O
objetivo de todo Mbyá Guarani nessa “terra imperfeita” (yvy pyau) é alcançar o AGUYJE,
é tornar-se também uma divindade. Eles são descendentes dos deuses. Dentre
todos os seres que habitam a porção telúrica da yvy pyau, os Mbyá Guarani se consideram como “os escolhidos dos
deuses” (P.Clastres, 1990; H. Clastres, 1978). Escolhidos para também se
tornarem deuses. A divindade é uma possibilidade para os Mbyá Guarani, desde
que respeitem algumas regras cosmológicas, estabelecidas pelos deuses
exclusivamente para o aguyje Mbyá
Guarani. São uma série de regras que estão estreitamente interligadas, sendo eu
as mais elementares são as regras alimentares. Assim sendo, com as regras
interligadas, resulta que todas as regras para o aguyje estão direta ou indiretamente relacionadas à alimentação do
grupo. E, em sentido inverso, a partir da alimentação pode-se compreender toda
a organização sócio-cosmológica dos Mbyá Guarani.
O
caráter dual da alma Mbyá Guarani é consenso. Porém não se resume apenas à
alma, mas também ao corpo. Entre os Mbyá Guarani não se pode isolar os domínios
da natureza, da sociedade e da sobrenatureza. O mesmo se aplica na relação
corpo e alma: eles são construídos e operados em conjunto. Um define o outro. O
aguyje (a perfeição do ser) só é
alcançado se corpo e alma estiverem “perfeitos”, pois não é apenas a alma que
“vai” para a morada dos deuses; o corpo precisa “ir” junto.
Se
todos concordam com o caráter dual da alma Mbyá Guarani, não há consenso sobre
o número de almas que eles possuem. Esse número varia de informante para
informante, variando entre uma e quatro. Mas independente do número de almas
declaradas, sempre há ao menos uma alma de origem sagrada e outra de origem
telúrica. Os Mbyá Guarani costumam se referir às suas almas simplesmente como
“a alma”, talvez por uma alegoria didática, talvez porque efetivamente há
apenas uma alma, mas com duas porções distintas, uma telúrica e outra sagrada.
Em suma, em qualquer uma das configurações, os Mbyá Guarani sempre possuem
alma(s) híbrida(s) de natureza (telúrica) e de sobrenatureza (sagrada). E,
mesmo nesse foco reduzido, ambas as almas – ou ambas porções da alma – nunca
podem ser analisadas separadamente, posto que operam em um mesmo veículo, o
corpo. Neste caso, o corpo pode ser comparado a uma gangorra: quando a alma
sagrada “sobe”, a alma telúrica “baixa”. Não há condições para que ambas
“subam” ao mesmo tempo.
O
corpo é o veículo da(s) alma(s), é o seu habitat.
Mas, como tudo é “caminho” para os Mbyá Guarani, é possível afirmar que a(s)
alma(s) “circulam” pelo corpo dos indivíduos dessa etnia. E, de fato, se
“caminhar” é manter-se vivo (Pissolato, 2007), a(s) alma(s) precisam “circular”
pelo corpo para também se manterem vivas. Mas cada diferente alma – ou porção da
lama – possui o seu “caminho”. Ocorre que o corpo, por associação, também é
dividido em porções telúricas e sagradas. Agrupando as diferentes partes do
corpo humano, podemos estabelecer que o conjunto carne e sangue é o “caminho” da(s) alma(s) telúricas, enquanto o esqueleto é o “caminho” da(s) alma(s)
sagradas.
A
circulação da alma sagrada é que mantém o esqueleto e, consequentemente, os Mbyá
Guarani, eretos. Ela é a “alma-palavra” (Ferreira, 2001; H.Clastres, 1978),
somente “eretos” os Mbyá Guarani podem pronunciar palavras. É ela que mantém
“erguido o fluir do dizer” (Cadogan, 1997). O esqueleto e a fala são condições
da alma sagrada. Tanto a palavra quanto o andar ereto são distintivos dos Mbyá
Guarani frente aos animais. O Mbyá Guarani que não puder falar não poderá
andar, e vice-versa. A fala circula pelo esqueleto ereto. Qualquer um dos
sintomas – não andar e/ou não falar – é um sinal que a alma sagrada está
abandonando o corpo Mbyá Guarani, ou está sendo vencida pela alma telúrica.
Isso para o Mbyá Guarani significa a morte! Ou significa adentrar o domínio da
animalidade, posto que não falar e/ou não andar ereto é característico dos
animais.
A
perfeição do ser objetivada pelos Mbyá Guarani – que é o AGUYJE –, consiste em ampliar a porção sagrada do conjunto corpo e
alma e, com isso, diminuir a porção telúrica. Segundo Hélène Clastres (1978), o
aguyje é a aniquilação da má
natureza, restando apenas o esqueleto e a palavra nele contida. O aguyje é alcançado quando o conjunto
sagrado aumentar a ponto de “eliminar” o telúrico. A alma sagrada deve ser cem
por cento da alma dos Mbyá Guarani. A porção sagrada do corpo também, por
associação, precisa atingir a completude do corpo. O interessante é que a alma
sagrada “aumenta” e, com isso, ocupa o “lugar” da alma telúrica, mas no corpo
isso não ocorre, pois a porção sagrada não pode ocupar a telúrica. Assim, o
corpo precisa, obrigatoriamente, diminuir. Deve restar, quase, somente o
esqueleto. Em suma: no processo do aguyje,
o corpo diminui enquanto a alma aumenta – sempre no que tange as porções
sagradas.
Os
alimentos tradicionais proporcionam isso. Eles alimentam mais as porções
sagradas do que as telúricas. “Para os
Guarani, alimentar o corpo também significa alimentar a alma; não se alimenta
um sem alimentar o outro, não há, no pensamento mítico guarani, uma dicotomia,
uma oposição monolítica entre alma e corpo” (Carvalho, 2005).
A
magreza é, então, a condição do aguyje.
Somente com um corpo “leve” e “limpo” é que se pode ascender ao mundo
sobrenatural. Esse ascender, literalmente, significa que, com a perfeição, os Mbyá
Guarani podem “levitar” ou “flutuar” até a morada dos deuses. Isto ocorre com
eles ainda “vivos”, pois o aguyje
também pode ser considerado o vencimento da morte. O “leve” significa poder vencer
a gravidade; e o “limpo” significa “limpar” o corpo das porções telúricas
indesejadas. Nos dois casos, só se obtém êxito a partir do controle da
alimentação.
Ocorre
que o conjunto corpo-alma de um Mbyá Guarani nunca “é”, ele sempre “está”. Ele
“está” magro e/ou limpo. Os corpos e almas, sempre ambos na mesma direção, são
construídos e reconstruídos diariamente. É um processo longo em que cada dia se
“caminha” bem pouco. O que hoje pode estar mais “leve”, mais “limpo” e mais
“sagrado”, amanhã pode estar o contrário. Tudo depende da alimentação.
Para
atingir o aguyje, em primeiro lugar,
é preciso evitar os alimentos que possam levar á animalidade. Aliás, o que pode
levar à animalidade nem é considerado “alimento” pelos Mbyá Guarani, são tabus
alimentares. Em segundo lugar é preciso comer apenas alimentos tradicionais,
apenas orérembiú. Mas, dentre os alimentos tradicionais existem os que
são mais e os que são menos indicados para alcançar o aguyje. Tal qual o corpo humano, os Mbyá Guarani também classificam
seus alimentos em duas categorias: os do “esqueleto” e os da “carne-sangue”.
Grosso modo, os alimentos de origem vegetal são os do esqueleto. Também o mel,
o ixó, os peixes e o koxi fazem parte dessa categoria. As
carnes de caça e todos os alimentos de fora dos sistema culinário tradicional Mbyá
Guarani são considerados como da carne e do sangue. Mas, mesmo dentro dessas
categorias, existem hierarquias, sendo que alguns alimentos são melhores do que
outros para atingir o aguyje.
Os
alimentos mais indicados para aperfeiçoar corpos e almas são os que também são
os menos “temidos”, ou os menos complexos em relações recíprocas entre seres
dos diferentes domínios. Quanto maior a cadeia alimentar de uma comida – e/ou a
sua variedade de alimentação –, maiores são as relações recíprocas contidas
nela. É por isso que se alimentar de vegetais exige menos cuidados do que a
alimentação com carnes de caça. Na carne de caça estão contidas “marcas” dos
inúmeros já que propiciam a caça e de
outros já, donos de outros seres,
como as plantas, por exemplo, que proporcionam a vivência da caça em seu
habitat. Também na caça ficam as marcas dos alimentos, que também possuem já, que o animal come. Como para a
existência de cada alimento é preciso que haja reciprocidade entre vários já, no caso “dos alimentos dos
alimentos” (cadeia alimentar) este número de relações recíprocas é muito maior,
posto que a atuação dos seres é cumulativa. Temos, assim, que quanto mais já estiverem em uma comida, menos
indicada ela será para alcançar o aguyje.
Os
vegetais envolvem menos já, posto que
têm reduzidas possibilidades alimentares (terra, água, ar e sol). Os ixó, por exemplo, também são altamente
indicados para o aguyje. Eles se
alimentam unicamente da madeira da pindó. Eles só precisam da pindó para viver,
pois eles vivem dentro do tronco desta palmeira. Sendo assim, eles têm poucos já envolvidos na sua existência. Os Mbyá
Guarani se referem o ixó como o
alimento mais “limpo e puro” que pode existir. O mesmo vale para o pirapé, peixe que segundo os Mbyá
Guarani é o mais limpo de todos, pois ele come apenas o limo das pedras do
fundo dos rios.
(...) pirapé, ele é peixe muito boa. Ele
é considerado sagrado porque ele não come muita coisa. Prá nós é sagrado porque
criou deus, mas ele tem uma comida só. Por isso ele é sagrado. Ele não tem
dente, só boca. Por isso é sagrado. A gente se alimenta de tudo o que vem, ta
estragando o corpo. Se tem uma comida certa, tem saúde. Mas se come várias
coisas, não é alimento sagrado. Cada bicho sagrado tem um alimento só. Por isso
o alimento é muito bom. A carne é muito saudável. Não é contaminado. (Mbyá
Guarani, 2008)
Temos,
então, que quanto mais limitadas as opções de alimentação de um animal ou
vegetal, mais limpo ele será enquanto “comida”.
Mas
isso não se aplica apenas aos ingredientes em si, mas a todas as etapas que
resultam na elaboração de uma comida. Não é só o milho que deve ser o mais
limpo possível, mas também os pratos preparados a partir do milho, como o rorá, o mbojapé, o kagueji, etc.
Além
do ingrediente propriamente dito, também os pratos preparados com ele,
juntamente com outros ingredientes, possuem uma hierarquia no que diz respeito
à obtenção do aguyje. Na junção de
vários ingredientes podem haver mudanças na hierarquia. O milho pode ser o mais
recomendado para alcançar o aguyje,
mas um prato que misture milho com amendoim, em uma farofa (pixé), pode ser menos recomendado. Tudo
depende de quais os ingredientes que são misturados. O kagueji, por exemplo, pode ser feito de milho misturado com
batata-doce, e é considerado um dos alimentos mais indicados para a obtenção do
aguyje. No entanto, apesar desta
possibilidade, a grande maioria dos pratos da culinária Mbyá Guarani envolve
apenas um ingrediente, como por exemplo, rorá,
xipá, andai mimói, avaxi mbity, avaxi cuí, etc.
O
simples é que é o belo, que é o gostoso. Quanto mais simples, menos se
“modifica” a criação divina. Em suma, quanto mais simples, mais sagrado. Mas,
de simples mesmo é só o reduzido número de ingredientes. Câmara Cascudo,
falando dos “indígenas em geral”, observou que estes grupos não misturavam os
seus muitos ingredientes para a preparação de um único prato. Nas palavras do
autor, os indígenas “não cozinham os
alimentos conjuntos. Feijão é só feijão. Milho é só milho” (Cascudo, 1983).
Para o autor, isto representa uma limitação culinária dos indígenas que, ao não
misturarem ingredientes, perderiam de elaborar pratos melhores. Entretanto, no
caso dos Mbyá Guarani, o “melhor”, tanto em termos cosmológicos como de
paladar, é o simples, é o que possui apenas um ingrediente ou poucos
ingredientes.
Mas
de nenhuma maneira isso significa que os indígenas não possuam elaborações
culinárias com vários ingredientes ou que estas não sejam muito apreciadas.
Pelo contrário, existe uma infinidade de pratos com vários ingredientes.
Apenas, no cômputo geral, estes pratos são menos expressivos no que tange o
gosto e a busca do aguyje. De forma
nenhuma pode-se pensar que a ausência de pratos mais “elaborados” em termos de
ingredientes significa uma incapacidade culinária deste povo. A sua culinária
possui pratos muito elaborados, mesmo que com poucos ingredientes.
Mesmo
combinando poucos ingredientes, o ideal para os Mbyá Guarani é que haja
“mistura”. Aliás, arrisco afirmar que a mistura alimentar ocorre em todas as
sociedades indígenas. Basta lembrar que a farinha de mandioca (também a de
milho) é de origem indígena, sendo um dos emblemas culinários destes grupos.
Pois bem, como observou Roberto DaMatta (1984), a farinha de mandioca proporciona
as misturas, sendo por isso considerada como um alimento relacional. Ela serve
para unir em um único conjunto as diferentes comidas.
Os
Mbyá Guarani podem comer, sem nenhum problema, apenas jety mbijy (batata-doce assada) em uma refeição. Mas isso ocorre
somente em casos excepcionais, durante uma expedição à mata ou um período de
escassez. O ideal é sempre ter no mínimo dois “pratos” numa refeição (e nunca
mais de quatro pratos). Por exemplo: a jety
mbijy fica melhor se acompanhada por uma carne de caça. Ou o mbojapé é melhor se for regado com mel.
Ocorre que para os Mbyá Guarani comer apenas um alimento repetidas vezes – três
ou quatro refeições seguidas – leva ao aparecimento de vermes em seu sistema
digestivo. Com os vermes o ventre se avoluma e com isso a porção de carne e
sangue do corpo aumenta em relação ao esqueleto. Assim sendo, os vermes podem
ser fatais. O interessante é que os “alimentos’ preferidos para o aguyje são os que comem apenas um único
alimento, como o ixó e o pirapé. Mas se os Mbyá Guarani comem
apenas um alimento repetidas vezes, não atingirão o aguyje e ainda correrão o risco de se transformarem em animais. O
risco da animalidade está sempre presente quando são aumentadas as dimensões
corporais, pois um corpo muito pesado não pode ser suportado pelo esqueleto
que, então, perdendo sua condição de ereto, desapropria dos Mbyá Guarani a
condição de andarem eretos e falarem, condições delimitadoras da humanidade.
É
também por essa razão que os Mbyá Guarani comem com parcimônia. Eles comem
muito pouco em comparação ao volume alimentar da sociedade envolvente. Os
animais devem ser “gordos”, os humanos magros. Mais uma vez a comida e o
comedor se encontram em posições antagônicas. A “comida” deve se alimentar sem
misturas, enquanto os comedores precisam misturar comidas. A “comida” gorda é
apreciada, mas os comedores devem ser magros. Seria isso um embodiment ao contrário? Não, o “gordo”
da comida levará ao “gordo” do corpo. A chave de tudo está na quantidade
ingerida. Comer pouco é mais importante que comer muito dos alimentos
recomendados para o aguyje. O pouco
leva à divindade; o muito, à animalidade.
É
justamente na comunicação com a divindade que se deve ingerir poucos alimentos.
Os Mbyá Guarani realizam os seus ritos na opy
à noite. Os ritos consistem em uma comunicação com o mundo sobrenatural. Para
ter êxito nesta comunicação, os Mbyá Guarani afirmaram nunca comer nada à
noite. Jantar atrapalha. Ocorre que os ritos Mbyá Guarani sempre são
acompanhados de danças. Para poder dançar é preciso estar com o corpo leve. Já
Elizabeth Pissolato (2007) assinala como problema apenas o consumo de carne nas
refeições vespertinas, pois as carnes deixam os Mbyá Guarani cansados, os
impedindo de dançar a contento.
O
corpo “pesado” atrapalha a dança, mas também, ao contrário, a dança deixa o
corpo leve. Ela é um dos “antídotos” contra equívocos alimentares. Com o
exercício da dança são gastas as calorias ingeridas a mais. A dança também faz
o corpo suar. Juntamente com o suor são eliminadas as impurezas do corpo. O
suor é salgado e o salgado é “impuro”, enquanto o “doce” é puro. O suor limpa o
corpo, ele dessalga o corpo, deixa o corpo doce. Em suma, a dança limpa e dá
leveza ao corpo. A dança faz parte da alimentação Mbyá Guarani.
Outro
“antídoto” empregado pelos Mbyá Guarani para comer pouco é a caá, a erva-mate. Embora os Mbyá Guarani
considerem a caá um dos seus mais
importantes alimentos, ela, na realidade, constitui um anti-alimento. É o comer
para não-comer. Ela é ingerida em grande quantidade para que outras comidas
possam ser ingeridas em pequena quantidade. Ela ameniza a fome e o cansaço.
Ocorre que a erva-mate, também conhecida yerba,
contém carboidratos, proteínas, potássio, ferro, cálcio, vitaminas A, B2
e C. Também tem flavonóides que lhe dão a propriedade antioxidante.
A
preparação do caá é a primeira
atividade dos Mbyá Guarani após acordarem, ainda no koenjú. Seu consumo logo pela manhã é justificado porque os Mbyá
Guarani já acordam com fome, depois de terem se alimentado pouco – ou nada – e
dançarem algumas horas na opy, na
noite anterior. O seu consumo pela manhã retarda o consumo do “desjejum”,
fazendo também com que uma menor quantidade de alimentos seja ingerida nesta
ocasião. O consumo da caá também é um
momento de intensa sociabilidade entre os membros da unidade de comida. É pela
manhã, em torno da fogueira, quando a cuia de caá circula de mão em mão, que um grande grupo de indivíduos se
reúne para conversar, sobretudo sobre os sonhos que tiveram na noite anterior.
É interessante que durante o consumo da caá
pode-se conversar livremente, já na ingestão de qualquer outra comida os Mbyá
Guarani se mantém quietos.
A
caá é um dos itens que os Mbyá
Guarani mais sentem falta, pois além do efeito de amenizar a fome, ela propicia
alegrias, as conversas sempre são mais animadas quando uma cuia está em
circulação. Para os menores de doze ou treze anos não é recomendado o consumo
de caá, pois nessas idade elas
precisam comer para se desenvolver. Já para os adultos, a caá tem premência sobre os outros alimentos.
o
kagueji também é considerado um
alimento “antídoto” contra equívocos alimentares. Ele limpa o corpo, mantém e
proporciona à alma sagrada uma boa comunicação com as divindades. Por kageji compreende-se um conjunto de
bebidas tradicionais de uso ritual, que possui como ingrediente base o milho. Kageji é, então, uma designação
genérica. Ele pode ser tomado a qualquer momento do dia, na quantidade que o
consumidor desejar. O excesso de kagueji
não faz mal. Pelo contrário, quanto mais, melhor. A única regra que limita o
consumo é que o kagueji disponível
deve ser consumido de forma equivalente por todos os membros da unidade de
comida. Uma pessoa não pode tomar muito kagueji
de forma que não sobre para os demais. O kagueji
pode ser “forte” (fermentado, alcoólico) ou “fraco” (sem fermentação),
dependendo do tipo e do tempo de descanso entre a preparação e o consumo. Nas palavras
de um Mbyá Guarani: “Fica bêbado também. O
kagueji é nossa bebida. Deixa dois, três dias... já fortinho. Dá assim a mesma
coisa que bebida de álcool. (Mas) essa é natural” (Adorfo, 2005). Forte ou
fraco, todos os tipos de kagueji
podem ser bebidos por todos os indivíduos. Não há restrições nem para as
crianças, que adoram a bebida. “Pode
tomar todo o dia, ou se não de manhã, se não de meio dia ou de tarde. A hora
que quiser, né?” (Adorfo, 2005).
No
entanto, o kagueji deve ser consumido
nos contextos rituais, o que ocorre geralmente à noite dentro da opy. O seu consumo dá sensação de leveza
ao corpo, alterando de certa forma o estado de consciência. Ele propicia
felicidade aos bebedores, fazendo com que as rezas/danças na opy sejam melhor executadas. Combinando com
o consumo do tabaco, ele abre os canais de comunicação com os deuses, o que faz
dos xamãs os maiores consumidores da bebida. Não existe xamã sem kagueji. Por extensão – já que a
comunicação com os deuses proporciona os alimentos – não existe comida sem o kagueji. Ele é a principal de todas as
comidas, ele proporciona as outras comidas e ele alimenta apenas a parte
sagrada do conjunto corpo-alma dos Mbyá Guarani.
Grosso
modo, qualquer pessoa pode preparar o kagueji.
Inclusive os homens poderiam, porém, são sempre as mulheres que preparam. Mas,
dependendo do tipo de kagueji e da
sua finalidade ritual, o ideal é que seja preparado por pessoas de “corpo limpo”
e “respeitadas” na sociedade. Isso porque quem prepara o kagueji transmite suas características à bebida. Os kagueji consumidos no dia-a-dia, como “refresco”,
não precisam de muitos cuidados. Já os que serão consumidos na opy devem ser preparados por indivíduos
que estejam quanto mais “limpo” possível. Mulheres menstruadas, por exemplo,
não podem preparar o kagueji.
O
kagueji “mais poderoso” para o uso
ritual tem como ingrediente principal o milho verde. Os outros dois
ingredientes são a saliva e a água. O milho verde deve ser mastigado por
meninas novas (que ainda não menstruaram nem tiveram relações sexuais) e logo
depois cuspido em um coxo. A mastigação atribui saliva ao milho, que irá
promover a fermentação. Então é só esperar o período necessário a esta fermentação
para poder ser consumido. Este kagueji
fica bem “forte” e com os sabores realçados. Como observou Cascudo, “na diástase da saliva a ptialina transforma
o amido das raízes e dos frutos em maltose e dextrina, provocando a
sacarificação, resultante dos ácidos orgânicos sobre os açúcares” (Cascudo,
1937).
O
seu Adorfo é karaí (xamã), mas por
uma série de razões, a sua unidade de comida é bastante reduzida. Até outubro
de 2006 ele vivia apenas com sua esposa e dois netos. E, não havendo uma
menina, eles não tinham como produzir o kagueji
“mais poderoso”. Sendo seu Adorfo um karaí,
ele necessitava muito do consumo desse kagueji
para poder entrar em contato com o mundo sobrenatural. A solução para este
problema veio do estado do Espírito Santo: uma de suas netas, de apenas cinco anos,
foi designada para ir morar com o avô e mastigar o milho para o kagueji.
Há,
também, o kagueji guaxu, feito de milho
“seco” pilado bem fino e cozido brevemente. Este kagueji deve ser preparado com no mínimo um dia de antecedência ao
seu consumo, para poder fermentar. Ele fica “um pouquinho forte”. Em uma outra
variedade deste kagueji pode ser
misturado um pouco de milho “quebrado” (tipo canjica) ao cozimento. Em oposição
ao kagueji guaxu, existe o kagueji mirim, que pode ser consumido
logo após o seu preparo, mesmo aidna quente. Para a preparação do kageji mirim um pouco de milho “seco” é
pilado e depois são acrescentados pedaços de batata-doce, continuando o
trabalho com o pilão até que tudo vier uma única pasta. Como resultado,
obtem-se uma bebida muito cremosa. O kagueji
mirim é também conhecido como kagueji
obaipy, ou simplesmente obaipy. Outros
tipos de kagueji também podem ser
produzidos como o kagueji mirim,
substituindo a batata-doece por abóbora ou simplesmente acrescentando um pouco
de abóbora. Também pode ser empregado o milho verde e/ou a canjica em acréscimo
ou substituição ao milho “seco” pilado bem fino. De qualquer forma, milho
sempre tem que ter.
Sob
hipótese alguma pode-se desperdiçar kagueji
. Sobretudo jogá-lo no chão; é uma afronta ao seu dono. Além disso, oferecer kagueji a um Juruá (branco) é, de certa forma, um desperdício. O kagueji é para os Mbyá Guarani, não serve
para os Juruá.
Dentre
outras bebidas produzidas pelos Mbyá Guarani, destacam-se a aroka e a mbypety. A aroka é o “hidromel”:
água adoçada com mel. Porém os Mbyá Guarani preparam a bebida usando favos de
mel. Depois de extrair o mel, para não desperdiçar o mel que fica retido nas
reentrâncias dos favos, estes são “lavados” em água. Esta água então é tomada
como suco, “suco de mel”. E os favos lavados são utilizados na fabricação de
velas e trabalhos artesanais. Ocorre que os favos também soltam um gosto muito
agradável no suco, melhor do que quando empregam apenas o mel. Nos dias frios,
sobretudo nas primeiras horas da manhã, esta bebida pode ser preparada com água
quente, adquirindo status de chá.
O
mbypety é o suco feito com o fruto da
palmeira pindó. Os frutos maduros são triturados no pilão, sendo depois
acrescentada água fresca. Esta é uma bebida emblemática dos Mbyá Guarani, sendo
considerada um poderoso alimento para a porção sagrada do conjunto corpo-alma. Alias,
todo alimento proveniente da palmeira pindó só faz bem aos Mbyá Guarani. E ela
proporciona muitos alimentos. O ixó é
um dos alimentos mais limpos que existe, sendo consumido preferencialmente
assado ou frito em banha de animal de caça. Todavia, só é possível comer ixó em dois meses do ano, setembro e
janeiro, seus meses de safra. O ixó
não existe em outras árvores, ele cresce apenas na palmeira pindó. Para obtê-lo
basta encontrar um tronco de palmeira em decomposição com pequenos orifícios
(por onde os ixó entraram na
madeira). Então, é preciso “escutar” o barulho das larvas comendo o tronco. Localizados
os ixó pela audição, é só quebrar a
madeira e coletar o alimento – o que é bastante fácil posto que a madeira está
em decomposição.
O
palmito da palmeira pindó, chamado pindóruã,
também é um alimento muito saudável e apreciado. Ele pode ser consumido cru,
embora para os Mbyá Guarani não exista pindóruã
cru. Ele “já é cozido natural”, não é preciso cozinhar. Neste caso, ele é muito
apreciado se for coberto com mel. Mas, na maioria das preparações com o pindóruã ele passa por um segundo
cozimento. Ele pode ser assado e comido acompanhado de mel e/ou carnes de caça;
pode entrar em cozidos de peixes ou de carnes de caça, ou pode ser um
ingrediente de sopa.
Os
frutos da palmeira pindó – guãpitá –
são muito apreciados. Eles são considerados “as balas dos Mbyá Guarani”, com a
vantagem de serem balas naturais. Os Mbyá Guarani não se importam de coletar
frutos do chão; o chão “não é sujo”. Mesmo estando danificados ou já mordidos
por outros animais, os frutos podem ser aproveitados. A polpa do fruto se
resume a uma fina camada que envolve um grande caroço. Dentro desse caroço há
uma amêndoa muito apreciada pelos Mbyá Guarani. Então, mesmo com a polpa
inaproveitável, os Mbyá Guarani coletam o guãpitá.
Estas amêndoas não entram em nenhuma elaboração culinária, sendo comida ao
natural. Porém o caroço do fruto é bastante duro, sendo necessário o emprego de
duas pesadas pedras para poder extrair a amêndoa. Mas até crianças de três ou
quatro anos possuem habilidade para obter a amêndoa.
Texto de Mártin César
Tempass,
in “Quanto mais doce,
melhor – um estudo antropológico
das práticas alimentares da doce sociedade Mbyá
Guarani”
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