sábado, 23 de agosto de 2014

CORPO CERIMONIAL – RELAÇÃO PALAVRA ALMA


Na concepção dos Guarani a alma está vincula à palavra, e essa alma de origem divina está destinada a desenvolver-se até alcançar a plenitude. Cada pessoa é uma encarnação da palavra, a alma se faz com a história de vida da pessoa e as palavras formam a sinfonia de sua vida. “A alma, enquanto princípio de individuação que faz do corpo vivo uma pessoa, confunde-se com o nome próprio: a alma é o nome” (CLASTRES, P., 2004). O nome da pessoa é o fundamento fora do qual a pessoa não terá outro suporte válido. Cada ser nasce com uma cifra poética, descortinada em parte em sua nominação, que acompanha a pessoa desde seu nascimento até a sua morte. A concepção do ser humano é atribuída ao sonho, sonho que gera uma palavra. A pessoa será, então, uma “palavra sonhada”, um ato de conhecimento sonhado.

O mito de origem Mbyá, traduzido por Hélène Clastres (2007), esclarece que a Terra que primeiro existiu, Yvy Tenonde, foi criada por Nhanderu Papa Tenonde, também chamado Nhamandu Ru Ete. O Pai Primeiro “ergueu-se” e concebeu a linguagem. A palavra-alma, que circula no esqueleto, é o que mantém ereto o Guarani; e é somente quando a criança consegue ficar de pé e começa a andar que lhe é atribuído um nome guarani que marca a procedência (leste, oeste, norte, sul ou zênite) da palavra-alma que se encarnou nela.

Zélia Bonamigo (2008) recolheu, em sua pesquisa entre os Mbyá-Guarani da ilha da Cotinga, tekoa Pindoty, em Paranaguá-PR, dados reveladores sobre os Ñee ru ete – “Pais das almas” - que transmitem os nomes dados às crianças, tornando-os seus parentes. São eles: Jekupe e sua esposa Iva, sinônimos de Jakaira e Ysapi (primavera – cuidam da fonte da neblina – habitam o Norte); Kuaray e sua esposa Jachuka ou Ara (seres semelhantes ao sol – habitam o Leste); Vera ou Tupã e sua esposa Para (seres que lembram água, trovões, raios e chuvas – habitam o Oeste); Karai e Kerechu (seres guerreiros relacionados com o fogo – habitam o Sul). Esses seres se comunicam e circulam constantemente entre seus domínios. Quando Nhamandu Ru Ete concebeu essas divindades, conferiu-lhes o encargo das palavras-almas dos futuros homens. São eles que o cerimonialista – pajé, rezador ou xamã – invoca para saber de onde vem a alma da criança e qual é o seu nome. É essa palavra que providencia um lugar para si no corpo do novo ser.

A transposição dos nomes acontece durante o ritual Nimongarai ou Nhemongarai  – a, em ocasião da colheita do milho, durante o mês de janeiro – momento em que são revelados e distribuídos os nomes em língua Guarani às crianças da aldeia que, segundo os Mbyá, representam suas verdadeiras "almas" (SCHADEN, 1982). Traduzido provavelmente pelos missionários e assimilado pelos Guarani como “batismo do milho ou batizado”, o Nimongarai apresenta características autóctones que o torna significativamente diferente do batismo cristão.

O Nimongarai age no fortalecimento do corpo de cada indivíduo, inscrevendo-o no círculo de relações sociais. As crianças nascem com uma alma provisória e somente após o rito de nominação recebem, através da palavra, uma alma permanente, que deve ser cuidada. Palavra e alma se agenciam a partir do próprio significado do prefixo nhe que precede o termo mongarai – palavra-alma de origem divina. Pissolato (2007) ressalta que o corpo se mantém erguido na Terra “na medida em que os humanos sejam capazes de preservar o fluxo de ‘palavras’ – nomes, cantos, potencialidades dizíveis –, as quais se devem ‘fazer erguer’ quando enviadas pelos pais e mães divinos dos Mbyá ou de suas almas-palavras”.

Quando o pajé, rezador ou xamã não descobre o nome da criança, é sinal de que nenhuma palavra se encarnou nela e de que não sobreviverá. Tonico Benites (2009) conta que quando a pessoa morre a alma volta para o lugar de onde veio. Até o doze anos de idade essa alma se encontra em estado de instabilidade, podendo, a qualquer momento, se afastar ou ser atacada pelos predadores invisíveis. O corpo-alma dos mais velhos tem maior estabilidade, porém necessita de um desenvolvimento espiritual intenso, através de rezas diárias, para manter o estágio desejado.

A morte é a perda da palavra; a alma, o princípio vital, que anima e mantém ereto o corpo guarani. Quando acometidos por alguma doença grave, os Guarani consideram que o doente recebeu um nome-alma que não lhe convém, sendo necessária uma nova busca. Pierre Clastres explica:

O xamã parte então em viagem para descobrir o verdadeiro nome. Quando este lhe é comunicado pelos deuses, ele o faz conhecer ao doente e a seus parentes. A cura prova que ele efetivamente descobriu o verdadeiro nome do paciente. Enquanto seu espírito está em busca da alma perdida (indo às vezes muito longe, até o Sol), o xamã dança e canta em volta do paciente. (CLASTRES, P., 2004).

A viagem de descoberta do verdadeiro nome da criança pode não resultar em retorno breve, ou seja, compatível com o tempo estimado para realização do ritual. Na ocasião da nominação da filha do cacique Darci Tupã, em janeiro de 2010, a pajé Dona Lídia, encarregada de realizar a nominação da criança, não recebeu a comunicação dos deuses evocados. Dona Lídia argumentou que “seria preciso muita reza”, conforme suas palavras, para a revelação do nome da criança e que somente no próximo ciclo do ritual faria nova tentativa. O ciclo relaciona-se ao plantio do milho (avaxi), que é semeado na primeira lua minguante de agosto e colhido em janeiro, época dos “tempos novos”, marcada para a realização do batismo das crianças. Em janeiro do ano seguinte, a filha do cacique recebeu sua palavra-alma, adquirindo, desse modo, maior estabilidade para seu corpo-espírito.

No ritual Nimongarai, composto por várias cerimônias, os objetos rituais atingem maior significação no espaço sagrado da Casa de Reza (Opy), adquirindo, em grau mais elevado, o valor de ente, referência a uma dimensão espiritual compartilhada. Em preparação e como agradecimento pela revelação dos nomes-almas, os pais oferecem a Nhanderu na Casa de Reza alguns presentes.

O menino é representado pela oferta de um pequeno pote, feito de taquara, com mel de abelha jataí ou ey jatei e/ou uma pequena flecha ou uy, e/ou um pequeno chocalho ou mbaraka feito com a cabaça ou yh’a kua e sementes de kapi’i’ ou planta chamada rosário. A menina é representada por um takua pu, instrumento musical feito com madeira ou taquara, usado pelas mulheres durante os cantos sagrados, e/ou pelo mbojapé ou pão de milho, feito com sementes de milho, batizadas anteriormente pelo pajé, pão que também pode ser feito de fubá de milho não-guarani. A flecha simboliza a força e a coragem para uma boa caça ou sucesso em tudo o que o Mbya-Guarani faz. O mel é alimento tradicional que acompanha o milho, que fortalece o corpo e acolhe as visitas. O bolo de milho simboliza o alimento que dá força e saúde, e o takua pu significa que a menina sempre estará presente nos rituais da casa de reza (BONAMIGO, 2008).

A água depositada na canaleta do cedro para ser aspergida na cabeça da criança; a fumaça aspirada através do petÿngua, provocando uma névoa exorcizadora das forças negativas; os instrumentos musicais, o canto, a dança, o milho e o mel criam um corpo aureolático vivificador e integrador do sistema de pertença mbyá-guarani.

As diferentes habilidades e capacidades de desempenhar certas tarefas que o corpo assume são um espaço de emergência das diferenças, uma imanência da multiplicidade do Ser. Um modo pelo qual os diferentes tipos de corporalidade experimentam naturalmente o mundo como multiplicidade de afetos e afecções, cujas formas emanam a arte do corpo cerimonial dos Mbo’yty.

Assim como não possuem um nome como se fosse uma “coisa” (CHAMORRO-ARGÜELLO, 1999), os Mbyá também não percebem os objetos distanciados do mundo animado, mas como formas humanizadas e humanizantes. “A humanidade emerge de uma troca de intencionalidade, que se revela ou se cristaliza progressivamente. (...) O pertencer ao gênero humano é elástico em sua extensão e flutuante no tempo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006). “Os objetos apontam necessariamente para um sujeito, são encarnações materiais de uma intencionalidade humana” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).

O devir mbyá-guarani, que vai se amalgamando e se diferindo no tempo, altera marcas, suportes, meios que, por sua vez, geram novas produções e novas subjetividades. Os cestos confeccionados com a fibra de taquara natural, os instrumentos musicais, o milho e os bastões cerimoniais pendurados em um bambu – elementos usados nos rituais– compõem o cenário místico. O canto e a dança dirigidos aos deuses são celebrados, invocando o fortalecimento dos participantes. A fonte de inspiração dos cerimonialistas remete às conquistas sobre o mundo desconhecido, de vizinhos inimigos ou seres naturais e sobrenaturais invasivos e ameaçadores do bem-estar guarani.

Baseado em texto de Maria Cristina Rezende de Campos –

“A arte do corpo mbyá-guarani: processos de negociação, patrimonialização e circulação de memória”

Nenhum comentário:

Postar um comentário