sábado, 22 de dezembro de 2012

WIRA'I, "gavião pequeno" - mito tenetehara


Um rapaz, de nome Wira'i, esgava passarinhando perto de casa. De repente, seguiu uma coruja que o desviou de seu caminho conhecido. Ele se perdeu. A coruja Bacurau, então, o engoliu com sua boca muito grande, e o levou para o outro lado de um rio enomrme que era por ele desconhecido.
 
O rapaz se encontrou sozinho e procurou achar um meio para atravessar o rio, mas em vão. Estava anoitecendo e o rapaz subiu num pau e começou a pensar no que fazer. De repente ouviu o canto de um pássaro: era uma coruja.

Pensou: “Se essa coruja fosse gente, ela poderia me levar do outro lado do rio”.

A coruja perguntou o que ele havia dito e respondeu-lhe que era muito pesado e não conseguiria. Outros pássaros vieram durante a noite, mas todos eles responderam a mesma coisa.

Pela manhã, ouviu o canto do pica-pau e outra vez pensou: “se o pica-pau fosse gente me carregaria para o outro lado do rio”.

O pica-pau se aproximou e lhe perguntou o que ele havia dito. Este falou, mas ouviu a mesma resposta de sempre. Mais tarde ouviu o canto do paturi. O paturi, desta vez, tentou levantar vôo com o rapaz, mas não conseguiu. Então disse que ele conhecia alguém que conseguiria atravessá-lo. No entanto, o rapaz deveria procurar não responder às perguntas que esse bicho ia lhe fazer, do contrário o bicho o comeria.

Pouco depois, o paturi voltou com um jacaré enorme, o qual carregava uma imbaúba nas costas, e se ofereceu para levá-lo. O rapaz saltou e se segurou no pé de imbaúba. De vez em quanto o jacaré perguntava alguma coisa para o rapaz, mas este não lhe respondia.

Ao chegar na outra margem, o jacaré disse que ele podia saltar para a terra, mas o rapaz pediu que ele o levasse mais perto da beira. Assim ele fez, e o rapaz aproveitou o momento melhor e pulou longe do rio, correndo, em seguida, para não ser alcançado pelo jacaré.

Logo adiante encontrou um socó, que o engoliu. Chegou o jacaré e perguntou-lhe se havia visto um rapaz fugindo. Esse disse que não e então o jacaré o acusou de tê-lo engolido. O socó disse que não e como prova disso, regurgitou alguns peixes que havia engolido vivos. Conformado, o jacaré voltou. O socó, então regurgitou o rapaz e disse-lhe que, se quisesse chegar à casa do pai, teria que sempre seguir o caminho.

À noite ele procura um abrigo debaixo de uma grande pedra. Pela manhã descobriu que não se tratava de pedra mas de um grande sapo cururu e foge. Para se alimentar comia toda fruta do mato: sapucaia, inajá e outras.

Mais adiante ele ouviu algo como alguém que estava pisando num pilão: era uma cutia que estava batendo o pé na porta de uma laje de pedra. Já era de tardezinha, e falou para a cutia lhe dar um fogo. Ela disse que não podia, porque quem mandava ali era uma grande jibóia, que morava junto com a cutia. Esta ficaria brava e iria comê-lo.

Ele entrou no buraco da cobra para pegar um tição e fazer fogo, para se esquentar de noite. A jibóia (moizuhu) tampou a porta, colocando-se à sua frente. O rapaz tentou sair, mas não podia. A cobra ameaçou engoli-lo. Naquele instante, Wira’i ouviu o canto do gavião: coan, coan, aí ele disse para a cobra que o gavião iria matá-la. Assim, a cobra saiu da porta e ele fugiu.

Adiante enxergou uma casa onde havia uma mulher sozinha. Esta lhe perguntou: o que você faz por aqui?

Estou há muito tempo procurando por meus pais, e não sei onde eles estão. A mulher, que era uma coelha (morotói), disse que ele deveria ficar com ela e trabalhar para ela. O rapaz aceitou. Mais tarde chegaram os caititus, que lhe ofereceram batata, inhame, macaxeira, milho assado, especialmente para engordar o rapaz que estava muito magro por causa da fome, e convidaram a coelha para ir com eles, pela manhã, até à roça.

Na manhã seguinte, às cinco horas, chamaram a coelha, mas ela não quis ir, porque estava com sono. Os dias se seguiram até que os caititus convidaram o rapaz a ir com eles até à roça: “rapaz, o que você faz com essa mulher aí? Ela vai te matar de fome! Nós vamos te indicar o caminho que leva até à casa de teu pai”.

Pela manhã, chamaram-no e ele se levantou depressa e os acompanhou. Estes foram até à roça, que era do pai do rapaz, e lhe indicaram o caminho para chegar até a casa dele.

Este, chegando, entrou no quarto e começou a mexer nas coisas. A mãe ouviu o barulho e foi até lá. Ela viu, reconheceu o filho e queria abraçá-lo. Mas ele disse que não podia. Em seguida chegou seu pai, que também reconheceu o filho, se aproximou dele e o abraçou. O filho entrou no corpo do pai, que ficou com duas cabeças conversando entre si.

O filho convidou o pai para ir embora daquele lugar. Aí, ele cantou três noites e dois dias e foram embora com as casas. Viraram passarinhos andando em bando como a andorinha, o recongo, o xexéu e foram embora para longe.

 
Há uma relação estreita entre o simbolismo mítico e o simbolismo ritual. Enquanto um se manifesta numa linguagem literária/oral o outro se manifesta numa linguagem plástica – através dos adornos, musicas, dança e gestos. Os dois, porém, se complementam: o mito dá suporte ao ritual e o ritual, cada vez que é celebrado, renova o mito.
 
Lévi-Strauss assim relaciona os mitos com os rituais: Os mitos e os ritos podem ser tratados como modos de comunicação: deuses com os homens (mitos), ou homens com os deuses (ritos) com esta diferença, contudo, que os interlocutores divinos não são parceiros como os outros, no seio de um mesmo sistema de comunicação.
 
O mito de Wira‘i, “gavião pequeno”, do povo Tenetehara permite estabelecer essa relação entre mito e rito e confrontar seu simbolismo. Entre o mundo dos homens – a aldeia – e o dos animais - a floresta - estabelecem-se relações de interdependência. Lévéque afirma que “nas sociedades arcaicas vivas, os grandes poderes animais é que dominam a floresta”. Estas relações se manifestam através de um simbolismo presente, especialmente, nos mitos. Estes, de fato, tornam vivas, continuamente, atitudes indispensáveis à sobrevivência desses dois mundos.
 
Se o homem depende da caça e da coleta para sua sobrevivência, necessariamente precisa estabelecer uma ligação entre seu mundo e o mundo da floresta, entre o mundo humano e o dos espíritos dos animais e das plantas. Sua vida social, estabelecida através de rituais, também está intimamente ligada aos espíritos da floresta, seu meio natural, com os quais convive diariamente.
 
O simbólico é uma tentativa de “interpretar/transformar o real em que vive e do qual faz inelutavelmente parte...” (SANTOS & LUCAS, 1982). Assim, as imagens, os símbolos e os mitos revelam aspectos da realidade (ELIADE, 1982). Lévi-Strauss afirma que “como a linguagem, o social é uma realidade autônoma; os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado” e continua: “a condição do pensamento simbólico é que o significante disponível e o significado referenciado permaneçam entre si numa relação de complementaridade”.
 
Mas qual é a relação entre mito, símbolo e sociedade? Os mitos geram determinadas práticas simbólicas e estas se traduzem em relações sociais. (GODELIER, 1985) Nesse sentido, há uma relação estreita entre estes campos, os quais se complementam, sendo que o mito vem confirmar uma prática social anterior, mas, ao mesmo tempo, a determina em sua relação com o cotidiano. Portanto, o símbolo, como produto cultural, de um determinado grupo ou sociedade, funciona como unidade de comunicação, “pois o símbolo ‘evolui’, modifica-se, apresenta-se sempre como uma espécie de linguagem nova para o seu manipulador (...). Quer dizer, desencadeia sempre emoções novas” (LIMA, 1983).
 
O simbolismo presente nos mitos tenetehara deve ser considerado um produto cultural, estabelecendo-se uma relação paradigmática entre os significados que são transmitidos para a sociedade e a práxis dessa sociedade que dá corpo aos mitos. Nesse sentido, eles operam, também, como um sistema pedagógico para essa cultura. Ao falarmos de alianças simbólicas com o mundo animal, não podemos esquecer que estas manifestam uma práxis de vida da comunidade.
 
Existe uma versão deste mito transcrita por Wagley & Galvão chamada “Aventuras de Wiraí”, recolhida na década de 1940 entre os Tenetehara/Guajajara, e outra de Nimuendaju, “O menino e o bacurau” recolhida entre os Tenetehara/Tembé em 1915. Essas duas versões, salvo algumas variantes, são praticamente iguais às contadas em 1999. E estão relacionadas a um mito shipaia: “Aventuras de um índio”, recolhido por Nimuendaju e um mito kayapó: “Aventuras de Sakawãpö”, recolhido por Métraux (1992).
 
Lévi-Strauss analisa o final do mito transmitido por Wagley & Galvão como uma relação de união e separação: “o herói perdido e achado se torna, assim, animal”. Segundo Lévi-Strauss, nos mitos por ele analisados, a oposição que se estabelece é entre os sexos: no caso a heroína encontra o pai, e o herói a mãe. Mas, no nosso caso, podemos ver que nosso informante vai na casa da mãe, mas não permite que esta se aproxime dele, enquanto aceita receber os abraços do pai, ao qual se une definitivamente.
 
Ao falar sobre o tema do personagem com duas cabeças, Carvalho diz que este tema está ligado aos mitos tipo “Viagem ao céu”:

Estamos pensando no tema dos personagens com duas cabeças, e isto porque, por um mito taulipáng, sabemos que uma delas é uma ”cabeça rolante”. O tema está ligado aos mitos tipo “Viagem ao céu”, em que um sogro ou uma sogra colocam à prova um jovem marido.
A explicação da ausência deste tipo de mito no Uapés é óbvia: ele só ocorre em sociedades matrilocais.
 
E a sociedade Tenetehara é matrilocal e, portanto, cabe a reflexão de Carvalho. Quanto às diferentes versões sobre o tema "Viagem ao Céu", a autora diz qaue resulta num "modelo mítico intimamente libado a técnicas xamânicas" (iniciação de xamãs e curas).
 
O narrador dessa versão do mito diz que, no momento em que o rapaz se encontra com o pai, ele vira pajé, se encanta e entra no corpo deste. De fato, após este episódio, ele convida os familiares a abandonarem esse lugar. Para isto ele canta e dança durante três noites e dois dias, até voarem como passarinhos. Isto é, o grupo realiza sua “viajem ao céu”.
 
Como se vê, o tema xamânico encerra essa narração. Isto nos leva a uma reflexão importante sobre o mito. Como dissemos no início da análise, há uma ligação importantíssima entre mito, rito e símbolo. Nesse caso, entre essa narrativa e o ritual de iniciação masculina no qual o rapaz é iniciado como guerreiro, cantor e pajé. O mito em questão, portanto, pode ser definido como mito de passagem. Afinal, o pequeno gavião – Wira’i – apresentado como o herói do mito, participa e constrói sua formação através das provações. Provações estas que duram alguns dias: o tempo de formação do neófito Tenetehara.
 
Turner, citando Van Geenep, explicita os ritos de passagem como uma sucessão de três fases distintas: a primeira (separação) significa afastamento do indivíduo do convívio social; a segunda (liminaridade ou trânsito) é ambígua sendo que não tem características nem passadas nem futuras, é, afinal, um período de provação e formação; a terceira (reagregação) é a consumação da passagem a partir da qual ele passa a ter direitos e obrigações.
 
No primeiro momento do mito, acontece o afastamento: o bacurau o introduz num lugar desconhecido no qual ele está sozinho. Lá, não conhece ninguém igual a ele. Ninguém pode ajudá-lo. É, portanto, privado de suas relações com o passado: com os familiares. Ele perde-se da mãe no caminho para a roça e é levado pela coruja bacurau para a outra margem de um rio intransponível, de onde ele jamais sairia sem a ajuda de alguém.
 
É interessante notar que, como bem define Lévi-Strauss em “A oleira ciumenta”, a coruja bacurau faz parte dos pássaros símbolos da morte, na América do Sul, que o autor chama de “engole-vento”. Os temas míticos principais desses são avidez, ciúme e explosão. Se a coruja está associada à morte, aqui representa a separação, o afastamento, isto é, também a morte simbólica do neófito para poder renascer como adulto. E é este o ponto principal dos ritos de passagem: sem a morte não haveria ressurreição.
 
A primeira atitude é a de encontrar os meios para poder sair da obscuridade: poder atravessar o grande rio. Pede ajuda aos pássaros. Isto é, apela em primeiro lugar para os habitantes do céu. Não poderia ser diferente, visto ser seu nome, também, o de um pequeno habitante dessa esfera. Alguns deles colocam-se à disposição mas não conseguem o intento, e assim o jovem permanece até o dia seguinte do outro lado do rio. O único que consegue fazer a travessia é o jacaré. Há aqui um outro simbolismo importante: a água. Esta associada com os mortos, indicando que o rapaz atravessou a barreira da morte.
 
A partir desse momento inicia-se o período do trânsito, isto é da liminaridade durante o qual Wira’i é posto à prova. Nessas provas ele se defronta com a natureza e aprende, com ela, a superar as dificuldades. A primeira é com o jacaré. O jovem consegue ser esperto e engana a fera que queria devorá-lo. Depois é ajudado pelo socó, que lhe indica o caminho para a casa do pai. Também este, como a coruja bacurau, o engole. No entanto, o socó representa não a morte, mas a vida.
 
Mais adiante o sapo cururu lhe dá abrigo durante a noite, embora Wira’i achasse tratar-se de uma pedra. O sapo, nesse caso, representaria o abrigo seguro, uma vez que são raros os animais que se atrevem a enfrentá-lo.
 
No outro dia encontra-se com a cutia e a grande cobra, a jibóia, que quer engoli-lo. Este foge novamente, depois de roubar um tição de fogo ajudado pelo canto do gavião. A força da cobra é vencida pela astúcia do “gaviãozinho” e pela força representada pelo gavião: o caçador temido pelas cobras.
 
Encontra-se com a coelha com a qual passa a conviver. Em se tratando de um noviço, ou iniciado no “ofício” de xamã, Wira’i não poderia coabitar com mulheres. A coelha aparece como um obstáculo, ao persistir em conter o jovem na sua “toca”. Se ele tivesse optado por permanecer na toca, não teria completado o processo de iniciação. Poderia, inclusive, ter sido “aliciado” e ficaria definitivamente na esfera natural.
 
Os caititus o libertam conduzindo-o até o roçado (do pai). Pela primeira vez, depois de muito vagar, Wira’i restabelece seus contatos com a cultura. O próximo passo é a aldeia, sua casa.
 
São os caititus que estabelecem a ponte que introduz o neófito à terceira parte, isto é, à reagregação. Um dado interessante a ser analisado é a alimentação do neófito. Durante o período de “trânsito”, ele se alimenta de “frutas do mato” (sapucaia, inajá e outras), e se abstém de carnes, pois o neófito, conforme mencionamos anteriormente, vive uma fase de transição, de ambigüidade. Por isso, seu corpo acha-se vulnerável aos poderes sobrenaturais que emanam da fauna. Afinal, ele está na esfera da natureza e deve aprender a se relacionar com esta, porque desse aprendizado depende a própria sobrevivência e a da sociedade. No momento em que ele está terminando esse período e entrando no do retorno à sociedade, só se alimenta de “produtos culturais”, isto é, não mais de frutos silvestres, mas cultivados.
 
É neste sentido, que os caititus fazem a ponte entre os dois estados do neófito. Estes se alimentam de “frutos do mato” mas, também, de produtos que são propositalmente deixados na roça para este fim. Assim, o jovem consegue encontrar o caminho de volta para casa, a re-inserção na sociedade de onde ficou afastado o período necessário para seu retorno, com suas obrigações.
 
Um outro aspecto, também interessante, é o fato de Wira’i ter mantido contato com a fauna ornitológica dos diferentes habitats: coruja, pica-pau, paturi, socó. Todos compreenderam sua situação, mas apenas o paturi e o socó – duas espécies de aves aquáticas – o ajudaram. Depois foi a vez do réptil crocodiliano – o jacaré –, que involuntariamente o ajudou, porém, poderia tê-lo devorado, se o paturi não o tivesse orientado. Mais uma vez ele foi ameaçado por um réptil, a jibóia, mas, recuperando sua identidade, a ameaçou mencionando o nome da acauã, predador de cobras. Seu ponto final é um batráquio, o sapo cururu. O espírito desse animal é um dos mais perigosos, porém, em caso de necessidade, ele pode ajudar, pois é também um dos mais poderosos.
 
Wira’i, enquanto iniciante ao xamanismo, completou um ciclo. Ao regressar, repele a figura da mulher representada por sua mãe. Não poderia ser de outra maneira, pois ele não é apenas um homem, é também símbolo capaz de manipular veículos de comunicação com os espíritos, como por exemplo, o maracá.
 
Estreitando seus laços com o pai, os dois voam juntos. Nesse vôo eles conduzem toda a família, pois o status de pajé é individual, mas afeta toda a família dele. Voar, levar embora, pode significar mudar de status.
 
Para terminar, nossa análise merece mais uma reflexão a partir do ritual de iniciação masculina. Neste, o neófito é preparado para ser guerreiro/caçador, cantor e pajé, todas estas tarefas exclusivamente masculinas na sociedade Tenetehara. Os enfeites usados para adornar o corpo do rapaz são de penas pequenas de arara para o cocar e penugem de gavião real para enfeitar a cabeça; braçadeira e tornozeleiras são feitas com casca de tucumã e/ou catolé; a pintura corporal é realizada com suco de jenipapo e com urucu, o primeiro de cor preto-azulado significaria o desprendimento, enquanto a cor vermelho do urucu está relacionada ao guerreiro.
 
O momento importante do ritual é quando estes neófitos tomam, um de cada vez, o maracá e entoam uma cantiga relacionada aos animais da floresta. Nestas cantigas, que puderam aprender durante o período de formação, eles evocam as proezas e as qualidades de cada animal. Cantar, portanto, significa manifestar seu relacionamento com a natureza e, ao mesmo tempo, saber compreendê-la. É esta, aliás, tarefa do caçador, que deve servir-se da natureza para providenciar a alimentação, ao mesmo tempo em que deve respeitá-la; e tarefa do pajé, o qual precisa dominar os espíritos da natureza em prol da sociedade a que pertence.
 
Na mitologia Tenetehara, a figura do gavião tem um destaque especial. Este pássaro predador faz parte da maioria dos temas tratados nos mitos. No mito “A caçada do moqueado e o dono das caças” (ZANNONI, 2002) ele está presente num sentido invertido, isto é, passa a representar um azang, um espírito mau que deve ser eliminado. No mito “O tenetehara que virou gavião” (ZANNONI, 2002) ele representa a figura do guerreiro, do caçador. Neste mito ajuda o herói Wira’i a se livrar da grande cobra que o queria engolir e está presente, especialmente, no nome: “gavião pequeno”. Um outro papel representado pelo gavião é o do “vingador” das más ações.
 
Mas o maior simbolismo apresentado nos mitos refere-se à analogia entre o gavião e o caçador. “Virar gavião” significa assumir seus poderes, isto é, identificar-se com suas qualidades. Haveria outro animal mais importante para um Tenetehara do que um gavião? Sabemos que as mitologias americanas, especialmente amazônicas, identificam a figura do caçador com dois animais: a onça e o gavião. Para o Tenetehara, a onça tem um papel muito mais secundário do que o gavião que aparece em muitos mitos. A onça não é um animal a ser caçado visto que sua carne não faz parte da dieta alimentar desse povo. Um caçador Tenetehara me dizia que a onça pode ser morta pelo caçador em legítima defesa, mas precisa ter respeito para com esta: “Não pode mangar dela em momento algum, senão seu espírito se revolta contra você”. O gavião, também, não é animal a ser caçado mas sim a ser “imitado”. Ele é o caçador por excelência: o predador da floresta. Num mito Tenetehara/Tembé, “A festa dos animais”, transcrito por Nimuendaju (1951), a figura principal da festa é o gavião: “Ouviu-se o grande gavião Wyrohueté que de longe tocava sua corneta: bu-bu-bu! Os animais se regozijaram e disseram: ‘O grande gavião também vem dançar conosco!’ O gavião estava ainda enfeitando-se e preparando-se para a dança”. No entanto, a onça (jaguar) toma a cena e começa a cantar, desprezando os outros animais, com palavras inconvenientes. Assim a festa acabou. “Se naquele tempo o jaguar não se tivesse comportado desse modo, os animais seriam ainda como homens e poderiam cantar”.
 
Durante os rituais tenetehara, o ponto alto da festa é marcado pela penugem de gavião real colocada nas cabeças não só dos iniciados mas de todos os participantes do ritual. Um exemplo típico são os rituais de iniciação masculina e feminina quando, pela manhã, antes do alvorecer, as cabeças dos iniciados e parte dos seus corpos são enfeitados com as penas de gavião, a significar a chegada do sol. Assim, pode-se relacionar sem sombra de dúvida o gavião ao astro solar. Com sua imponência de vôo, ele representa a presença viva do sol na abóbada celeste. Podemos dizer, portanto, que este, além de Maíra (ZANNONI, 2002), para o mundo humano, é o paradigma do homem Tenetehara no mundo animal.
 
 
No mito de Wira’i aparece ressaltada a relação entre o mundo dos homens e o mundo dos animais, entre o mundo da floresta e o mundo da aldeia, entre o mundo da natureza e o mundo da cultura. Estes se complementam através de ações recíprocas. Assim, o respeito ao mundo de cada um é a prerrogativa principal. Preservar a natureza significa preservar a vida humana, ao mesmo tempo em que a vida humana contribui para a continuação do ciclo da natureza, no que concerne tanto à fauna quanto à flora.
 
Todos os mitos tenetehara referem-se a uma época em que os animais, como os homens, falavam. Época essa que, como todos os narradores apontam, já acabou. No entanto, ela está presente ainda nos mitos. Neles, todos os personagens falam, dialogam entre si, se manifestam. Assim, representa para os Tenetehara o “tempo perdido”, um tempo em que havia harmonia e entendimento entre os mundos da natureza e da cultura. É, porém, o tempo a ser perseguido ainda. Se eles não falam mais com o homem, os seus espíritos se manifestam aos homens e, assim, o homem pode falar com eles através destes. Assim o pajé, ao mesmo tempo em que precisa dominar os espíritos dos animais, se comunica com eles em favor da sociedade.
 
Esta manifestação mítica, embora pareça saudosa, representa o desejo de todo Tenetehara de que dois mundos, que parecem tão diferentes, voltem a se “entender” na construção da harmonia vital. Por isso, os mitos são preservados.
 
Baseado em texto de Claudio Zannoni

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