Os Tiriyó que vivem no
Brasil compartilha, desde o final dos anos 1960, a faixa oeste do Parque
Indígena de Tumucumaque, com Katxuyana, Txikuyana, Ewarhuyana e Akuriyó.
Algumas famílias tiriyó encontram-se na faixa leste do parque, convivendo mais
com Aparai e Wayana que habitam no médio e alto curso do rio Paru de Leste. No
Suriname, onde vivem em maior número que no Brasil, os Tiriyó encontram-se nos
rios Tapanahoni, Sipariweni e Paroemeu.
Costumam dizer
que “Tiriyó” é o nome que o branco lhes deu. Quando falam em sua própria língua
identificam-se como “Wü Tarëno” (Eu sou Tarëno), que significa “Eu sou
daqui, dessa região”.
Até a década de
1960, época da chegada dos missionários em sua região, os ascendentes dos
atuais Tiriyó reconheciam-se como pertencentes a grupos diferenciados, com
denominações próprias. Relacionavam-se entre si, e com outros grupos indígenas
vizinhos, por meio de redes de troca, guerra, migração e comércio. Por
compartilharem uma ampla faixa de terras consideravam-se todos Tarëno, ou seja,
“os daqui” (dessa região), e que inclui diferentes grupos, dentre os quais se
encontram identificados em fontes escritas e orais os próprios Tiriyó, Aramixó, Aramayana,
Akuriyó, Piyanokotó, Saküta, Ragu, Yawi, Prouyana, Okomoyana, Wayarikuré,
Pianoi, Aramagoto, Kirikirigoto, Arimihoto, Maraxó e outros. Com a
chegada dos missionários franciscanos no lado brasileiro de suas terras, e
protestantes no lado surinamês, todos esses grupos foram englobados sob o nome
“Tiriyó” no Brasil, e “Trio” no Suriname. Por esses nomes genéricos que se
tornaram mais conhecidos, passando então a utilizá-los no contato interétnico,
sem no entanto deixarem de continuar designando-se, em sua própria língua e
entre os seus, como Tarëno.
Os Tiriyó vivem, de longa data, num
meio multi-lingüístico, seja por conviverem historicamente com a imensa
diversidade dialetal e lingüistica própria dos grupos Karib, Tupi e Aruak da
área guianense, assim como dos grupos de africanos e descendentes refugiados
que povoaram a região e arredores. Ademais, por viverem em ambos os lados da
fronteira Brasil/Suriname, há mais de meio século parte dos Tiriyó que vive no
lado brasileiro convive com falantes do português e do alemão, e parte que vive
no Suriname convive com falantes do holandês e do inglês. Assim, além de sua
própria língua, os Tiriyó falam, ou pelo menos compreendem, as línguas dos
grupos, agentes e países com os quais mantêm relações mais estreitas.
As
primeiras notícias a respeito de grupos que mais tarde vieram a compor os
atuais Tiriyó remontam ao século XVII. Mas é somente na segunda metade do
século XX que abandonam a condição de relativo isolamento em relação aos ocidentais.
Até então, mantinham uma densa rede de trocas e guerras entre si e com os
demais grupos indígenas vizinhos, além de manterem relações comerciais com
os Mekoro (negros refugiados da
antiga Guiana Holandesa), por meio de quem obtinham bens manufaturados em troca
de produtos nativos. Seus contatos com ocidentais eram indiretos ou
esporádicos, quando da presença de viajantes em algumas de suas aldeias.
Até 1950, consta de fontes escritas e orais alguns contatos
diretos de grupos ancestrais dos Tiriyó com ocidentais. Em 1906, Goeje, tenente
neerlandês, visita algumas aldeias e recolhe as primeiras notícias mais
detalhadas. Em 1928, por ocasião de uma viagem de inspeção de fronteiras, o
então General Rondon encontra os “Maratchó”
e os “Ragú-Prouyana”. Nove anos mais tarde, o
Comandante Braz Dias de Aguiar faz contatos com os Maratchó do alto rio Panamá
e com grupos das cabeceiras dos rios Marapi, Cuxaré e Paru de Oeste. Ainda no
decorrer da primeira metade do século XX, principalmente na década de 50,
alguns aventureiros e expedições de exploradores mantiveram contatos
esporádicos, mas deletérios com grupos da região, causando doenças graves e um
aumento significativo de mortes nas aldeias da região.
É apenas nos anos 60, com a chegada de missões religiosas na área,
que este quadro começa a se reverter. Nesse período, a Força Aérea Brasileira
(FAB) abriu um campo de pouso na região, promovendo assim o início da
instalação da “ Missão Tiriyó” no lado brasileiro. Na mesma época, surgiram no
Suriname duas missões protestantes, que passaram a disputar entre si a
centralização do maior número possível de grupos indígenas dos arredores. De
fato, muitos Tiriyó atravessaram a fronteira atraídos pelas missões protestantes,
enquanto os que permaneceram no Brasil aglomeraram-se em torno da missão
católica que se estabeleceu no alto Paru de Oeste.
ORGANIZAÇÃO
SOCIAL
Nos
locais denominados “pata”,
é possível identificar a unidade sócio-espacial básica de referência para os
Tiriyó. Pata equivale
ao que costumamos designar, genericamente, de aldeia. Em tiriyó, pata significa
lugar de moradia, e cada um destes lugares está associado ao seu “pataentu”,
ou seja, ao “dono do lugar”, aquele que identificou, escolheu o local e nele
reuniu um conjunto de parentes bi-laterais.
Cada pata é composta por uma única ou por um conjunto de unidades
residenciais, denominadas pakoro.
Em cada pakoro, normalmente, vive um casal com
seus filhos solteiros e/ou com sua filha e genro recém-casados - composição
básica de um imoitü, termo que designa grupo familiar de parentes
co-residentes.
Imoitü
é uma categoria que designa a existência de parentesco (real ou virtual) e de
co-residência, mas possui um caráter relativo e necessita de um referente
espacial para que se possa compreender, contextualmente, seu escopo de
referência. Neste sentido, as possibilidades de composição de um imoitü variam
conforme o âmbito que se tome, e ao longo de um gradiente que vai da família
nuclear, que co-habita em uma mesma pakoro,
passando pelo conjunto de parentes bi-laterais que co-habitam em uma mesma
pata, ou ainda por um conjunto de parentes bi-laterais que residem em duas ou
mais pata relativamente próximas. É possível chegar até um limite genérico, em
que a co-residência no mesmo território, de um ponto de vista mais amplo,
designa o pertencimento ao conjunto dos imoitühton (plural de imoitü num
sentido coletivo).
O número de pakoro existentes
em uma pata varia de acordo com o número de parentes que o pataentu consiga
reunir e conforme o tempo de existência do lugar. A disposição das pakoro ocorre
em torno de um espaço denominado anna,
que é uma espécie de praça pública, equipada com uma toëfa (tábua de dança), onde ocorrem as festas. Normalmente, há
ainda, no espaço da anna, uma casa de reuniões, frequentemente de formato oval
ou retangular, denominada paiman.
O território mais amplo que circunscreve o conjunto das pata em
que reside toda população é designado “Tarëno
nono”, ou seja, “terra dos Tarëno”.
Embora seja possível constatar que não há uma distribuição aleatória, mas um
padrão de ocupação baseado na formação de conjuntos de pata em torno das
principais bacias deste território, não há, em tiriyó, termo específico para
designar tais conjuntos.
Assim, enquanto pakoro (casa), pata (aldeia)
e tarëno nono (território)
servem para designar realidades ao mesmo tempo físicas e sociais, sendo
portanto unidades sócio-espaciais de referência, os conjuntos de pata que se
formam em torno das bacias do “tarëno nono” não encontram, em termos nativos,
uma concepção que permita recortá-los enquanto unidades sociológicas. Tais
conjuntos, de fato, constituem realidades físicas e sociais, mas não configuram
“unidades”, e sim “dinâmicas” que são fruto das relações entre as unidades
sócio-espaciais básicas tiriyó, ou seja, entre as pata.
Fisicamente, apresentam-se na forma de “aglomerados” de “aldeias”
em torno dos cursos de alguns rios. Na falta de termos nativos, a noção de
aglomerado permite descrever uma realidade que, de fato, aparece-nos de forma
altamente fluida e provisória, porém, se tomamos a falta de termos nativos como
um indício de que entre a unidade social básica (pata) e a unidade social mais
ampla (tarëno nono) não há “unidades” sociais intermediárias, nem simplesmente
“fluidez”, mas “dinâmicas” sociais que funcionam sob formas específicas de
articulação social, então a noção de “redes de sociabilidade” se torna mais
útil à compreensão da paisagem sociológica da região.
Com base nesta perspectiva, tem-se nas redes de relações entre os
pataentu a espinha dorsal da estrutura social tiriyó, e na pata, a unidade
sociológica básica de referência desta estrutura. O nível de maior densidade
nas relações sociais é dado pela co-residência entre o pataentu e sua parentela
bi-lateral, que equivale ao seu “yimoitü” (“minha família” ou “meus parentes
co-residentes”). No interior de cada pata, a parentela de um pataentu tende a
manter, entre si, relações estreitas e preferenciais de troca matrimonial. Cada
parentela local corresponderá a uma única ou a mais de uma pakoro,
conforme sua extensão e sub-divisões. Em seguida, há o nível inter-local, dado
pelas relações entre os pataentu de lugares diferentes. Neste nível, cada pata
funciona como unidade trocadora e estabelece, através de seus sub-componentes,
as pakoro, trocas simultâneas com membros
de outras pakoro, de diferentes lugares.
Formam-se, assim, múltiplos direcionamentos nas relações de troca.
RITUAIS
Dentre os
rituais que acionam o funcionamento das redes de relações inter-comunitárias,
destacam-se o diálogo cerimonial e as festas. Ambos têm em comum o potencial de
fazer e desfazer os laços que interligam o conjunto das comunidades locais,
que, no caso tiriyó, corresponde ao conjunto das patahton (plural de pata), e têm ainda em comum, embora por mecanismos
distintos, o poder de transformar quem era “de fora” em alguém “de dentro” e
vice-versa.
Cada um destes
rituais, porém, corresponde a âmbitos distintos. O diálogo cerimonial põe em
foco relações entre membros de diferentes itupü, tendo como figura principal o tamutupë (chefe de uma itupü);
e as festas põem em foco relações entre membros de diferentes pata, tendo
dentre seus principais protagonistas a figura do pataentu (dono do lugar). Do ponto de vista das relações internas às
fronteiras sócio-culturais nativas, o diálogo cerimonial e as festas permitem
que relações do tipo kutuma (relação entre
não-parentes) sejam administradas e que sejam viabilizados, ou evitados, o
estabelecimento de novos laços.
Cada um destes
rituais encerra, a seu modo, um sinal positivo e outro negativo. Por meio do
diálogo cerimonial, que implica um desafio de argumentos entre chefes de itupü
diferentes, ambas as partes podem sair com vantagens iguais, ou uma delas em
desvantagem. E, por meio das festas, por um lado surgem novas possibilidades de
trocas matrimoniais ou materiais, mas, por outro lado, o contato com quem é “de
fora” abre margem para novos conflitos e descontentamentos. Mas este é um jogo
político com o qual os Tiriyó se mostram muito bem familiarizados, de tal forma
que o seu mundo é impensável sem essas instituições ou sem formas adaptadas
delas. É por meio delas que se negociam casamentos e bens, assim como se
recebem visitantes.
Em contextos
que extrapolam as fronteiras sócio-culturais nativas, como é o caso das
históricas relações de comércio com os Mekoro (negros), bem como em
contextos recentes, de maior convívio com os Karaiwa (brancos do continente) e
com os Pananakiri (estrangeiros de
além-mar), observa-se na performance dos encontros, apesar das evidentes
dificuldades linguísticas, a tentativa de administrar as relações nos moldes
das relações baseadas no diálogo cerimonial.
Um momento na
vida dos Tiriyó especialmente interessante de ser focalizado, já que parece
condensar e confrontar todas as dimensões, valores e seres que fazem parte
deste mundo, é o da Festa. Os Tiriyó definem a Festa como uma “brincadeira” que
“tem que ser organizada”. O que remete à ideia de brincadeira na Festa são as
encenações e imitações de situações e de seres diversos que compõem o seu
universo. Também o clima lúdico em que os momentos se desenrolam e, ainda, a
leveza de estado de espírito dos participantes parecem apontar para a
pertinência de tal definição.
Em suas festas
fazem-se presentes os próximos e os distantes, os “iguais” e os “diferentes”,
os parceiros e os inimigos, os humanos e os não-humanos. Nelas, desenrola-se a sequência
mítica por meio da qual um estado de guerra inicial dá lugar a um processo de enyawa (termo que designa a
constituição de uma parceria), de tal forma que a aliança - que pode envolver
casamento, mas não necessariamente - entre uns e outros torna-se possível. Neste
sentido, paralelamente à ideia de brincadeira, a festa remete à ideia de
guerra. Com efeito, as etapas das festas tiriyó parecem corresponder ao
processo de afronta, guerra, apaziguamento e troca, ou então, de estranhamento,
familiarização e aliança recorrente em suas narrativas e mitos. É interessante
notar que os termos brincadeira e guerra parecem intercambiáveis. Assim, quando
um Tiriyó diz que a festa é uma brincadeira, bem poderia estar dizendo que na
festa se “brinca de fazer guerra”.
COSMOLOGIA
A origem do
mundo para os Tiriyó corresponde à própria origem do espaço e do tempo, para
além há o indizível, associado à escuridão, ao silêncio e à falta de movimento.
Kuyuri é o primeiro ser que
existiu, ainda sem forma, apenas com existência. Dizem que Kuyuri não tinha cara nem de
homem, nem de bicho, não tinha forma porque não foi feito por ninguém, ele
simplesmente 'brotou' (ahtao) da
mistura primordial que deu origem ao início dos tempos (pena ahtao), época definida como onde e quando a vida brotava 'sem
pedir', por si própria. Assim Kuyuri designa o ser dotado de
uma luz, surgido onde antes havia apenas a escuridão; de fala mágica, onde
antes havia só o silêncio; e de um fluido fértil, que antes era inerte.
O mundo de Kuyuri é descrito como uma
paisagem terrestre clara, circundada por um meio aquático, e envolta pela
escuridão. Neste mundo, Kuyuri vivia sozinho, tinha a
palavra, mas não tinha com quem conversar; enxergava mas não via ninguém. Seu
mundo era só espaço, sem tempo, porque nada acontecia. Ele era capaz de criar
por meio de sua palavra mágica e de sua luz, vendo diante de si o que nomeava.
Não querendo
mais ser único, Kuyuri, fruto de uma mistura primordial, precisava agora fazer
sua própria mistura para deixar de ser sozinho. Não bastava mais dar vida pela
palavra, era preciso moldar a vida pela forma e, então, diferenciar-se para
finalmente deixar de ser só. Kuyuri, que era homem, queria fazer uma mulher.
Foi então que, realizou a segunda mistura primordial, a partir de dois tipos de
matérias concebidas como inertes, quando isoladas entre si, tais como o barro, takuren, e o breu, warunu. O takuren é a matéria que Kuyuri extrai do interior de seu mundo claro e vazio para misturar com o
breu (escuridão) que extrai do exterior. Quando misturada com takuren, a
escuridão ganha qualidades próprias, transformando-se no espesso e denso fluido
vital sangüíneo denominado munu.
Tornado sangue, seu fluido espiritual que era sem cheiro, ipoinna, ganha aroma próprio, podendo tornar-se agradável e
desejável, tüpoinye, ou desagradável e indesejável, tüpoküne.
Diz-se que o
fluido espiritual de Kuyuri era incolor, koronna, e
tornou-se vermelho, tamire, que é
definido como a cor da vitalidade. E diz-se que o conteúdo fértil de Kuyuri era sem forma e sem
envoltório, e que, misturado ao barro e à escuridão, toma forma de 'fio',
formando assim a 'corda da vida', warumunu,
cujos protótipos são, para os homens tiriyó, o waruma (arumã) e a fibra de kurawa (curauá). Daí
se origina toda uma simbólica vinculada aos princípios masculino e feminino. A
começar pela forma que Kuyuri moldou a partir daquela
mistura de barro com breu, evocando uma estreita associação entre as vasilhas
de argila em geral, denominadas ëri,
e a mulher, wëri, não apenas a
humana, mas as fêmeas em geral, com forma corpórea e 'sangue por dentro'.
Diz-se que Kuyuri fez a sua primeira mulher
de argila, ërino, mas ela era muito
frágil. Quando ela se partiu, ele viu que tinha sangue dentro. E que, portanto,
a tentativa de Kuyuri não tinha sido em vão: a
forma era frágil, mas o conteúdo era vital.
A partir daí,
onde antes tinha apenas espaço instaurou-se o tempo e, com ele, o movimento da
vida. Os caminhos do fluido espiritual kupü
se espalharam e os lugares do sangue munu
se proliferaram ao longo do espaço e do tempo em que o espírito vital pü começou a percorrer, produzindo
incessantemente a sua própria continuidade.
Cada nova
criatura de Kuyuri é como se fosse um braço
seu, porque de cada uma delas depende a continuidade de seu espírito. Sob este
mesmo princípio, compreende-se que, se a continuidade do espírito de Kuyuri depende de suas criaturas,
a continuidade do espírito destas, depende, por sua vez, de um processo de
re-criação sem fim semelhante ao inaugurado por Kuyuri. Desde quando, querendo
deixar de ser só, misturou o barro takuren com a escuridão warunu, dando origem
ao sangue, para que seu espírito pudesse ser transportado de criatura em criatura,
e, assim, continuado, humanos e animais são concebidos como oto, 'corpos animados'. Porém,
diferenciam-se no que diz respeito à utilização da linguagem que permite a uns
e não a outros auto referenciarem-se como um oto que é wütoto, ou seja, gente. Diferenciam-se portanto quanto a sua
condição no mundo, ficando a condição humana reservada aos seres capazes de se
auto-referirem enquanto sujeitos continuadores do espírito de Kuyuri, que vivem
coletivamente 'como gente', wütoto me.
A LINGUAGEM DE KUYURI:
DOS PRESENTES E DOS ANTI-PRESENTES
O mundo deixou
de ser, por assim dizer, um mundo estacionado no espaço e no tempo a partir de
quando Kuyuri concebeu a forma corpórea
feminina como um invólucro (ëri) com sangue (munu) feito para receber o
espírito contido no fluido fértil masculino (kuru) e para produzir emukupünu ou simplesmente muku, que é a designação abreviada para
filho(a).
Desde então, a
cada filho que nasce, seja homem ou mulher, cabe aos pais ensiná-lo a saber
como se tornar capaz de continuar o espírito de Kuyuri, e, desde então a ordem
primeva, em que o mundo dividia-se em um conjunto de espécies feitas para
alimentarem e outras para serem alimentadas, não passou senão a dizer respeito
a uma matriz explicativa da linguagem pela qual Kuyuri se comunica com seu mundo. Porque de lá para cá, a memória tiriyó
foi sendo densamente povoada de histórias de seres que foram eleitos como pëeto (ajudantes, continuadores) e que,
não se mostrando capazes de retribuir Kuyuri com a continuação de seu espírito foram transformados em pëera, e de seres que chegaram a
mostrar-se pëera, cometendo erros de conduta, revelando-se incapazes em algumas
situações, mas que aprenderam a tornar-se pëeto, e, assim, transformaram-se em
eleitos e bem sucedidos continuadores do espírito dele.
Os eleitos de
Kuyuri, seus pëeto, são aqueles que
se mostram tüpuye, ou seja, como
capazes de continuar seu espírito, e é a eles que ele dá presentes, em forma de
alimentos, por meio dos quais ganham nome e existência em seu mundo.
Inversamente, cabe a estes dar nome e existência a Kuyuri dando-lhe de presente mais espírito e, assim, ad infinitum.
Tudo que Kuyuri disponibiliza para o
desfrute de suas criaturas é denominado ekaramahpë,
que designa um dar que é ao mesmo tempo um devolver, porque se concebe que quem
ganha um presente, ganha a devolução de sua própria existência diante de quem o
dá. Esta é a linguagem de Kuyuri, é assim que ele se comunica com suas
criaturas: ele favorece ou desfavorece as suas condições de vida e, no limite,
dá ou tira seu nome e existência, mostrando a elas e aos relacionados a elas
sua satisfação, imënna, ou
insatisfação, imë, com determinadas
condutas que possam interferir na continuidade de seu espírito. Tudo que Kuyuri quer de suas criaturas é
que se façam karime, noção que
envolve a aquisição de coragem, bem como de força e resistência física, em
busca da solidez da forma corpórea, para que o espírito ekapü, aquele que dá existência e nome aos corpos, encontre-se
protegido em seu interior.
E se é através
dos presentes, ekaramahpë, que Kuyuri demonstra sua avaliação
positiva quanto ao comportamento dos 'descendentes', ipëri, é através de seus 'anti-presentes', ekëriyatühpë, cujos protótipos são as monstruosas cobras ëkëimë,
que ele demonstra sua avaliação negativa. A estes seres que personificam sua
insatisfação, sob formas designadas pelo sufixo aumentativo -imë, Kuyuri dá existência ativa
quando seus ipëri se mostram pëera me, como incapazes, e os aquieta quando seus
ipëri mostram-se pëeto me, como capazes de conduzirem-se adequadamente.
YARAWARE E
URUTURA:
MASCULINO E FEMININO
Na exígua
literatura sobre cosmologia tiriyó, Yaraware
é descrito como um humano imerso no desenrolar da vida, tal como ela começou a
ser vivida no princípio dos tempos. E, com efeito, a partir das informações que
obtive junto aos Tiriyó, Yaraware é descrito como uma espécie de Kuyuri mundano, que
personificava, na terra, as potencialidades do espírito masculino de Kuyuri, ao
lado de sua esposa Urutura, que
revelava, em sua existência, o espírito feminino, tal como ele existiu desde
quando a mulher ainda não tinha forma corpórea, era apenas espírito.
Um espírito e
outro, masculino e feminino, surgem concebidos como dotados de potências
inversas, porém complementares: a fala do espírito feminino não é associada à
luz, como é a fala do espírito masculino, mas à escuridão. E a partir desta
diferença de base os Tiriyó explicam boa parte dos desdobramentos que seu mundo
tomou, desde quando Kuyuri misturou o barro com o
breu para que pudesse não ser mais único e, como tal, infecundo. Desta mistura
e da forma moldada a partir dela, deriva aquela estreita associação mencionada
acima, entre as vasilhas de argila em geral, denominadas ëri e a mulher, wëri.
A relação entre
ëri e wëri, 'recipiente' e 'mulher' assemelha-se àquela entre oto e wütoto,
'animal' e 'homem respectivamente, e me parece estar associada à diferença
entre o ser que é dotado de vida animada, tal como se concebe que seja a
argila, ëri, assim como o animal, oto, 'com sangue por dentro', e o ser que,
além de 'sangue por dentro', pode se auto-referir, através da linguagem, ou ser
referido por outrem como sujeito de uma vida animada.
A respeito
desta época definida como pena ahtao,
a memória tiriyó é prolífica em narrativas que tratam de encontros primevos,
não mais simplesmente entre matéria e não-matéria, como quando a vida brotava,
sem pedir das misturas primordiais, mas entre diferentes tipos de gentes que,
sendo dotados de fala, visão e movimento, concebiam-se indistintamente 'como
humanos', vivendo num mundo inteiramente relacional e comunicativo, causacional
e transformacional, que não estava dado diante dos olhos de quem o via, ele
era, ou deixava de ser aquilo em que o desenrolar das relações entre os seres o
transformava.
Se a lua nunca
se encontra no céu, com o sol, wei,
é porque um dia competiram entre si, viajando em canoas celestes, para ver quem
conseguia iluminar mais o mundo. Tendo perdido a competição para o sol, desde
então, a lua evita encontrá-lo, e só aparece quando ele já se foi. O sol é
concebido como um ser de Kuyuri, que preserva a continuidade de seu espírito e
que, enquanto tal, é associado às qualidades do espírito masculino. E a lua, ao
contrário, é associada à escuridão, e às qualidades do espírito feminino, que,
em sua origem, provém daquele breu do qual Kuyuri precisou para criar novos
seres e então continuar seu espírito.
O patamar em
que a lua se encontra é descrito como a morada das almas que, na terra,
incorporaram, em si, os defeitos do espírito feminino. Por sua vez, o sol é
descrito como o mais distante que existe em relação à lua, num lugar onde é
sempre dia e onde as potências do espírito masculino de Kuyuri se realizam plenamente,
sem necessidade de relação com potências contrárias. Lá, então, o mundo é só
fertilidade, fala mágica e luz. Nada precisa ser feito, está tudo pronto ao
desfrute de quem soube cultivar em si, e continuar em seus descendentes, o
espírito de Kuyuri. Porém, no princípio dos tempos, a humanidade foi se
distanciando muito deste lugar paradisíaco, e que, conforme o espírito humano
contagiava-se mais com a potência do espírito feminino, mais obstáculos foram
surgindo nos caminhos, estrategicamente povoados de anacondas e outros tantos
seres monstruosos que se encarregam de controlar a entrada de espíritos
nefastos naquele lugar.
E o desenrolar
do convívio de Yaraware com Urutura, enquanto casal, ilustra bem as
origens deste distanciamento cada vez maior entre a terra e o céu. As
desavenças entre ambos, causadas pelo comportamento glutão de Urutura, que
sistematicamente comiam toda comida que ele levava para casa, antes mesmo que
ele pudesse servir-se. Insatisfeito com o comportamento descomedido do espírito
feminino de Urutura, Yaraware queria controlar as manifestações nefastas deste
espírito, e desenvolver as qualidades do espírito masculino em todas as suas
criaturas, fossem elas homens ou mulheres. Para tanto, usando a mesma linguagem
de Kuyuri concebeu seus presentes e
seus anti-presentes. Transformado em lagarto, ërukë, Yaraware passou a representar uma eterna ameaça para as
manifestações do espírito feminino, que deve ser cuidado e cuidar-se para não
ser atacado. Tornando-se o tamütupë
dos lagartos, os fez apreciadores do cheiro do sangue humano, ao mesmo tempo em
que indigestos aos humanos. Com sua capacidade de metamorfosear-se,
Yaraware-lagarto deu morada a seus ipëri-lagartos no mundo subterrâneo, nonowae, de onde saem de tempos em
tempos, atrás dos 'presentes' que seu tamu
coloca ao seu dispor. Para tanto, possuem a capacidade de, metamorfoseando-se,
atacarem suas vítimas por todos os lugares possíveis onde elas possam
encontrar-se. É então, sendo tamu dos lagartos, que Yaraware encontra como ser
um 'anti-tamu' dos humanos, ou seja como 'não levar o sangue adiante' daquelas
criaturas que considera pëera e que, como tal, proliferando-se, ameaçam a sua
humanidade.
Assim, na
floresta, toma forma de anta (tëhpaime),
nas proximidades das moradias dos humanos transforma-se em gente (ehkui), com aparência de homem sedutor,
ou de mulher sedutora, se a vítima for masculina; e, nos rios, toma forma de
peixe (amahta).
Antes, porém, desta
transformação e de sua ida para o céu, usando a parte interna do waruma,
denominada wakuru, Yaraware deu
corpo à mandioca wüi, tubérculo
concebido como o alimento por excelência de quem é wütoto e, portanto, de quem
é humano.
Neste sentido,
se as visitas dos lagartos aos humanos constituem-se em seu 'anti-presente', ekëriyatühpë, às manifestações
impróprias do espírito feminino, a cassava e o conhecimento de seu cultivo
constitui-se no 'presente', ekaramahpë,
que concedeu às suas criaturas terrestres para que elas pudessem viver como
seus pëeto, ou seja, 'como seus braços capazes e bonitos', e para que pudessem
continuar seu espírito na terra.
Depois que foi
para o céu, Yaraware passou a eleger, dentre os tamu de cada uma das
ramificações de seu espírito continuado na terra, aqueles a quem se denomina püi'yai, que são os pajés, concebidos
tendo 'espíritos auxiliares', a quem ensinou a 'magia das roças'. Magia esta
que envolve o conhecimento dos cantos mágicos ëremi, que são concebidos com um fio vital que sai da voz, omi, de quem o pronuncia e que se
conecta amplamente aos seus destinos, conforme o conteúdo e o vigor com que é
pronunciado. Envolve também as danças watü,
por meio das quais deve-se, literalmente, 'fazer corda' com as 'mãos amarradas
em corda', ëinyawa, em torno das
plantações para que o 'fio vital', contido nos cantos entoados pelos cantadores
entre dentro delas.
Este aprendizado
envolve, ainda, o manuseio pelo püi'yai das pedras kuri,
consideradas pedras doadoras de fertilidade, que são enterradas no meio da
roça, normalmente numa pequena elevação, onde se cruzam seus principais
caminhos. Estas pedras são colocadas aos pares, uma masculina, outra feminina,
com certa distância, uma da outra. E é durante este enterramento que se deve
dançar e recitar os cantos cerimoniais.
Deste empenho
em 'fazer o espírito continuar' que caracteriza o espírito masculino, faz parte
o controle das manifestações contrárias, concebidas como próprias do espírito
feminino, reveladas em homens e mulheres, nas tantas condutas impróprias que
são potencialmente capazes de cometer e, no caso específico das mulheres, na
fragilidade da forma corpórea feminina que, ciclicamente, deixa 'vazar' o
sangue menstrual. Neste sentido, a ameaça dos anti-presentes personificados nos
lagartos e em suas metamorfoses é compreendida como uma forma encontrada por
Yaraware de conduzir o espírito humano a este controle.
Daí que as
potências humanas que ali foram introduzidas por Yaraware precisem ser ativadas
através dos processamentos que devem torná-la própria para o consumo, pois
compreende-se que consumi-la pura ipoinna,
seria como consumir-se a si mesmo, num processo de autofagia e de
auto-evenenamento. Como alimento cotidiano, em forma de caldo fervido, tukupi, de bebida com baixo teor de
fermentação, sakura, e em forma de
beiju, uru, concebe-se que os
derivados da mandioca contêm em si o 'espírito que dá vida e sabedoria', kapühpë, a quem o consome. Espírito
este que reside no céu, kaputao, e
que desce à terra em forma de chuva, que é enviada na época em que Yaraware,
concebido como o 'dono da mandioca', wüi
entu, aparece no céu em forma de estrela (Orion), no início de dezembro,
para anunciar o início das chuvas que irão expandir as raízes da mandiocas
cultivadas nas roças tiriyó.
Assim como os
alimentos derivados da mandioca são concebidos como capazes de introduzir fala,
e, portanto, conhecimento aos corpos que o ingerem e digerem, transformando-o
em fluidos vitais, diz-se que, são também capazes de extrair a fala, quando
feitos não para alimentar o corpo de espírito, mas para desalimentá-lo pelo
vômito, como é o caso das bebidas rituais feitas para convidados especiais, de
quem se quer extrair alguma informação, tal como o kasiri, bebida com alto teor de fermentação, concebida como capaz
de fazer soltar a fala daquele que a ingerir. Feita para ser vomitada, a bebida
kasiri é especialmente feita para receber visitantes, a quem é oferecida para
que, literalmente, 'soltem a fala que encontra-se presa no interior de seus
corpos', seja simplesmente para descontraírem-se e ficarem alegres, seja para
que eventuais dúvidas ou curiosidades que seus anfitriões tenham em relação a
eles sejam esclarecidas.
Baseado
em texto de Denise Fajardo Grupioni
Fonte:
Instituto Socioambiental | Povos Indígenas no
Brasil, acessado em:
13/09/2017