Nas mais diversas tradições indígenas ao redor do mundo, a Terra é vista como um ser vivo que proporciona a existência aos povos da floresta e a todas as demais criaturas; é a matriz, a origem a partir da qual tudo nasce, a Mãe Primeira.
As manifestações dessas culturas podem ser facilmente comprovadas, entre outras situações, no cuidado dos índios brasileiros com a Mãe Natureza, no culto dos povos andinos à deusa Pachamama – a Mãe de toda a vida – e na famosa carta do chefe Seattle, norteamericano, em resposta à proposta do presidente dos Estados Unidos, em meados do século XIX, de comprar terras indígenas: “ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas, que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontece à terra, acontecerá aos filhos da terra.”
No entanto, com o passar do tempo, nos desconectamos do todo, mesmo tendo a própria ciência comprovando nossa interdependência com os outros seres do planeta, e ainda que se tenha disseminado a Teoria de Gaia, desenvolvida pelo cientista e ambientalista James Lovelock – que defende que a Terra se comporta como um grande organismo vivo, com mecanismos que mantêm suas condições favoráveis à existência da vida.
A maioria de nós – ocidentais, racionais, pós-modernos, consumistas e individualistas que somos – enxerga o planeta como algo a ser explorado e, no máximo, preservado para que as futuras gerações também tenham o que explorar. Acostumados com o discurso de que tudo o que existe está aqui para servir aos seres humanos, nos colocamos acima das plantas, dos animais, da água, do solo e do ar, e cultivamos uma visão pragmática e utilitarista em relação aos recursos da Terra e aos demais seres vivos. “Já dizia o livro bíblico do Gênesis que as coisas foram criadas por Deus para nosso serviço. Mas nos esquecemos de que o que n os serve não é inferior a nós e merece nossa honra, nosso cuidado e nossa profunda gratidão”, diz Lia Diskin, fundadora da organização Palas Athena e conselheira do Planeta Sustentável.
Felizmente, nos últimos anos, com o discurso da sustentabilidade cada vez mais presente, uma série de movimentos vêm propondo o retorno ao cuidado com a natureza, a valorização dos direitos humanos, a preservação das florestas e o fim dos maus-tratos aos animais. A ecologia está inserida nos currículos escolares de maneira interdisciplinar e as novas gerações vêm sinalizando uma preocupação natural em relação ao desperdício de água e energia e mais consciência em relação aos seres vivos de modo geral. Ao mesmo tempo, a natureza dá sinais claros de que nosso atual estilo de vida não poderá ser sustentado por muito mais tempo.
Em meio a esse contexto que parece ganhar força, no dia 22 de Abril de 2009, a Bolívia, por meio de seu atual presidente de origem indígena, Evo Morales, propôs, em Assembléia Geral das Nações Unidas, em Nova York, que a data há 40 anos lembrada como o DIA DA TERRA por diversos países; fosse reconhecida pela como o DIA INTERNACIONAL DA MÃE TERRA. A sugestão foi acatada por unanimidade.
Mas, na prática, qual a diferença de darmos ao planeta o título de “MÃE”? Para Lia Diskin, “mudar o nome de algo é reconhecer ali uma identidade diferente. O planeta retoma seu status de mistério em que a vida se renova, em vez de depósito de onde extraímos o que precisamos”
A psicóloga Monika von Koss, citando o biólogo chileno Humberto Maturana, diz que nos tornamos quem somos numa relação de “linguajear”. Segundo ela, as palavras são importantes e definem o modo como pensamos, agimos e sentimos. “Estamos condicionados a um linguajear de guerra e precisamos transformálo em um linguajear de amor, fazendo com que os relacionamentos e as organizações sejam imbuídos dessa qualidade”.
O interessante é que, em todas as culturas atuais, por mais que seus valores tenham sido distorcidos, a figura da mãe é algo que ainda mantém um lugar especial, que lembra um vínculo maior e implica em entrega mútua.
“O termo MÃE TERRA nos remete ao lar e recupera a concepção original dos povos nativos em relação à mãe que acolhe, nutre e apóia na vida e na morte”, diz Monika – que trabalha, entre outras coisas, com a reincorporação dos valores do feminino na sociedade. Em seu artigo “Matriz, mãe, maternidade”, ela afirma: “de todas as forças que impactaram os grupos humanos ao longo de seu processo evolutivo, a mais fundamental é a maternidade. A força da maternidade é prevalente, porque sem ela não haveria humanidade, sem ela não haveria existência”.
Lia Diskin concorda: “No lugar de um objeto despossuído de personalidade, com o qual julgávamos impossível construir um laço afetivo, inserimos um termo consolidado em nosso imaginário como a maior expressão de acolhimento, carinho e amor”.
Como uma legítima mãe, que acolhe a todos os seus filhos, a Mãe Terra não faz distinção entre as criaturas que a habitam. “Independentemente de tamanho, cor, inteligência ou qualquer outro critério que a gente queira inventar, a idéia da Mãe Terra não é de utilidade, mas de interação com o todo. Ela não discrimina ou classifica, mas acolhe a todos”, diz Monika.
Esses valores que nos colocam em pé de igualdade com os demais seres do planeta estão presentes em documentos com o a “Carta da Terra”, concluída há dez anos, e a “Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra”, em fase de elaboração.
A noção de interdependência pode ser reconhecida e vivida nas coisas mais simples. Lia Diskin diz que ao pegarmos um lápis e um papel para escrever, por exemplo, deveríamos nos lembrar de que eles já foram parte de uma árvore um dia, ou nos darmos conta de que todos os objetos que têm como base o petróleo, na realidade, são feitos de milhões de plantas e dinossauros decompostos. “Precisamos adquirir a capacidade de ver as coisas em profundidade. A partir do momento em que me conscientizo de que tudo o que me presta serventia já foi um ser vivo, passo a ter uma relação mais respeitosa com esses objetos. É preciso reconhecer que tudo o que nos rodeia é sagrado”.
Monika von Koss diz que o aprendizado de se refazer essa relação maternal com o planeta é o do cuidado. “Perdemos o valor do cuidar e o desafio é recuperar isso. Atualmente, todas as profissões cuidadoras são mal remuneradas, há uma desqualificação do cuidado, sendo que todos precisamos dele em qualquer momento da vida. Essa é uma qualidade do feminino, que, além de maternal, é colaborador, busca a beleza, a harmonia e a paz”.
Texto de Thays Prado
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