O
encontro entre duas culturas, que pode ser compreendido pela categoria
interculturalidade, cujo prefixo inter expressa o sentido de interação,
troca, reciprocidade, indica a possibilidade de integração entre elas sem
anular sua diversidade, ao contrário, fomentando o potencial criativo e vital
resultante das relações entre diferentes agentes e seus respectivos contextos,
conforme argumenta Reinaldo Matias Fleuri (2005). É nesta perspectiva que
proponho pensar o corpo trançado, que na contemporaneidade se estabelece a
partir da relação mbyá-juruá,
considerando seu fundamento mítico original, sendo tal fundamento conectado às
novas experimentações que inspiram uma criação seriada, contínua e acrescida de
outros elementos. Frade e Reis (2010) argumentam que não se pode pensar nos artefatos produzidos
pelos Mbyá-Guarani sem levar em conta o esforço tradutório e interpretativo
sobre o que se encontra no mundo externo e o que se pode esperar dessa relação.
A
arte do corpo trançado encontra sua potência na cestaria, que é considerada como
marca identitária dos três grupos Guarani – Mbyá, Kaiowá e Nhandeva. O cesto (ajaka) é confeccionado com as
lascas do bambu, que por sua vez surgiu do orvalho, símbolo de Jachuka.
Da planta porongo, também símbolo de Jachuka, fabrica-se o mbaracá dos homens. Da
mesma fonte nasce o bambu, do qual se produz o bastão de ritmo das mulheres.
Dessas duas plantas surgiram a humanidade, homem e mulher (CHAMORRO ARGÜELLO,
2008). Corroborando essa interação, Ivori Garlet revela a relação intrínseca
existente entre o homem e a mulher. “O
Ser Criador bateu com seu arco no cesto e dessa ação originou-se o homem, que é
um corpo (rete) em forma de arco (guyrapa). Ele bateu no cesto pela
segunda vez, dessa vez com a taquara, e dessa ação surgiu a mulher, que é corpo
(rete)
em forma de cesto (ajaka)” (GARLET, 1997).
Os
Guarani acreditam que o trançado, que dá origem ao cesto, foi ensinado por Nhanderu para que
pudessem carregar as sementes do milho sagrado para serem plantados na roça ou
para guardarem o pão sagrado feito de milho (mboejape), referendado no
batizado das crianças – um ensinamento para a realização da vida. Segundo o
cacique guarani Vera Nhamandu Miri, é feito o mboejape (pão sagrado de
milho), que é posto no adjaka (cesto) e fica durante 24 horas na Opy (Casa
de Reza), o lugar mais sagrado da aldeia. Depois o oypirigua (pajé)
chama as crianças que irão receber o nome. Neste momento, o cesto proporcionará
alimento para o espírito. E, satisfazendo o espírito, o nome será bem cuidado,
bem recebido. No dia seguinte, os pãezinhos de milho serão dados aos pais e às
crianças.
No
tekoa, o adjaká é mais que coisa, mas ente, um corpo/memória,
possuindo a condição de sujeito/objeto. A espiritualização do adjaká possui
uma ontologia ambígua. O corpo-forma do cesto contribui na geração da
palavra, objeto pensado como extensão da pessoa, objeto trançado como ato sagrado.
(FRADE; CAMPOS, 2008).
Em
tempos remotos, as mulheres guarani utilizavam pigmentos naturais na coloração
dos filetes de taquara (da família do bambu) que contribuíam na formação dos
desenhos básicos tradicionais. O professor indígena Eloir Werá Xondaro traduz
no papel os grafismos mais recorrentes visualizados nos cestos mbyá-guarani: Ipara kora: grafismo fechado,
simboliza a pele de algumas cobras; Ipara
korente: grafismo em forma de corrente, simboliza as relações entre as
comunidades Guarani, seja de parentesco ou de amizade; Tanambi pepo: simboliza as asas de um tipo de borboleta; Ipara ryxi: grafismo em fila,
simboliza pessoas em fila indo para a caça, para a coleta de frutos, para a
pesca, para a busca de material para a confecção do artesanato.
Os
adjaká usados nos rituais realizados na Opy não podem ser
afetados por nenhum elemento externo. Devem ser criados com “elementos crus”,
ou seja, as lascas retiradas do bambu e do porongo não devem receber tintura
artificial, sendo assim, diferenciados daqueles que entram no circuito
comercial.
Na
Aldeia Tekoa Mbo’yty, Dona Lídia e sua mãe, Dona Juventina, exercitam sua
sabedoria na arte do trançado, uma matemática complexa geradora de superfícies
ritmadas. Cada trançado tem seu próprio autor, apontado através de grafismos
identificadores de determinadas famílias. As formas evoluem no cotidiano, novas
combinações são criadas e compartilhadas pelo grupo que as incluem em seu
repertório cesteiro.
Apesar
de designar tradicionalmente uma produção feminina, na Aldeia Tekoa Mbo’yty, alguns
homens colaboram na feitura dos cestos: uns vão à reserva mais próxima coletar
a taquara, uns ajudam no tingimento, outros na amarração inicial das fibras de
taquara, ou até mesmo na produção total de cestos. É também comum contar com a
colaboração de outras pessoas (homens ou mulheres), desde que pertencentes ao
mesmo núcleo familiar, no processo de preparação das fibras, que são lascadas
com a ajuda de uma lâmina delicada e afiada. Cada núcleo familiar desenvolve
esse processo próximo a sua habitação-oca, estabelecendo seu território de
criação coletiva. Uma trama resultante do entrelaçamento de fibras e também de
corpos.
Os
cestos, junto com outros objetos artísticos, encontram-se dispostos em uma
ampla bancada para serem comercializados aos turistas que visitam a aldeia. Os
objetos são dispostos por aproximações de categoria e autoria, que por sua vez
são agrupados de acordo com os núcleos familiares. Conferem um modo de
exposição segundo critérios estéticos autóctones. Essa disposição e agrupamento
se aproximam do modo como os Guarani concebem a organização social e
cosmológica do grupo no espaço/tempo (Ara Ypy), uma organização que
prima por seus núcleos familiares, sejam eles da ordem da natureza ou da sobrenatureza.
A
comercialização dos objetos artísticos se constitui como modo primordial de
subsistência, tornando a vida dos mbo’yty cada vez mais entrelaçada à dos
não-índios. Além do recurso material obtido pela venda dos objetos, essa
interação estabelece um espaço de diálogo intercultural, uma comunicação
estética mais ampla com o mundo externo e interno à sociedade mbyá-guarani. Um
modo de subsistir pela via da arte – uma economia que se dá na produção de
artefatos para o consumo externo – requer a ressignificação de sua cultura
material, um entendimento que permita incorporar esse novo significado do nhanderekó
mbyá-guarani, como argumenta Frade e Reis (2010).
O
cesto adquire outro estatuto. A vida dos objetos relaciona-se diretamente ao
universo que se pretende invocar. O sentido muda conforme o contexto no qual
cada objeto se insere. “Os contextos
podem mudar de forma radical, como acontece quando objetos e artefatos entram
no circuito comercial interétnico, quando se tornam emblemas de identidade
étnica, peças de museus ou ‘obras de arte’ ” (LAGROU, 2007).
Em
comparação à disposição e significação dos cestos tingidos e os
tradicionalmente sagrados no espaço da aldeia, é importante destacar as
modificações operadas sobre esses itens ao mudarem de contexto. Ao serem
transportados e reorganizados em museus, os cestos adquirem contornos de
artefatos componentes, a partir de então, da dinâmica que se realiza na
interação com um espaço reservado às instituições identitárias da arte
institucional. O espaço de projeção da arte do corpo trançado configura-se,
assim, em um ambiente imersivo, paisagem a ser desvendada pela incursão do
espectador, privilegiando-se sua dimensão estética.
Os
objetos da cultura material que no contexto tradicional tinham frequentemente,
valor espiritual, são apreendidos como objetos estéticos, ao mesmo tempo em que
são submetidos às leis de mercado do mundo da arte, conforme argumenta Stocking
Jr. (1985). Blanca Dian Brum (2004) pontua que inserir esses objetos em outro
sistema de representação quebra o elo de uma cadeia de significações, muitas
vezes inoperante, capaz mesmo de criar barreiras epistemológicas no sentido da
compreensão desses objetos e das sociedades que os produzem. Dessa forma,
ambos, propõem a ampliação das categorias de apreensão e compreensão dessas
produções estéticas, dessas sociedades e das práticas que as envolvem,
compreendendo-as como textos simbólicos, como discursos que são uma dimensão
fundada na oralidade. “Tudo significa,
tudo é texto, que devemos aprender a ler, tudo é discurso que devemos aprender
a ouvir para poder efetivamente mergulhar nessas culturas, compreendê-las e respeitá-las”
(BRUM, 2004).
Os
professores guarani Arnildo Werá e Eloir Werá Xondaro, ao visitarem a exposição
no Museu do Índio – RJ, reclamaram da falta de um monitor nativo para falar um
pouco sobre o contexto em que os objetos são produzidos – “apresentar seu olhar
sobre si mesmo”. Estranharam também a seleção dos objetos expostos no museu,
pois concebiam que veriam “coisas de antigamente”, que remetessem à história de
seus ancestrais, como arcos, flechas e lanças; panelas produzidas com argila;
pratos, colheres e canecas confeccionadas com sementes; colchão feito de folha
de palmeira trançada; instrumentos, entre outros, que a memória dos jovens não
alcança.
Não
sei, talvez eu possa estar errado. É algo importante que está sendo mostrado
aqui, mas isso é da atualidade. Se a gente voltasse um pouco para a
antiguidade, para a história dos nossos ancestrais, veríamos coisas diferentes
aqui, uns instrumentos diferentes e até mesmo o artesanato um pouco mais
diferente. Mas isso não quer dizer que isso aqui não é importante para a
sociedade guarani hoje em dia. Isso aqui é uma exposição de grande importância
para nós. Através dessa exposição talvez a sociedade dos juruás dê mais importância ao povo
Guarani. Não só aqui no Rio de Janeiro, mas em todo o território nacional. Isso
é de muita importância para nós. São iniciativas assim que nos fortalecem. Os
Guarani estão sendo um pouco esquecidos. Muito se fala de índio, mas pouco se
fala dos Guarani. Existem várias etnias no Brasil. Principalmente os Guarani do
Sul, de onde eu venho, é pouco falado, pouco lembrado. Os Guarani estão aqui no
Rio de Janeiro, em São Paulo, no Sul, em Santa Catarina, na Argentina e no
Paraguai. O povo Guarani está vivo, sua cultura está viva, seus costumes estão vivos.
Então, isso nos fortalece, não só fortalece como uma aldeia, mas como um todo,
o povo no geral assim. Eu fico feliz pelos meus parentes terem conseguido esta
oportunidade de estar mostrando um pouco das aldeias. E eu parabenizo esses
guerreiros pela coragem também de estar expondo isso assim. Também fico muito
feliz. Mas, o importante é mostrar a iniciativa, mostrar o suficiente para a
sociedade conhecer um pouco da cultura guarani, mas isso não é suficiente
(Depoimento de Eloir Werá Xondaro, 2010).
Há
ainda muito a se fazer no campo da patrimonialização e/ou musealização dos bens
materiais e imateriais indígenas dos Mbyá-Guarani. Há que se pensar outras
políticas públicas de valorização, reconhecimento e conservação da cultura
material e imaterial indígena, mas certamente políticas que contemplem o
protagonismo indígena. Nesse sentido, o Museu do Índio apresenta algumas
iniciativas como essa exposição, ainda que com uma participação “tímida” dos
índios, bem como com oferecimento de cursos no campo museológico que
qualifique, os próprios Guarani, como pesquisadores de sua cultura, conforme
dito por José Carlos Levinho (2010), diretor do Museu do Índio: “Tem que ter
formação, tem que ter qualificação, fornecer as ferramentas e deixá-los
administrar e mostrar também os caminhos, porque não adianta fazer um feijão
com arroz sem qualidade”. Mas como o próprio Guarani Eloir (2010) salienta:
“isso não é suficiente”.
Baseado em texto de Maria Cristina
Rezende de Campos –
“A arte do corpo mbyá-guarani:
processos de negociação, patrimonialização e circulação de memória”
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