domingo, 14 de setembro de 2014

OS "DONOS" DAS PLANTAS - cosmologia xamânica do roçado Mbyá-Guarani

Segundo os Mbyá-Guarani, antes da Terra Atual (yvy pyau), existiu uma outra, um primeiro mundo, chamado yvy tenondé, que foi destruído pelo dilúvio (iporum). A yvy tenondé era perfeita e habitada pelos deuses. Mas um incesto entre dois dos principais personagens cosmológicos Mbyá-Guarani despertou a ira das demais divindades, que acabaram destruindo a Primeira Terra. Os Mbyá-Guarani já existiam quando ocorreu o iporum. Com a destruição da yvy tenondé foi criada a Terra Atual, yvy pyau, para os Mbyá-Guarani viverem e, junto com a Nova Terra, foram criadas todas as condições necessárias para a sobrevivência dos Mbyá-Guarani, inclusive os alimentos que hoje eles consideram tradicionais.

A história de Kuaray e Jaxi, tidos como irmãos, embora o primeiro tenha cirado o segundo, é um dos mitos fundadores da cosmologia Mbyá-Guarani, no qual são definidas algumas divindades e estabelecidas suas posições no cosmo. O mito narra uma grande aventura que é finalizada com os irmãos caminhando pelo mundo que acabaram de criar – yvy pyau – e denominando as coisas, com ênfase na nominação dos alimentos.

Resumindo o mito: a mãe de Kuaray (o futuro Sol), quando grávida, se põe no caminho a procura do pai de Kuaray. De dentro do ventre da mãe, Kuaray vai indicando o caminho correto que devia ser seguido. No caminho Kuaray pedia para que sua mãe lhe colhesse algumas flores. Kuaray era então “criança” e sempre tinha os seus pedidos atendidos. Numa das flores solicitadas havia um zangão que picou sua mãe. Esta ficou irada com Kuaray, julgando que a culpa era do filho que havia lhe pedido aquela flor e acabou batendo em sua própria barriga. Então, Kuaray parou de indicar o caminho correto que eles deveriam seguir. Tomando o caminho errado, eles foram parar na morada dos jaguares. Chegando lá só havia uma jaguar velha em casa, que lhes disse para não ficarem ali para não serem comidos por seus filhos, que logo retornariam. Só que a mãe de Kuaray não deu ouvidos à velha e ficou lá. Então, voltaram os filhos da velha Jaguar e comeram a mãe de Kuaray. Estes separaram o feto para que a velha jaguar comesse, mas não conseguiram matar Kuaray, mesmo apões várias tentativas. Sendo assim, a velha jaguar decidiu criar Kuaray. Ele criou o primeiro arco e fez três flechas, passando a caçar para alimentar a velha jaguar, que então ele julgava ser a sua mãe. Aliás, com a caça ele alimentava toda a família dos jaguares. Depois Kuaray criou um irmão para ele, o Jaxy (futuro Lua). Ambos vão caçar em uma ilha distante, desrespeitando as ordens da jaguar que julgam ser sua mãe. na ilha tentam matar um papagaio que lhes conta que a jaguar não é a mãe deles, que na verdade a jaguar comeu a sua progenitora. Entoa Kuaray e Jaxy, com ajuda do lobo marinho, construíram uma ponte-armadilha. Quando os jaguares estavam atravessando a ponte os dois irmãos a derrubaram, jogando os jaguares na água. Porém, nem todos morreram afogados e o plano dos irmãos de extinguir os jaguares fracassou. Assim, eles decidiram sair de perto dos jaguares procurando seu pai, morador de uma outra comunidade. No caminho, os irmãos vão dando os nomes para as plantas e animais, nomeando também os alimentos. Só depois é que o Sol e o Lua vão para o céu, partilhando a função de iluminar o mundo. O Sol, mais velho e poderoso, ilumina o dia. O Lua, irmão menor e não tão poderoso quanto o Sol, ilumina a noite. Mas o Lua, mais fraco, fica cansado e tem que descansar. É por isso que existem as fases “do Lua”.

Os Mbyá-Guarani possuem duas porções de alma: uma sagrada e outra telúrica. A alma sagrada é chamada ñe’e e significa, literalmente, alma-palavra. Na linguagem Mbyá-Guarani os termos “alma” e “palavra” tem o mesmo significado, o mesmo valor semântico. O ñe’e é a alma e a palavra, a fala dos Mbyá-Guarani é a expressão de sua alma. Os pais das almas-palavras, divindades chamadas ñe’eng ru eté enviam uma nova ñe’e para esse mundo quando cada nova criança Mbyá-Guarani é concebida. Do nascimento de uma criança os Mbyá-Guarani dizem que a alma-palavra tomou assento. Quando a criança, com cerca de um ano, começar a falar (expressão da alma palavra) e andar (manter erguido o fluir de seu dizer), ela será batizada – no ritual do nimongaraí. Neste momento o nome da criança será revelado pelo karai (xamã). O nome da criança tem a ver com o ñe’eng ru eté que enviou a ñe’e dela. Para cada ñe’eng ru eté existe um conjunto de nomes que podem ser dados à criança.

É interessante que o Mbyá-Guarani não possuiu simplesmente um nome; ele é o próprio nome. O nome é sua ñe’e. Como escreveu Cristian Pio Ávila, “um Mbyá não se hcama Karaí, por exemplo, ele é Karaí, ele é o próprio nome” (Avila, 2005). E este nome veio de uma divindade que tem um lugar preciso no cosmo Mbyá-Guarani, correspondente a uma direção ordenada segundo os pontos cardeais. Por exemplo, os ñanderu kuéry (filhos de Ñanderu) moram na direção leste, no nascente; já os tupã kuery (filhos deTupã) moram no outro lado, onde o sol se esconde, no oeste; os karai kuéry se encontram no leste, relacionados com o paraguaçu, o grande mar, isso também pode ser aplicado aos alimentos.

Voltando aos alimentos Mbyá-Guarani e à narrativa sobre a aventura vivida pelos irmãos Kuaray e Jaxy, ao abandonarem a morada dos jaguares, ao iniciarem uma nova vida longe da “animalidade”, os irmãos vão pelo “caminho” nomeando as coisas que encontram, com destaque para os alimentos. Tem-se, então, que neste momento mítico, ao nomear os alimentos, Kuaray e Jaxy também os estão dotando de almas. O que tem nome tem alma! O nome é a alma. E, mais do que isso, os irmãos estão designando a divindade correspondente a cada alimento, com seu local de origem, sua posição precisa no cosmos.

Isso tudo ocorreu na transição da Primeira Terra (yvy tenonde) para a segunda (yvy pyau). Os Mbyá-Guarani não costumam falar sobre o seu sistema xamânico cosmológico com indivíduos que não pertencem ao seu grupo – ou o fazem de forma muito ponderada. Por isso os dados sobre a transição entre as duas Terras estão repletos de lacunas. Porém, cruzando informações entre vários autores, é possível dizer que na Primeira Terra os Mbyá-Guarani eram deuses. Contudo, existia uma hierarquia entre estes deuses. Isso se encaixa nas informações apresentadas por Leo Cadogan (1997), Pierre Clastres (1990) e Hélène Castres (1978). Segundo estes autores, na ocasião do iporum (dilúvio), a maioria dos seres que habitavam a Primeira Terra “ascenderam” ao mundo sobrenatural. Os seres que não levavam uma vida virtuosa foram deslocados para uma nova Terra, a Segunda Terra, que é a Terra Atual, chamada yvy pyau. Os seres em questão seriam os Mbyá-Guarani. Esta Segunda Terra foi criada especialmente para dar uma nova oportunidade aos Mbyá-Guarani “ascenderem” ao mundo sobrenatural. Esta é a razão da existência da Terra Atual.

Assim, os Mbyá-Guarani estão nesse mundo – yvy pyau – passando por uma espécie de prova (H. Clastres). Caso se portem em conformidade com os anseios divinos, também se tornarão deuses. A Terra Atual é imperfeita e habitada por seres também imperfeitos. O interessante é que nessa Terra imperfeita é que os Mbyá-Guarani buscam se transformarem em seres perfeitos. É o aguyje, estado de perfeição do ser, que possibilita a passagem deste mundo para o sobrenatural, ou a passagem para a divindade. Mas, mesmo habitando o mundo imperfeito, os Mbyá-Guarani se nutrem com alimentos perfeitos. Alimentos estes que foram criados pelos deuses e que alimentavam as divindades – muitos destes alimentos inclusive já existiam na yvy tenonde e foram simplesmente deslocados para a Terra Atual. Os deuses, “mandaram” estes alimentos para a Terra Atual para que os Mbyá-Guarani possam atingir a perfeição. Para serem perfeitos é preciso que comam alimentos perfeitos. Para serem deuses é preciso comer o alimento dos deuses.

Pode parecer um castigo divino o fato dos Mbyá-Guarani terem sido enviados para este mundo a fim de passar por uma espécie de prova, mas não é um castigo. Ao contrário, é uma bênção. É uma nova chance que os deuses generosos estão dando aos Mbyá-Guarani para que eles também se tornem deuses. E, para tanto, os deuses enviaram para este mundo, junto com os Mbyá-Guarani, os alimentos que auxiliam nesta empreitada. Os Mbyá-Guarani sempre destacam esta generosidade dos deuses e a gratidão para come lês. Trata-se de uma relação diferenciada com as divindades, que nenhum outro tipo de ser desse mundo possui. Ocorre que, como já havia sido destacado por Hélène Clastres e Pierre Clastras sobre a mitologia guarani em geral, os Mbyá-Guarani gozam do status de “escolhidos” pelos deuses, pois foram eles os primeiros a receber o adorno de plumas.

Os Mbyá-Guarani vivem neste mundo – yvy pyau – com os alimentos criados pelas divindades, porém as divindades responsáveis pela alma desses alimentos encontram-se no mundo sobrenatural. Estas divindades são geralmente designadas pelos Mbyá-Guarani como os dos alimentos – que em tradução literal siginifica “donos” ou “protetores”, como observou Ramón Fogel (1998). Então, os alimentos estão em um mundo, mas seus donos, seus controladores ou protetores residem em outro. Desta forma, o cultivo de qualquer alimento tradicional pelos Mbyá-Guarani passa obrigatoriamente pelo domínio do sobrenatural, por um respeito às prescrições divinas. Ocorre que ao “dispor” os alimentos na yvy pyau, os deuses também estabeleceram as formas que estes devem ser cultivados.

Cada espécie tem a sua forma peculiar de cultivo, em consonância com o estabelecido pelo seu . O respeito às técnicas prescritas é um dos determinantes do caráter sagrado dos alimentos tradicionais. O alimento não é sagrado apenas por ser originário dos deuses, mas é sagrado porque ele, também, é cultivado segundo as técnicas ensinadas pelos deuses. E os Mbyá-Guarani vêm mantendo essas técnicas desde tempos imemoriais – eles preservam as sementes das suas plantas tradicionais a partir da aplicação de técnicas tradicionais de cultivo. Essas técnicas são dominadas por todos os indivíduos do grupo: homens e mulheres, até mesmo crianças, demonstram profundo conhecimento sobre elas – muito porque todos os Mbyá-Guarani colaboram nas tarefas de obtenção dos alimentos.

Em linhas gerais, que se aplicam a todas as espécies da horticultura Mbyá-Guarani, pode-se observar uma ausência de limites rígidos entre os roçados, a mata e o espaço denominado como “pátio” das casas e/ou aldeia. As tekoá (aldeia) Mbyá-Guarani são constituídas de um espaço contínuo, com zonas de transição onde os três ambientes se fundem ou se confundem. Não há fronteiras entre os diferentes ambientes, mas sim um ambiente interpenetrado no outro. Isso não ocorre apenas nas suas roças, mas também em todo o espaço ocupado pelos Mbyá-Guarani. A espacialidade por eles construída não apresenta limites rígidos, não existindo fronteiras fixas entre um espaço e outro. Tudo é contínuo, fluído, tênue. Um ambiente não acaba em um determinado lugar e pronto. Ele vai acabando aos poucos, vai se metamorfoseando em um outro, através de zonas de transição que compreendem mistos de dois ou mais ambientes. Assim, o pátio de uma casa se estende e se confunde com o pátio da outra, que se confunde com as roças de um produto, com as roças de outro produto, com o campo, com o mato, etc., ao mesmo tempo em que tudo é caminho.

Diferente dos “nossos” modelos de plantio, nas roças dos Mbyá-Guarani não existem linhas retas. Os contornos do roçado seguem as inclinações do terreno, sendo que a limpeza da vegetação da área é feita apenas nas áreas mais planas. Geralmente os Mbyá-Guarani também optam por não avançar os seus roçados por áreas onde a vegetação é de difícil remoção. Sendo assim, os contornos dos roçados são extremamente sinuosos. Se é que se pode falar em contornos, uma vez que as áreas se interpenetram – o mato avança entre as roças e as roças adentram um pouco o mato; os roçados avançam sobre os pátios das casas e vice-versa. Onde são semeadas as plantas, parece que as sementes são distribuídas de modo aleatório no solo – porque não são semeadas em linhas. Mas existe toda uma ciência nesta distribuição. São formas que, segundo os Mbyá-Guarani, garantem um melhor aproveitamento do terreno, bem como a máxima rentabilidade das espécies cultivadas. Além disso, as plantas devem ser semeadas de maneira que se sintam “felizes umas com as outras, se plantar muito perto ela não fica alegre”. E, estas formas de plantio foram ensinadas por Ñanderu.

Também é característico dos roçados Mbyá-Guarani que diversas espécies partilhem a mesma área. Numa primeira olhada, tudo parece um caos, várias plantas misturadas, aparentemente sem nenhuma lógica. Abóboras crescem entre pés de mandioca. Batatas-doce entre pés de milho. Melancias são semeadas no meio da plantação de aipim. E assim por diante. Sem falar nos tocos remanescentes da limpeza do terreno. Ser para “nós”, no estanhamento, tudo parece caos, para os Mbyá-Guarani é o modelo perfeito. Inclusive esteticamente perfeito – o bonito são as plantas “misturadas”. Os diferentes tipos de plantas que podem dividir o mesmo espaço, o período de plantio de cada uma delas, o distanciamento entre elas, etc., tudo segue uma ciência secular, prescrita pelos deuses. E esta distribuição peculiar de plantas no terreno é que confere a tradicionalidade, a sacralidade e a “gostosura” dos laimentos Mbyá-Guarani

Os cultivos Mbyá-Guarani também se caracterizam pela ausência de adubos, agrotóxicos e irrigação. Estes são desnecessários. Os alimentos são criações dos deuses e são plantados como as divindades ensinaram aos Mbyá-Guarani. Além disso, os deuses (os de cada alimento) também são responsáveis pelo crescimento das plantas. Esta estreita ligação dos Mbyá-Guarani com as suas divindades faz com que todas as etapas da alimentação, desde o plantio até o consumo, sejam marcadas pro inúmeros ritos. O plantio tem início com ritos na opy – casa de rezas –, quando os Mbyá-Guarani solicitam aos deuses o crescimento das plantas. As sementes que serão plantadas participam deste rito – que alguns Mbyá-Guarani traduziram como o “batismo das sementes”. Depois, enquanto as plantas crescem na roça, outros ritos se repetem, também visando a produção dos alimentos. Por fim, após a colheita, período de festas entre os Mbyá-Guarani, novos ritos são feitos para agradecer os alimentos obtidos. Isso é muito significativo, pois o sucesso ou fracasso na produção dos alimentos está relacionado com o sucesso ou fracasso na execução dos rituais, na comunicação com os das plantas. E os das plantas possuem uma porção sua nas próprias plantas. Desta forma, como conclui Fogel (1998), para que as rezas (os ritos) produzam efeitos, elas precisam escutadas pelas plantas e pelos seus protetores sobrenaturais. Se os Mbyá-Guarani fizerem os ritos corretamente, não irão lhes faltar alimentos. Assim, irrigação, adubo e/ou agrotóxicos não fazem sentido entre os Mbyá-Guarani. Basta “rezar” para que as plantas cresçam. Realizando os ritos corretamente, é certo que os deuses farão as plantas crescerem. Não tem erro! Tanto é que alguns Mbyá-Guarani, ao falar desses ritos, afirmam que “mandam” as plantas levantarem.

Os deuses – e os de cada alimento – integram um verdadeiro sistema de colaboração entre eles para tornar possível a alimentação dos Mbyá-Guarani. Este é um ponto bastante delicado de ser abordado, posto que os Mbyá-Guarani, com o intuito de preservar a sua cultura e evitar estigmatizações, entre outros motivos, evitam falar sobre os eu sistema xamânico-cosmológico com os Juruá. E, nas poucas vezes que fizeram, geralmente apresentam um discurso medido, um misto de explicação (para pontuar a identidade étnica), simulacro e ocultação (para evitar estigmatizações). Quando os Mbyá-Guarani falam sobre as suas divindades, geralmente mencionam apenas o nome de Ñanderu. Este é a principal divindade dos Mbyá-Guarani, geralmente referido como “nosso pai eterno”. O fato de mencionar apenas o nome de Ñanderu e a ele atribuir as características e funções de todas as outras atividades e, para os Mbyá-Guarani, uma forma de simplificar as explicações para os Juruá. Como os Juruá são monoteístas, nada mais lógico, aos olhos dos Mbyá-Guarani, do que tentar traduzir o seu sistema xamânico-cosmológico nesses termos. Além disso, resumindo todo o seu sistema a uma única divindade, eles estão, de certa forma, impedindo que os Juruá dominem suas crenças e, assim, protegem a sua cultura e evitam estigmatizações. Ou seja: “pros brancos não entender”. Desta forma, tudo é Ñanderu. Quem criou o milho? Ñanderu. Quem ensinou a plantar? Ñanderu. E assim por diante... Entretanto, os Mbyá-Guarani são politeístas. Qualquer pesquisador que tenha uma vivência mais constante com eles observa facilmente que além de Ñanderu, existem Tupã, Jakaíra, Ñamandu (que também é um Ñanderu), entre muitos outros. Os kuery (grupos de indivíduos) encontrados nas tekoa Mbyá-Guarani também existem no domínio sobrenatural. Os também estão agrupados em kuéry. E existe uma hierarquia entre esses deuses, sendo que o – digamos – “líder” de todos é Ñanderu. Só que são milhares – ou talvez milhões – de deuses no panteão Mbyá-Guarani, pois muitos Mbyá-Guarani já se tornaram deuses. Todos bem posicionados na linha hierárquica. Os Tupã kuéry, por exemplo, são inúmeros seres que habitam o mundo sobrenatural e que estão subordinados a Tupã. Os Jakaíra kuéry, todos subordinados a Jakaíra. E assim por diante. O interessante é que essa hierarquia se estende até os Mbyá-Guarani que habitam este mundo, deuses em potencial.

Então, se é fato, como os Mbyá-Guarani costumam afirmar, que todos os seus alimentos tradicionais foram criados por Ñanderu, também é fato que os irmãos Kuaray e Jaxy dotaram estes alimentos de um nome, de uma alma, e com isso estabeleceram as divindades que são os dos alimentos. Como afirmou certa vez um Mbyá-Guarani: “toda comida tem seu dono... o seu próprio”. Assim, o milho tem um “dono”, o feijão outro, etc. São seres espraiados na hierarquia sobrenatural. A estes deuses específicos, o ao conjunto de deuses subordinados aos “donos” dos alimentos, que os Mbyá-Guarani dirigem os seus ritos. Mas os ritos podem ser dirigidos diretamente a Ñanderu, que é o “chefe” de todos os . Funciona mais ou menos assim: caso um não esteja atendendo as preces dos Mbyá-Guarani, o jeito é “reclamar” com o chefe desse . Então o sucesso no cultivo de cada diferente espécie alimentar depende da correta execução dos ritos, da perfeita comunicação com os e do bom “relacionamento” entre ambas as partes. Isso explica, segundo os Mbyá-Guarani, porque num mesmo período e terreno um cultivo pode render muito enquanto outro, quase nada. A safra de milho pode ser boa enquanto a de feijão, má. É porque são alimentos com “donos” diferentes.

O poder, a força vital e as características dos deuses se estendem para as espécies vegetais das quais eles são “donos”. É como se um pé de milho fosse uma parcela da divindade “dona” dele. Como já exposto, a alma é o nome, e o nome é o próprio ser. Por exemplo, um Mbyá-Guarani não se chama simplesmente Verá; ele É Verá. E, aplicando isso às plantas, temos que os alimentos cultivados nas roças são alma/nome/planta. A alma de uma planta é “uma parte” do seu . Ou, simplesmente, a alma é o . Assim, é interessante notar que a roça, para os Mbyá-Guarani, é um espaço extremamente importante, digno de todas as atenções. A roça é um ambiente onde a força e o poder sobrenatural se fazem presentes – grosso modo, as divindades estão plantadas lá. Considerando as características da horticultura Mbyá-Guarani, onde várias espécies dividem o mesmo terreno, podemos especular que a força de diversos “donos” se fundem neste ambiente. Se por um lado misturar espécies é aumentar o rendimento dos alimentos cultivados pela “cooperação” entre as diferentes plantas, por outro lado, ao semear diferentes plantas (com diferentes ), os Mbyá-Guarani estão aumentando o leque de forças sobrenaturais que incidem sobre o terreno. Enfim, a roça é um lugar “sagrado’ para os Mbyá-Guarani.

Nesse complicado quebra-cabeças de relação e colaboração de diversos deuses “donos” das espécies na produção dos alimentos Mbyá-Guarani, destaca-se o papel de Tupã e/ou dos Tupã kuéry. Eles são “donos” de vários elementos da natureza, inclusive alimentos. Tupã é geralmente mencionado pelos Mbyá-Guarani como o da chuva. E tal qual acontece com os alimentos, Tupã é a própria chuva. Sendo assim, neste contexto de colaboração entre deuses, Tupã é um colaborador importantíssimo na criação e produção dos alimentos dos Mbyá-Guarani. Antes de qualquer alimento ser criado, houve o aparecimento de Tupã, a chuva. Até hoje, para que qualquer planta brote, é indispensável o aparecimento de Tupã.

Esse quando Guarani fizeram a rocinha e não tem facão, bateram com esse pauzinho, bateram taquarinha, quebrando, quebrando tudo e depois secou e depois botaram foguinho e queimaram bem queimadinho e depois só cinza... Só virou cinza. Olhavam... O eu vamos plantar? O que vai ser, né? Pensando. O Karaí... o Karai que pensava. Kuña-karai pensava. E depois veio a chuva, a chuva forte, e... Derrampa os tronos, o Ñanderu, o Tupã. Chove bastante e depois choveram dois dias. Chuva forte. E depois passou e durava mais ou menos quatro, cinco dias. E depois eu caminhava, depois de passar o tempo chuvoso, a dona da rocinha, né? Não foi plantado não. Eles nasceram por si.

Ai despejaram Tupã. Ai depois outro parte tem... Nasceram melancia. Depois outro parte nasceram abóbora. E, e assim (...) já achava importante e... Cuidava aquele, cuidava muito, muito, muito, e depois grande tem (...) Grande e depois no fim granando, que já tem grão. Quando seco, juntamos aquele, não comeram, e depois acha bonito, espiga bonita, deixou para semente, aí brotou de novo.

É a chuva! Tupã é o deus que tá no trono e se derrampa, né? Derrampa e faz o trono e semia algum parte que quer bem o deus. É ele que traz semente. Então esse ai que o governo não querem compreender... Só de... Queria que compreendesse... Do fundo, do fundo do corpo, do fundo dos cadáveres do ar, e quando na conversa, da sabedoria que ele podia espalhar por todo o mundo. Ele não pensa pro índio. É isso ai. Tô dizendo essa maneira porque eu sei (Mbyá-Guarani, 2005)

O interessante do trecho acima é que Tupã colaborou com as outras divindades para o surgimento das primeiras plantas e desde então colabora – com outros – para a reprodução destas plantas. Outro fato interessante é que, pela narrativa, desde o princípio os Mbyá-Guarani praticam o modelo horticultor que eles chamam de tradicional – limpando o terreno e queimando os restos da vegetação. E, mais interessante ainda, a forma tradicional de preparar as roças surgiu antes mesmo de serem criadas as plantas tradicionais.

Tupã (ou os Tupã kuéry) também é colaborador nos alimentos de origem animal. Ocorre que, segundo os Mbyá-Guarani, toda água que existe nesta terra é oriunda da chuva e todo animal precisa de água para sobreviver. Assim, Tupã é fundamental em toda a alimentação Mbyá-Guarani. E, como os Mbyá-Guarani também precisam consumir água para sobreviver, Tupã é condição necessária para a sobrevivência deles neste mundo. Sem a colaboração de Tupã, não haveria água para beber, para o crescimento dos alimentos cultivados nas roças e dos coletados nas matas, para o crescimento dos peixes e animais caçados. Em suma, sem Tupã não haveria alimentos. E isso também se aplica aos outros inúmeros dos alimentos Mbyá-Guarani. É por isso que os Mbyá-Guarani precisam manter um bom relacionamento com os diferentes , preposto dos deuses. E esse bom relacionamento passa por uma boa comunicação ritual.

Portanto, cada planta cultivada pelos Mbyá-Guarani em suas roças possui uma posição precisa na cosmologia Mbyá-Guarani, uma alma. Isso faz com que a “reza” – como falam os Mbyá-Guarani para os Juruá compreenderem – seja um dos elementos das técnicas de cutlivo.

Texto de Mártin César Tempass,
in “Quanto mais doce, melhor – um estudo antropológico das práticas alimentares da doce sociedade Mbyá Guarani”


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