sábado, 23 de agosto de 2014

CORPO TRANÇADO – CESTARIA E A RELAÇÃO MBYÁ-JURUÁ



O encontro entre duas culturas, que pode ser compreendido pela categoria interculturalidade, cujo prefixo inter expressa o sentido de interação, troca, reciprocidade, indica a possibilidade de integração entre elas sem anular sua diversidade, ao contrário, fomentando o potencial criativo e vital resultante das relações entre diferentes agentes e seus respectivos contextos, conforme argumenta Reinaldo Matias Fleuri (2005). É nesta perspectiva que proponho pensar o corpo trançado, que na contemporaneidade se estabelece a partir da relação mbyá-juruá, considerando seu fundamento mítico original, sendo tal fundamento conectado às novas experimentações que inspiram uma criação seriada, contínua e acrescida de outros elementos. Frade e Reis (2010) argumentam que não se pode pensar nos artefatos produzidos pelos Mbyá-Guarani sem levar em conta o esforço tradutório e interpretativo sobre o que se encontra no mundo externo e o que se pode esperar dessa relação.

A arte do corpo trançado encontra sua potência na cestaria, que é considerada como marca identitária dos três grupos Guarani – Mbyá, Kaiowá e Nhandeva. O cesto (ajaka) é confeccionado com as lascas do bambu, que por sua vez surgiu do orvalho, símbolo de Jachuka. Da planta porongo, também símbolo de Jachuka, fabrica-se o mbaracá dos homens. Da mesma fonte nasce o bambu, do qual se produz o bastão de ritmo das mulheres. Dessas duas plantas surgiram a humanidade, homem e mulher (CHAMORRO ARGÜELLO, 2008). Corroborando essa interação, Ivori Garlet revela a relação intrínseca existente entre o homem e a mulher. “O Ser Criador bateu com seu arco no cesto e dessa ação originou-se o homem, que é um corpo (rete) em forma de arco (guyrapa). Ele bateu no cesto pela segunda vez, dessa vez com a taquara, e dessa ação surgiu a mulher, que é corpo (rete) em forma de cesto (ajaka)” (GARLET, 1997).

Os Guarani acreditam que o trançado, que dá origem ao cesto, foi ensinado por Nhanderu para que pudessem carregar as sementes do milho sagrado para serem plantados na roça ou para guardarem o pão sagrado feito de milho (mboejape), referendado no batizado das crianças – um ensinamento para a realização da vida. Segundo o cacique guarani Vera Nhamandu Miri, é feito o mboejape (pão sagrado de milho), que é posto no adjaka (cesto) e fica durante 24 horas na Opy (Casa de Reza), o lugar mais sagrado da aldeia. Depois o oypirigua (pajé) chama as crianças que irão receber o nome. Neste momento, o cesto proporcionará alimento para o espírito. E, satisfazendo o espírito, o nome será bem cuidado, bem recebido. No dia seguinte, os pãezinhos de milho serão dados aos pais e às crianças.

No tekoa, o adjaká é mais que coisa, mas ente, um corpo/memória, possuindo a condição de sujeito/objeto. A espiritualização do adjaká possui uma ontologia ambígua. O corpo-forma do cesto contribui na geração da palavra, objeto pensado como extensão da pessoa, objeto trançado como ato sagrado. (FRADE; CAMPOS, 2008).

Em tempos remotos, as mulheres guarani utilizavam pigmentos naturais na coloração dos filetes de taquara (da família do bambu) que contribuíam na formação dos desenhos básicos tradicionais. O professor indígena Eloir Werá Xondaro traduz no papel os grafismos mais recorrentes visualizados nos cestos mbyá-guarani: Ipara kora: grafismo fechado, simboliza a pele de algumas cobras; Ipara korente: grafismo em forma de corrente, simboliza as relações entre as comunidades Guarani, seja de parentesco ou de amizade; Tanambi pepo: simboliza as asas de um tipo de borboleta; Ipara ryxi: grafismo em fila, simboliza pessoas em fila indo para a caça, para a coleta de frutos, para a pesca, para a busca de material para a confecção do artesanato.

Os adjaká usados nos rituais realizados na Opy não podem ser afetados por nenhum elemento externo. Devem ser criados com “elementos crus”, ou seja, as lascas retiradas do bambu e do porongo não devem receber tintura artificial, sendo assim, diferenciados daqueles que entram no circuito comercial.

Na Aldeia Tekoa Mbo’yty, Dona Lídia e sua mãe, Dona Juventina, exercitam sua sabedoria na arte do trançado, uma matemática complexa geradora de superfícies ritmadas. Cada trançado tem seu próprio autor, apontado através de grafismos identificadores de determinadas famílias. As formas evoluem no cotidiano, novas combinações são criadas e compartilhadas pelo grupo que as incluem em seu repertório cesteiro.

Apesar de designar tradicionalmente uma produção feminina, na Aldeia Tekoa Mbo’yty, alguns homens colaboram na feitura dos cestos: uns vão à reserva mais próxima coletar a taquara, uns ajudam no tingimento, outros na amarração inicial das fibras de taquara, ou até mesmo na produção total de cestos. É também comum contar com a colaboração de outras pessoas (homens ou mulheres), desde que pertencentes ao mesmo núcleo familiar, no processo de preparação das fibras, que são lascadas com a ajuda de uma lâmina delicada e afiada. Cada núcleo familiar desenvolve esse processo próximo a sua habitação-oca, estabelecendo seu território de criação coletiva. Uma trama resultante do entrelaçamento de fibras e também de corpos.

Os cestos, junto com outros objetos artísticos, encontram-se dispostos em uma ampla bancada para serem comercializados aos turistas que visitam a aldeia. Os objetos são dispostos por aproximações de categoria e autoria, que por sua vez são agrupados de acordo com os núcleos familiares. Conferem um modo de exposição segundo critérios estéticos autóctones. Essa disposição e agrupamento se aproximam do modo como os Guarani concebem a organização social e cosmológica do grupo no espaço/tempo (Ara Ypy), uma organização que prima por seus núcleos familiares, sejam eles da ordem da natureza ou da sobrenatureza.

A comercialização dos objetos artísticos se constitui como modo primordial de subsistência, tornando a vida dos mbo’yty cada vez mais entrelaçada à dos não-índios. Além do recurso material obtido pela venda dos objetos, essa interação estabelece um espaço de diálogo intercultural, uma comunicação estética mais ampla com o mundo externo e interno à sociedade mbyá-guarani. Um modo de subsistir pela via da arte – uma economia que se dá na produção de artefatos para o consumo externo – requer a ressignificação de sua cultura material, um entendimento que permita incorporar esse novo significado do nhanderekó mbyá-guarani, como argumenta Frade e Reis (2010).

O cesto adquire outro estatuto. A vida dos objetos relaciona-se diretamente ao universo que se pretende invocar. O sentido muda conforme o contexto no qual cada objeto se insere. “Os contextos podem mudar de forma radical, como acontece quando objetos e artefatos entram no circuito comercial interétnico, quando se tornam emblemas de identidade étnica, peças de museus ou ‘obras de arte’ ” (LAGROU, 2007).

Em comparação à disposição e significação dos cestos tingidos e os tradicionalmente sagrados no espaço da aldeia, é importante destacar as modificações operadas sobre esses itens ao mudarem de contexto. Ao serem transportados e reorganizados em museus, os cestos adquirem contornos de artefatos componentes, a partir de então, da dinâmica que se realiza na interação com um espaço reservado às instituições identitárias da arte institucional. O espaço de projeção da arte do corpo trançado configura-se, assim, em um ambiente imersivo, paisagem a ser desvendada pela incursão do espectador, privilegiando-se sua dimensão estética.

Os objetos da cultura material que no contexto tradicional tinham frequentemente, valor espiritual, são apreendidos como objetos estéticos, ao mesmo tempo em que são submetidos às leis de mercado do mundo da arte, conforme argumenta Stocking Jr. (1985). Blanca Dian Brum (2004) pontua que inserir esses objetos em outro sistema de representação quebra o elo de uma cadeia de significações, muitas vezes inoperante, capaz mesmo de criar barreiras epistemológicas no sentido da compreensão desses objetos e das sociedades que os produzem. Dessa forma, ambos, propõem a ampliação das categorias de apreensão e compreensão dessas produções estéticas, dessas sociedades e das práticas que as envolvem, compreendendo-as como textos simbólicos, como discursos que são uma dimensão fundada na oralidade. “Tudo significa, tudo é texto, que devemos aprender a ler, tudo é discurso que devemos aprender a ouvir para poder efetivamente mergulhar nessas culturas, compreendê-las e respeitá-las” (BRUM, 2004).

Os professores guarani Arnildo Werá e Eloir Werá Xondaro, ao visitarem a exposição no Museu do Índio – RJ, reclamaram da falta de um monitor nativo para falar um pouco sobre o contexto em que os objetos são produzidos – “apresentar seu olhar sobre si mesmo”. Estranharam também a seleção dos objetos expostos no museu, pois concebiam que veriam “coisas de antigamente”, que remetessem à história de seus ancestrais, como arcos, flechas e lanças; panelas produzidas com argila; pratos, colheres e canecas confeccionadas com sementes; colchão feito de folha de palmeira trançada; instrumentos, entre outros, que a memória dos jovens não alcança.

Não sei, talvez eu possa estar errado. É algo importante que está sendo mostrado aqui, mas isso é da atualidade. Se a gente voltasse um pouco para a antiguidade, para a história dos nossos ancestrais, veríamos coisas diferentes aqui, uns instrumentos diferentes e até mesmo o artesanato um pouco mais diferente. Mas isso não quer dizer que isso aqui não é importante para a sociedade guarani hoje em dia. Isso aqui é uma exposição de grande importância para nós. Através dessa exposição talvez a sociedade dos juruás dê mais importância ao povo Guarani. Não só aqui no Rio de Janeiro, mas em todo o território nacional. Isso é de muita importância para nós. São iniciativas assim que nos fortalecem. Os Guarani estão sendo um pouco esquecidos. Muito se fala de índio, mas pouco se fala dos Guarani. Existem várias etnias no Brasil. Principalmente os Guarani do Sul, de onde eu venho, é pouco falado, pouco lembrado. Os Guarani estão aqui no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Sul, em Santa Catarina, na Argentina e no Paraguai. O povo Guarani está vivo, sua cultura está viva, seus costumes estão vivos. Então, isso nos fortalece, não só fortalece como uma aldeia, mas como um todo, o povo no geral assim. Eu fico feliz pelos meus parentes terem conseguido esta oportunidade de estar mostrando um pouco das aldeias. E eu parabenizo esses guerreiros pela coragem também de estar expondo isso assim. Também fico muito feliz. Mas, o importante é mostrar a iniciativa, mostrar o suficiente para a sociedade conhecer um pouco da cultura guarani, mas isso não é suficiente (Depoimento de Eloir Werá Xondaro, 2010).

Há ainda muito a se fazer no campo da patrimonialização e/ou musealização dos bens materiais e imateriais indígenas dos Mbyá-Guarani. Há que se pensar outras políticas públicas de valorização, reconhecimento e conservação da cultura material e imaterial indígena, mas certamente políticas que contemplem o protagonismo indígena. Nesse sentido, o Museu do Índio apresenta algumas iniciativas como essa exposição, ainda que com uma participação “tímida” dos índios, bem como com oferecimento de cursos no campo museológico que qualifique, os próprios Guarani, como pesquisadores de sua cultura, conforme dito por José Carlos Levinho (2010), diretor do Museu do Índio: “Tem que ter formação, tem que ter qualificação, fornecer as ferramentas e deixá-los administrar e mostrar também os caminhos, porque não adianta fazer um feijão com arroz sem qualidade”. Mas como o próprio Guarani Eloir (2010) salienta: “isso não é suficiente”.

Baseado em texto de Maria Cristina Rezende de Campos –
“A arte do corpo mbyá-guarani: processos de negociação, patrimonialização e circulação de memória”

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