Quando
Cabral chegou às águas da Bahia, na região sul de Pindorama, onde hoje é Santa
Catarina viviam os Guarani, os Kaigang e os Xokleng, sendo que os primeiros vestígios de comunidades humanas
nestas paragens datam de 5.500 anos.
Para
os Xokleng, a terra conhecida chamava-se LA
KLÃNÕ, que na sua língua quer dizer "território dos caminhantes do sol" ou "da gente que vive sob o
sol". Eles são do tronco lingüístico Jê e, segundo estudos feitos
pelo antropólogo catarinense Silvio Coelho dos Santos, no passado viviam
divididos em três grandes grupos. Um deles circulava pela região do Vale do
Itajaí, outro na cabeceira do Rio Negro, na fronteira com o Paraná, e o
terceiro, no sul, próximo a Tubarão. Eram nômades, caminhavam pelo território
em busca de caça e pesca e não eram dados as artes agrícolas. Seu centro
vivencial se dava em torno da mulher. Ela decidia onde parar, descansar suas tralhas
domésticas e fazer o fogo. Ali o grupo então permanecia por alguns dias. Viviam
no tempo e só construíam abrigos feitos com ramas de árvores nas épocas de
chuva. Seu espaço de andanças na busca da caça cobria desde Curitiba, no
Paraná, até a região de Porto Alegre. No litoral viviam os Guarani, e os
Kaigang um pouco mais para dentro, no lado oeste. Com estes, os Xokleng vivam
de escaramuças.
Por
conta da proximidade com o mar, os Guarani foram os primeiros a serem
encontrados pelos brancos invasores, quando estes começaram a descer a costa.
Logo passaram a ser capturados para servir de mão de obra escrava. Mas, por
causa da resistência que empreenderam e também das doenças, este povo foi
praticamente eliminado do litoral. Poucos restaram, fugindo para dentro do
continente, outros foram escravizados. Já os Kaigang e os Xokleng só foram
vistos bem mais tarde quando os paulistas iniciaram as rotas de comércio com o
Rio Grande do Sul tendo os tropeiros como os desbravadores, por volta de 1728,
portanto, mais de 200 anos depois da conquista. Mas, eram encontros fortuitos.
No geral, quando viam os brancos ocuparem seu território, os Xokleng resistiam
bravamente, passando a ser reconhecidos pela sua valentia. A região ocupada por
esta etnia era o espaço das araucárias, que, para eles tinha importância
fundamental. Toda a base da sua alimentação era o pinhão, e é bem provável que
tal qual os Mapuche, da Argentina e Chile, também moradores de terras de
aruacária, estes espaços fossem considerados sagrados.
Foi
com o surgimento da cidade de Lages, em 1771, que a saga de destruição dos
originários tomou mais força. Colonos vindos de São Paulo ou de outras regiões
do Brasil montavam fazendas para criação de gado e cercavam as terras. Depois,
com a chegada dos imigrantes europeus, no início do século XIX, outros espaços
de terra lhes foram tomados, a ponto de uma carta régia de Dom João VI
estabelecer o início de uma guerra de extermínio. Os conflitos eram
inevitáveis. Uma triste história, pois tanto os Xokleng defendiam suas terras,
quanto os imigrantes buscavam o cumprimento de uma promessa de vida melhor.
Mas, neste embate, os originários eram os que levavam a pior, uma vez que
sequer eram considerados "humanos". Pejorativamente chamados de
"bugres", os Xokleng
passaram a ser caçados como bichos pelos "bugreiros" que os vendiam no mercado de escravos e defendiam
as terras dos imigrantes. Naqueles dias, a vida dos Xokleng, que adentravam o
mato e observavam, curiosos, a horda dos brancos, entraria num redemoinho sem
volta.
Os
Xokleng tinham uma longa tradição guerreira, uma vez que viviam de escaramuças
com os Kaigang e a presença dos brancos ia, pouco a pouco, inviabilizando a
coleta de alimentos. Sem a prática da agricultura, guerrear com os invasores
passou a ser vital para os grupos originários. Uma coisa levou a outra, e o
governo também decidiu proteger as terras com milícias armadas. Cada vez mais
os indígenas ficavam encurralados, uma vez que não tinham para onde fugir.
Assim, exército regular e tropas de bugreiros iniciavam a
"civilização", como eles mesmos anunciavam nos jornais da época. E,
esta, nada mais era do que o massacre sangrento de famílias inteiras dos Xokleng. Nem
mulheres ou crianças eram poupadas. O índio era visto como um simples obstáculo
que deveria ser transposto em nome do progresso e da vida feliz das famílias
brancas. Ninguém levava em conta que aquela era uma terra que tinha dono.
No
início do século XX, depois que grande parte do território dos Xokleng já
estava loteado e um expressivo número de indígenas mortos, em 1914 dá-se o que
ficou conhecido na história por "pacificação".
Naqueles dias, a já então República tinha o índio como um "problema
nacional" e no começo do século XX Cândido Rondon havia iniciado sua
cruzada de integração do indígena à vida brasileira, sempre pela paz. Em 1910 o
Estado criara o Serviço de Proteção ao Índio, tendo como lema o axioma de
Rondon: morrer se for preciso, matar nunca! Chegava a hora do fim do massacre
pelas armas e começava uma proposta de "integração" que, apesar da
boa vontade, também confinava o índio e obrigava os povos a assumir uma nova
cultura, assim, de chofre, num choque cultural do qual poucos se recuperaram.
Em
Santa Catarina a história oficial conta de um jovem idealista, Eduardo Hoerhan,
que havia assumido o SPI e buscava um encontro com os Xokleng para acabar de
vez com as escaramuças entre indígenas e colonos imigrantes. A proposta era
pacificar e aldear os Xokleng para que as comunidades criadas nas terras
originárias pudessem produzir e viver em paz. Dos desejos dos índios ninguém quis saber. E
assim, contam os livros que depois de algum tempo de "namoro", com
conversas (Eduardo arranhava a língua dos Xokleng) e com a entrega de
presentes, ele logrou atrair os indígenas e pelos menos uns 400 deles passaram
a freqüentar o chamado "Posto de Atração". Mas, apesar disso, os
"bugreiros" continuaram a atuar na região, afinal, muitos grupos de
indígenas ainda vagavam pelas florestas e até os anos 40 ainda se avista um ou
outro resistindo ao aldeamento.
Foi
no ano de 1918 que Hoerhan chegou a Ibirama com um grupo de 200 Xokleng e foi
ali que se demarcou um espaço para que a comunidade passasse a viver. Naqueles
dias, conta Silvio Coelho, os chamados "botocudos" eram como bichos
no zoológico e de todos os cantos do estado vinha gente para vê-los, acuados e
tristes, finalmente pacificados. Assim, de caminhantes sob o sol, nômades e
livres, os Xokleng passaram, num átimo, a sedentários e dependentes da boa
vontade governamental. Uma mudança brusca demais na cultura e no modo de ser a
gerar conseqüências que perduram até hoje. Uma foto, reproduzida no livro de
Silvio Coelho "Índios e Brancos no Sul do Brasil – a dramática experiência dos
Xokleng", dos primeiros anos de "pacificação", é a prova
viva do horror vivido pelas gentes Xokleng. Nela, uma mulher abraça uma menina,
mas o que toca a alma são os olhos. Os da mulher expressam um profundo sentimento
de tristeza e derrota e a menina olha para câmera cheia de terror. Agarradas,
as duas se protegem, mas sabem que a vida nunca mais será a mesma. É o fim do
seu mundo.
Convidados
pelo Grupo Livre de apoio aos Povos Indígenas de Santa Catarina e reunidos em
Florianópolis, em dezembro de 2009, os 18 caciques da área Xokleng La Klãnõ,
apresentaram outra versão da história, desde as suas memórias mais antigas.
Conta o diretor da Escola Bugio, José Cuzung Ndilli, que a chamada "pacificação"
não foi conseguida por Eduardo Hoerhan, como diz a versão oficial. "Foram nossos líderes que, em 1909, se
juntaram e decidiram que não dava mais para ficar guerreando com aquela gente
que chegava. Foram eles que decidiram fazer o contato com os brancos, indo na
casa de Hoerhan. Foi nosso povo que decidiu pela paz. A gente confiou nos
brancos e é tão rejeitado até hoje". Naqueles dias, diz ele, dos 400
que fizeram contato, sobraram apenas 120, por conta das doenças que apareceram.
"Hoje, passados 70 anos, nós somos
dois mil índios e continuamos crescendo. Já acabou a época de acabar. Nós somos
um povo difícil de extinguir".
Ndilli
diz que atualmente os Xokleng ainda sofrem com a perseguição e o preconceito.
Isso sem falar na falta de respeito do governo para com eles, como ficou claro
na construção da Barragem Norte, em José Boiteaux, nos anos 70, que alagou
terra e desalojou várias famílias, diminuindo ainda mais o território. "A gente sabe que as lideranças da
época aceitaram a barragem, mas como foi o processo? O branco sempre quis ser
superior ai índio e não leva em conta as nossas necessidades. Ele sabe que a
terra é nossa, mas tem essa ganância". Há pouco tempo, em 1991, os
Xokleng chegaram a tomar o canteiro de obras da barragem exigindo o cumprimento
das promessas, que não saíram do papel. "Tem
muita gente sem casa, não há um estudo de impacto ambiental da barragem e nós
queremos ver. Porque se o verde da bandeira ainda está aí, intacto, é porque
nós protegemos. O que é história de progresso para o branco, pra nós é
sofrimento".
O
professor Ndilli insiste que os Xokleng vão seguir lutando pelos seus direitos,
pelo cumprimento das leis, embora saiba que para o governo seria bom o índio
não ter história nenhuma. "Eles
gostariam de ter uma borracha gigante que apagasse tudo, mas não vai ser assim.
Em 2014 serão os 100 anos do contato. Que vamos fazer, festa ou o quê?"
Livai
Paté, que é representante dos Xokleng no Conselho de Saúde, diz que não gosta
de lamentar o passado, mas que sempre é bom lembrar para que as coisas não
aconteçam de novo. "Nós também
queremos viver, ter nosso direito, nossas terras, educação, saúde. E há que
respeitar nossa forma de viver, de praticar a medicina. Essas terras eram
nossas, e agora temos de ficar confinados em lugares ruins. A terra onde
estamos é uma pirambeira, as melhores foram tiradas de nós. A gente não pode
aceitar".
Vomble
Paté é representante da área de Palmeira e reclama da falta de interesse por
parte das pessoas brancas, com relação aos problemas indígenas. "De cada 10, dois se interessam. A
gente vem aqui na universidade e não aparece estudante. Mas nós queremos dizer
a nossa versão da história. Esse Eduardo (Hoerhan, o pacificador) não significa
nada pra nós. Ele matou um companheiro que foi buscar nosso direito. E essa
matança continua. Antes eles matavam com arma de fogo, agora matam com a
caneta".
Enoke
Popó é cacique na aldeia Figueira. Ele conta que os Xokleng se dividiam em
vários grupos e tinham como modo de vida a coleta e a caminhada pelo
território. O pinhão era o alimento principal. Durante a época da colheita eles
juntavam tudo o que dava, para poder durar até a próxima. Depois, coziam e
armazenavam embaixo da terra, enrolado em folhas, o que garantia a sua perenidade.
O local mais abundante era a Serra da Abelha, onde é hoje o município de Vítor
Meireles. "Os mais velhos sempre
sabiam onde era o melhor lugar pra acampar. A gente circulava por um território
de mais de 34 mil hectares e agora estamos confinados num espaço de 14 mil.
Hoje estamos aí na luta para ampliar esse território. O branco fala que a gente
não precisa disso tudo. Mas essa terra é nossa. É um direito nosso e queremos
manter".
Enoke
lembra que não foi fácil para o Xokleng sair da vida nômade para a sedentária,
como também foi difícil aprender a arte da agricultura. E quando eles
conseguem, vem o governo e tira a terra, como foi na época da construção da
barragem. As melhores foram alagadas e eles tiveram de ir para as regiões de
rocha. Não é sem razão que eles procurem se manter mais com o artesanato do que
com o plantio de alimentos. Sem a tradição ancestral e sem terras, fica quase
impossível virar agricultor. Já a coleta do pinhão também é cada vez menor
porque a região está tomada pelo pinus, sendo a araucária um ente em extinção. "A gente tem de viver dependendo do
governo e este ano eles mandaram apenas uma cesta básica por família. Uma, de 26 kg de alimento. E o
resto do ano? Como faz? É por isso que os jovens estão saindo, vão trabalhar de
empregado nas fazendas, na cidade, e aí perdem o costume".
Sobre
a religiosidade Enoke conta que quase todo o povo Xokleng é evangélico. E
Silvio Coelho mostra, no seu livro sobre os Xokleng, como esta igreja acabou
sendo responsável pela retirada de muitos dos indígenas do vício do álcool que
havia sido contrabandeado para as aldeias para que o branco melhor dominasse.
Por outro lado, as velhas tradições, uma vez que não são mais vividas, acabam
se perdendo da memória. "A gente
conta para as crianças dos deuses antigos, da chuva, do trovão, do relâmpago. O
povo antigo se amparava nas forças da natureza. Mas é só uma lembrança que a
gente passa no dia do índio. Sobrevivem alguns rituais que a gente faz nos casamento
e batismos. Alguma coisa fica. Agora, a língua não. A língua a gente
preserva".
Os
Xokleng vivem na região de Ibirama, em Santa Catarina, numa terra de 14 mil
quilômetros quadrados. São 18 aldeias que perfazem o território La Klãnõ, com
88 famílias e duas mil pessoas. Cada área tem um cacique que é eleito pelos
membros da aldeia e cumpre um mandato de três anos. "É bom, porque a gente fica perto. Se o cacique não cumpre o que
prometeu, o povo cobra na hora".
Sobre
os movimentos de povos originários na América Latina os Xokleng sabem muito
pouco. Os brancos que convivem com eles não levam estas informações. "Só no Brasil são 250 povos, com
línguas diferentes. A gente tinha de ter uma língua índia pra se comunicar,
talvez aí a gente pudesse entender as outras lutas. Nós, aqui, planejamos nossa
idéia na nossa língua, mas depois temos de falar em português. Isso é
ruim".
E
assim segue este povo que ainda não consegue se sentir em casa, apesar de estar
no seu território. Sem terra boa, sem araucária, sem pinhão, sem os direitos
básicos respeitados eles fazem o que sempre fizeram: lutam. Pode ser devagar,
pode ser isolado, pode ser difícil. Mas é como eles sabem fazer. O povo
caminhante do sol conseguiu vencer os bugreiros, a invasão, o medo, a dor. Saíram
de 120 pessoas em 1920 para os dois mil que são hoje. Parece pouco, mas não é.
Não para uma gente que já sofreu tanto e que vive abandonada na "Europa do
sul". Mas, naquele silencioso jeito de ser, eles vão gestando o amanhã
esperado. Que ninguém se engane, o valente povo Xokleng, que dominou as
florestas de Santa Catarina, segue em pé, e avança!...
Texto de ELAINE TAVARES
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