado e a comunicação do fato às aldeias
vizinhas, dá-se inicio à Grande Assembléia, que terá sucessivas audiências, nas
quais serão pronunciados discursos imbuídos de conteúdos sagrados e fórmulas
rituais, em geral cantos que aludem aos valores comunitários e à forma de vida
correta. O acusado de praticar o homicídio ouve os discursos, amarrado e sem
comer e beber enquanto durar seu julgamento.
Durante
o Aty Guassú, os primeiros a falar são as maiores autoridades: o líder
religioso e o líder político, que não são interrompidos em hipótese alguma, bem
como não há limitação de tempo. É nesse momento que se pronunciam “As Belas
Palavras”, que são para os Guarani as
palavras que servem para se dirigir aos Deuses. Belas e agradáveis à audição
dos espíritos divinos, as falas sagradas, embriagantes por sua grandeza,
arrebatam a comunidade inteira através dos sacerdotes inspirados, que
repreendem o mal e reforçam a grandeza dos verdadeiros homens.
Trata-se
de um processo de purificação, purgação, pois se entende que naquele momento o
criminoso amarrado não é um Mbyá, e sim o espírito maligno, causador da morte
de um parente da aldeia. Por isso, sempre haverá uma pena, não há absolvição,
pois somente os deuses podem absolver o causador de uma ruptura. Às pessoas
cabe aplacar os deuses, para que o mal seja contido.
Durante
o ritual, ocorre a mediação entre o ato delituoso e o dano efetivamente
causado. As provas são organizadas e os atores envolvidos na trama, tanto as
testemunhas, quanto os familiares da vítima têm espaço para falar. O ritual é
um evento de extrema importância para o grupo, não em função do julgamento em
si, mas, sobretudo, pelo que representa para os Mbyá enquanto sociedade:
trata-se de um momento em que se procura recordar os valores da comunidade,
atualizando o pacto social que restabelece a unidade do grupo. A memória da tradição
é renovada ritualmente a fim de proteger e assegurar o cumprimento dos
rigorosos códigos morais, instituídos pelos deuses.
Ao
final do julgamento não se busca simplesmente apenar o causador do delito, e
sim extinguir o espírito maligno. A pena é secundária, a importância maior está
na personificação do mal. O que se quer é restabelecer o equilíbrio das
relações com o mundo dos ancestrais. Assim, mesmo no caso da pena capital, por
exemplo, é possível encontrar alternativa para seu cumprimento que não
necessariamente a morte física: trata-se do banimento. Com o banimento do convívio, que é a morte social da
pessoa, não se deseja com isso a vingança ou a compensação da dor em função da
perda, o que se pretende com tal sentença é abortar o mal maior que pode recair
sobre a comunidade.
Para
os Guarani, o desequilíbrio causado pelo delito só pode ser neutralizado se
forem seguidas as regras ditadas pelo Nhanderuvuçú, regras que são a origem sagrada
do Direito Guarani. Os procedimentos rituais e religiosos, ensinados pelo Grande
Pai após o primeiro desequilíbrio (narrado no mito dos Gêmeos), são o meio de
evitar e de aplacar esse desequilíbrio.
O
fundamento último do Direito Guarani são as regras e os procedimentos ditados
pelo Nhanderuvuçú, que são também a origem da religião. É a mitologia sagrada
que legitima o Aty Guassu, onde se lembrará a todos a verdadeira forma de
viver, assim como todas as regras jurídicas Guarani. Nesse sentido, durante o Aty Grassú fica demonstrada a combinação binária de
legalidade, que possui uma dupla fonte: a lei perfeita do Grande Pai e a cópia
imperfeita desta, que é a lei da comunidade.
Considerando
o contexto cultural dos Guarani Mbyá, compreende-se porque estes não vêem
sentido algum nos procedimentos jurídicos praticados pela sociedade ocidental.
Pois seja qual for a sentença dos brancos a um Mbyá, que tenha com seus atos
contaminado o seu povo, sua punição individual jamais será aceita pelos deuses:
o mal permanecerá à espreita. Apenas por meio do Aty Guassú o mal pode ser personificado,
punido e banido, restabelecendo o equilíbrio da aldeia.
O
sentido do Aty Guassú, além da resolução do próprio conflito instaurado, por
conta da desobediência de um dos membros do grupo, é, portanto, a reconciliação
da comunidade com os deuses ofendidos. Por essa razão é tão importante que os
procedimentos rituais e religiosos, ensinados pelo ñamandu, o líder espiritual,
sejam observados com rigor. Somente com os rituais de dança, canto e orações
preparatórias para o caminho expiatório é possível a reabilitação social do
grupo; a contaminação comum originada pelo delito é então expulsa ou purgada.
Baseado no texto de Maria
do Socorro Lacerda Lima e Estella Libardi de Souza
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