Um povo
“a caminho” é um povo com horizontes em busca de sentido. Na mitologia dos
irmãos gêmeos, a humanidade encontra-se a caminho do seu fundamento e princípio
de todo princípio, Nhande Ru Vuçu,
Nosso Grande Pai, que fecundou nessa realidade a humanidade deixando sua
Palavra (Ayvu) como o legado do
sentido. O sentido que se fez eterno dentro do tempo de encontro e comunhão, a
festa (Arete) e que prossegue na estória cíclica como a lua (Jase) costuma apresentar-se no
céu, mas progressiva como o caminhar para um lugar santo (Mba’e Marangatu). Por isso que o guarani é um povo santo que
caminha espiritualmente em busca do lugar sagrado afastado de infelicidades (yvy imarãe), onde é possível entrar
em comunhão com seu sentido, o Nosso Grande Pai. Esse caminho converte-se em migração
necessária quando o território entra em colapso e a crise ameaça converter o
território sagrado, centro da cultura guarani e morada de seres divinos (Yvypyte), em território do mal.
O
território é a condição para o caminhar. Sem território não há caminho e sem
caminho não se sabe do sentido. Mas quem colocou a noção do sentido? O sentido “se
faz ver” a partir da experiência do sagrado (marangatu), não como fruto da vontade humana e sim como a
invasão do eterno no passageiro tempo e inesperado momento da vida, como uma
luz “reflexo de divina sabedoria” (CADOGAN, 1992, p. 24-25) e “iluminado pelo
reflexo do seu próprio entendimento... o vento original”, que reconstrói o
espaço-tempo original (Arayma)
(CADOGAN, 1992, p. 29-31) para a humanidade e que “vem primeiro e deixa-se conhecer
no meio das trevas primogênitas” (MELIÀ, 1991, p. 51). Trata-se do Sagrado que
se revela primeiro e invade o ser humano como uma totalidade (OTTA, 1966, p. 23
e seguintes; PIAZZA, 1983, p. 18) para reordenar o sentido do caminhar.
Assim,
o território é mais que uma terra, um espaço sagrado (Yvypyte) onde se caminha no tempo reconstruído para a
eternidade (Arete), o que é
possível entender pelo sentido que a palavra fundamental (Ayvu Rapyta) ilumina e deixa pronunciar. Alguns ritos
guaranis costumam representar esse caminhar para o encontro com o Pai. O
caminhar não é periférico, ao redor do território, é um caminhar que integra a
pessoa humana como um todo no processo de interiorização como pessoa,
comunitário como povo e humano como morador do espaço e tempo. O caminhar
torna-se evidente quando a pessoa é capaz de declarar o grande canto – a
capacidade de pronunciar a Palavra que lhe foi encomendada, que lhe vincula com
a essência do seu próprio ser – que coloca a pessoa em condições de
aperfeiçoamento pessoal (aguyje)
(MELIÀ, 1991, p. 67 e seguintes; CADOGAN, 1959, p. 49; SUSNIK, 1984-85, p.
96-102).
Para os
Mbya Guarani, o
território se engendra na base da vara do Nhande
Ru Vusu, na morada dos seres divinos e onde se origina o espaço e tempo
primogênitos. Isso também é conhecido como o centro da terra (Yvypyte) porque seu
fundamento não é a natureza em si, mas o ato religioso que a gerou e a
sustenta. A terra é o fundamento em que se conserva acesa a memória da Palavra
colocada na humanidade, a qual se pode cantar, rezar, celebrar o Arete e
deleitar-se dos seus frutos e aperfeiçoá-la. Por isso a terra do centro é o
grande território do sagrado, Yvypyte.
A
experiência histórica mostrou que esse território sagrado foi invadido pelo
mal. O Arete ficou impossível e o caminhar não era mais seguro, diante
do prenúncio da destruição da terra (NIMUENDAJU, 1987, p. 67-71) que de torna
evidente. A maior experiência desse medo foi encontrar-se desterritorializado,
experiência largamente constatada historicamente que confirma aquelas evidências.
Por
efeito dessa constatação, surge a tradição da Yvy marãe, terra-sem-mal. Essa imagem, amplamente divulgada
e de profundo significado, fascina, ainda hoje, os teólogos cristãos que assemelharam-na
com o lugar e o momento teológico no horizonte de sentido.
A Yvy marãe encarna o sentido
de pertença e identidade do guarani, não apenas como uma questão cultural e/ou
antropológica, mas, sobretudo, teológica e religiosa. Isso é conhecido pelos
guaranis como teko guarani,
ou “modo de ser”. Esse sentido, no horizonte da terra sem mal, chama ao cuidado
dos territórios onde caminhar, e uma experiência privilegiada no tempo e no
espaço sagrado. O caminhar sugere que o teko guarani não é um plano de
normas no qual estão predeterminados os caminhos para peregrinar, mas é um
processo de busca de sentido, no qual o caminho é feito ao caminhar para
encontrar-se com o Nosso Grande Pai. Nessas experiências, fundamentam-se os
empreendimentos econômicos, sociais e religiosos. A qualidade específica desse
modo de ser com a terra se exprime no termo tekoha, ou o lugar onde o modo de ser se realiza, tanto
ritualmente como historicamente traduzido como o respeito ao meio ambiente e
suas relações humanas.
A festa
é o tempo mais que perfeito para concretizar a experiência de encontro com Nhande Ru Vuçu. Ela retorna à
origem cujas estruturas produtivas e relações sociais comunitárias da tradição
se espelham. É um tempo em que a yvy marãe
se “historifica” na harmonização entre humanidade, divindade, território e
sentido. Isso significa que as pessoas podem entrar em contato com seus
antepassados; que o sagrado e o humano partilham o mesmo espaço da terra do
centro (Yvypyte); e que isso faz
sentido porque pode ser revelado na Palavra cantada.
O tempo
sagrado é o tempo originário da recriação, em que se reinicia a fecundação e o
destino da humanidade no território sagrado. A festa é o tempo sagrado
liturgicamente que perpassa toda história humana, mas é celebrado no horizonte
da linguagem humana fundamental (Ayvu
Rapyta).
Festa é
tempo de encontro privilegiado eternizado na convivência recíproca e na
participação comunitária dos benefícios da terra. Nela se redistribuem os
frutos elaborados das colheitas. Mas se torna um tempo pleno porque o ser
humano consegue celebrá-lo com a máxima e mais comovedora experiência da recepção
do dom da Palavra feita canto místico, narração de uma verdade existencial como
pessoa, povo e humanidade.
Foi nas
reduções que a linguagem humana mostrou o seu grande poder simbólico e
semântico, em grande parte ao serviço da conversão cristã. Melià diz que apesar
de sua utilização pelo cristianismo, muitos guaranis tentaram uma “repalavración”,
na qual a “gramática religiosa” permanece guarani, apesar do impacto de novos
conceitos religiosos que orientavam sua semântica, porque o guarani sempre
intentou entender o todo, desde a sua Palavra Fundamental (Ayvu Rapyta), que organiza o sentido do seu universo
sagrado. Assim, muitas formas religiosas significavam pouco ou nada para o
guarani, porém a gramática e a semântica religiosa guarani era, no fundo,
preservada para indicar a verdade do sagrado guarani.
A
adesão à Palavra Fundamental orienta a vida toda, cobrindo- a de sentido. Por
isso se diz que a Palavra é todo, isto é, que está presente em toda a atividade
humana desde o pensar até a possibilidade de sonhar. Ela revela o sentido
positivo da vida e mantém uma especial densidade inspiradora presente em
momentos de crises existenciais, provocando um espaço para poder proferir e até
emitir seu canto sagrado.
O campo
semântico da Palavra inspirada guarani está ligado ao profetismo religioso,
quer dizer, a capacidade de comunicar a verdade acerca da situação existencial
humana e seu destino último. Todo humano é profeta e portador de uma palavra
original cantada como o sentido de sua existência.
O
território guarani é terra natal de profetas, que determinam o modo de ser
autoridade (METRAUX, 1967, p. 23). O orgulho guarani era ser livre, porque
nessa condição fundamentava-se seu poder de decisão inalienável, que era o
poder delegado para autoridades por meio de assembleias. A comunidade é a
célula de poder máxima e nela se delegava, baseado no princípio intocável da
liberdade, o representante que nas assembleias cuidaria pelos interesses da sua
comunidade local no conjunto das comunidades organizadas em nação. Mas a
liberdade não foi apenas um conceito histórico, era principalmente uma condição
para descobrir sentidos e significados dos tempos.
Os
espanhóis afirmaram que “no existe entre ellos superior... y cada uno hace lo
que quiere” (MONUMENTA PERUANA VI, 1974, p. 63-64). Considerados indômitos, que
vivem “em brutal liberdade” (COMAJUNCOSA-TAMAJUNCOSA, 1836; 1971, p. 99-100)
descaracterizaram sua liberdade como apenas uma questão social ou política. É
simbólico o caso dos cristãos missionários que exortavam para que alguns grupos
guaranis renunciassem a sua identidade de Yjambae,
que quer dizer “homens sem dono” (PIFARRÉ, 1989, p. 176) e reconhecessem a
autoridade colonial que tem a tutela de Deus. Essas tentativas fracassaram e só
o poder da guerra aplacou o desejo de liberdade.
Mas a
liberdade guarani fundamenta-se no desejo de estar por perto da Palavra que o
Pai entregou para fundamentar o sentido humano. Isso foi transposto na certeza
guarani de ser um povo “dono do saber” (Arakuaa
Ija) entregue pelo Pai no território como lugar sagrado de uma
experiência intransferível de liberdade, porém compreensível desde qualquer
tradição mesmo não sendo a própria guarani. O território é sentido como máxima
expressão de liberdade para buscar o princípio que fundamenta a existência
humana. Assim, o território é abertura de sentidos e de possíveis
interpretações. A liberdade não se determinava na autoridade de uma doutrina, mas
na possibilidade de sonhar a Palavra que Nhande
Ru Vuçu deu como sentido à humanidade.
Baseado
em texto de Victor René Villavicencio Matienzo