A
arte do corpo mbyá-guarani se desenvolve no tekoa, lugar onde se pode viver e agir conforme seus
próprios costumes, leis, tradição e sabedoria, sendo, pois, necessário
compreender sua constituição, organizada simetricamente no plano da relação
natureza-cultura, metáfora fundadora da sociedade guarani.
No
início dos tempos, Nhanderu Ypy
(Pai Primeiro) criou uma mulher Nhandesy
Ypy (Mãe Primeira) que gerou dois gêmeos: Kuaray (Sol) e Jasy
(Lua). Nesse começo, todos os seres vivos eram humanos, porém num dado
momento, de acordo com suas ações, grupos foram (trans)formados em vegetais e
animais, surgindo então, outros núcleos familiares. Esses núcleos familiares –
humanos, vegetais e animais – convivem no mesmo espaço-tempo – o Ara Ypy – circundados
pelos Espíritos e Divindades. Esses Espíritos e Divindades vivem no espaço
entre os núcleos, energizando essa rede. Como agentes operadores do universo
cosmológico guarani, materializados na fumaça aspergida pelo petÿngua – cachimbo guarani –, provocam
relações de interação, resultando em diferentes elaborações criativas.
Se
os humanos veem-se como humanos e são vistos como não-humanos – como animais ou
espíritos – pelos não-humanos, então, “os
animais devem necessariamente se ver como humanos. Se todos têm almas, ninguém
é idêntico a si. Se tudo pode ser humano, então nada é humano inequivocamente”.
Dizer que animais e espíritos são gente é dizer que são pessoas, é atribuir aos
não-humanos capacidades de intencionalidade consciente e de agência. Tais
capacidades são reificadas na alma ou espírito. “É sujeito quem tem alma e tem alma quem é capaz de um ponto de vista”.
O ponto de vista cria o sujeito e será sujeito quem se encontrar ativado ou
agenciado pelo ponto de vista – a perspectiva cria o sujeito (Viveiros de
Castro, 2002). O perspectivismo, concebido por Viveiros de Castro, é um
conceito que qualifica um aspecto muito característico de várias, senão todas,
as cosmologias indígenas.
O
esquema de origem do povo Guarani corrobora o perspectivismo apontado por
Viveiros de Castro. Trata-se da noção de que o mundo é povoado de muitas
espécies e seres dotados de consciência e de cultura e de que cada uma dessas
espécies vê a si mesma e às demais espécies de modo bastante particular: cada
uma se vê como humana, vendo todas as demais como animais ou espíritos. Todo
ser que ocupa vicariamente o ponto de vista de referência, estando em posição
de sujeito, apreende-se sob a espécie de humanidade.
A
humanidade é menos o nome de uma substância e muito mais um tipo de relação que
todo ente tem consigo mesmo. Significa que toda espécie vê a si mesma como humana.
Significa que o que é humano é o "se ver", muito mais do que aquilo
que se está vendo. É o pronome reflexivo que define a humanidade. Ao se ver,
todo sujeito vê-se como humano. Nesse sentido, a humanidade também é uma
relação. Para Viveiros de Castro, sujeitos e coisas não existem por si mesmos,
mas sempre a partir da relação em que estão inseridos. A relação vem antes da
substância e, portanto, os sujeitos e os objetos são, antes de tudo, efeitos
das relações em que estão localizados e assim se definem, redefinem, se
produzem e se destroem na medida em que as relações que os constituem mudam.
No
entanto, essa é uma tradução apontada por Viveiros de Castro e Bruno Latour. O
eixo epistemológico da distinção clássica entre natureza e cultura defendida
por Lévi-Strauss, parte da compreensão de que tudo que é universal no homem
corresponde à ordem de natureza e se caracteriza pela espontaneidade, enquanto
tudo que está sujeito a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos
de relatividade e particularidade, portanto recebe as interferências das
diferenças conjunturais, étnicas e simbólicas de cada povo, do contexto social
e de outros fatores, como o econômico, o político e o ideológico. Lévi-Strauss
observou que, para os “selvagens”, a humanidade cessa nas fronteiras dos
grupos, ao mostrar que eles faziam as mesmas distinções ao se considerarem como
“humanos verdadeiros”. Para o autor, eles distinguiam a natureza da cultura. A
universalidade da distinção cultural entre natureza e cultura atestava a
universalidade da cultura como natureza do humano.
Para
Hélène Clastres, a cultura é a marca do sobrenatural na Terra imperfeita, o
signo de uma eleição que separa os homens da animalidade. Os ritos religiosos
dos Guarani, a gesta de seus heróis míticos, são governados pela crença de que
o homem pode ascender à imortalidade sem passar pela prova da morte, e que
depende de cada um a boa escolha de sua vida, o que possibilitará o alcance da
Terra Sem Mal.
Serem
as testemunhas dos deuses na terra má faz com que os homens existam na
ambiguidade. Habitantes da terra imperfeita, eles mesmos são imperfeitos,
sujeitos às leis da natureza – nascem, geram, morrem. Por outro lado,
separam-se do resto dos seres vivos pela cultura, isto é, pelo reconhecimento
de uma força necessária de outro tipo, sobrenatural (CLASTRES, H., 2007).
José
Savio Leopoldi, por sua vez, compreende que a fala marca a distinção entre os
homens e os animais. A fala é privilégio exclusivo dos humanos. Ainda que
possam comunicar-se por outras vias, os animais não falam, ou seja, não usam
palavras com acepções específicas, que navegam pelas abstrações e simbolismo
inerentes à teia de significados ao que se convencionou chamar cultura. Vale
ressaltar, entretanto, que se considerarmos a perspectiva dos índios que
concebem humanos e animais como parte de um mesmo universo cultural, onde estabelecem
uma relação intrínseca, o som que os animais emitem pode ser compreendido como
uma forma de comunicação tão significativa quanto a fala humana.
No
mito de origem do povo Guarani, Kuaray (Sol) e seu irmão gêmeo Jasy
(Lua) presenciaram, no ventre da mãe (Nhandesy Ypy), sua
morte. Ao percorrer as trilhas da floresta à procura do marido (Nhanderu Ypy)
que havia deixando sua criação, a Terra, foi comida pelas onças esfomeadas.
Seus filhos, depois de crescidos, resolveram vingar a morte da mãe: construíram
armadilhas e mataram quase todas as onças, deixando somente uma, que estava
prenha, garantindo a continuidade da espécie, e consequentemente, a manutenção
do estado de alerta frente os desafios da “Terra Com Mal”. Kuaray,
após inúmeras aventuras vividas sobre a Terra com seu irmão Jasy,
decidiu deixá-la para ir ao encontro de seu pai, que vivia em outro espaço
cosmológico, o Ara Ypy – o universo, o tempo/espaço guarani. Sua
preparação para isso consistiu em jejuar, dançar e rezar até sentir-se
suficientemente leve, de modo a poder alcançar este tempo/espaço, caminho
aberto por uma sequência de flechas lançadas por Kuaray. O Sol, Kuaray,
que vem do leste, orienta a crença guarani, é como uma luz que circula por toda
a Terra, iluminando e abrindo o caminho para todos trilhar. Assim, esse mito de
origem funda o nhanderekó (jeito de ser guarani): a trilha é repleta de
armadilhas, sendo necessário jejuar, dançar e rezar para manter o corpo em
estado de alerta, e somente desse modo o corpo estará autorizado a receber a
luz que iluminará e abrirá o caminho de encontro ao Pai (Nhanderu), que
vive na Terra Sem Mal.
A
importância dos mais velhos, para os Guarani, é explícita na refeição matinal: momento
de partilha em que o mais velho, após ouvir as histórias dos mais novos,
orienta o melhor caminho a seguir, caminho esse que possibilitará a alegria –
sair pela mata, visitar um parente em outra aldeia, ir à cidade, procurar outro
lugar para morar, entre outros desejos – simbolizando uma ideia de movimento
orientado. As andanças guarani, que requerem a orientação dos mais velhos, que,
por sua vez, foram orientados por Nhanderu: é preciso estar atento, pois
na mata vivem os Espíritos que controlam as espécies de bichos e os elementos
da natureza. É também o lugar de possíveis encontros que põem em risco a vida
das pessoas.
Um
casal de deuses primeiros estabelece com os humanos uma relação afetivamente
parental. Corpos e nomes, almas e ações, o eu e o outro se interpenetram,
mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo, meio esse cujo fim a
mitologia se propõe a contar. Os animais e outros seres do cosmo se encontram
na qualidade de sujeito. Todos se assemelham.
Do
ponto de vista de sua qualidade de sujeito, de subjetividade, eles são
idênticos, sejam animais, plantas ou espíritos, se diferenciam por sua
fisicalidade, pelo mundo de relações que lhe oferecem as pesquisas de seus corpos
de espécie
(Viveiros de Castro, 2006).
Os
deuses, mais do que todos, são como os humanos, pessoas corpóreas, vivas e atuantes.
Essa similitude, não apenas de aspectos, mas de destinos e relações, sugere aos
humanos serem como os deuses, em perfeição interior. É dessa troca contínua de
afetos e afecções que emana a arte do corpo nhanderekó experimentada no tekoa
e apresentada no museu.
Baseado
em texto de Maria Cristina Rezende de Campos –
“A arte do corpo mbyá-guarani: processos
de negociação, patrimonialização e circulação de memória”
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