As economias dos povos originários da América Latina se caracterizam por terem à comunidade como sujeito principal, integrada com base a formas de propriedade comunitária, ao trabalho coletivo e a relações de reciprocidade e cooperação. Isto pode ser percebido, especialmente, na concepção da produção e do trabalho nos povos andinos, para os quais o mundo não é um conjunto de materiais disponíveis isolados, dos quais o individuo se aproprie, e onde possa desdobrar suas capacidades transformadoras, porém um todo vivo, um mundo-animal que lhe exige respeito e carinho.
A importância da comunidade e a peculiar relação com a terra, próprias das culturas indígenas, impedem o estabelecimento de formas de propriedade privada individual a respeito do principal dos meios de produção. O próprio sentido que, entre eles, adquire o conceito de “propriedade” é muito diferente daquele que deriva do direito romano e que foi difundido na nossa civilização moderna: para eles, a terra é mãe provedora e não somente um fator de produção. Os animais, as árvores, os cultivos, são elementos integrantes da comunidade e com eles se estabelecem vínculos de intercâmbio vital, que impedem sua exploração com fins de enriquecimento pessoal.
Produzir é cultivar a vida do mundo, na lavoura, no gado, na casa. A terra, chamada de Pachamama, é a mãe universal da vida e é mãe deles; seus frutos são vivos e são fontes de vida. O trabalho é mais do uma simples atividade produtiva: é um culto religioso à vida. A economia andina se desenvolve no próprio meio, o ayllu, que é um meio social e cultural, natural e religioso. É sua comunidade junto a todo seu cosmos, e inclui a comunidade humana, a comunidade de huacas, ou divindades, e a comunidade da sallqa ou natureza. Na cosmovisão andina, a comunidade humana “faz chácara” a partir da comunidade da natureza e sob a tutela da comunidade de huacas. Trata-se de um encontro e de um diálogo de intercâmbio e de reciprocidade.
“Saber cultivar a vida” seria a definição andina da própria tecnologia. A produção não é transformação e domínio do mundo, mas “criação da vida”.
Os elementos da natureza e da comunidade humana possuem todos, seu lado interior, sua vida secreta, sua própria personalidade capaz de se comunicar com o homem sob condição deste saber tratá-los com sensibilidade; de que saiba respeitá-los e recompensá-los adequadamente. A produção deve contemplar o “pagamento da terra” segundo o princípio de reciprocidade. Conscientes da vida interior do mundo, os povos andinos acompanham todas suas atividades econômicas com rituais de produção, seja para estimular simbolicamente o desenvolvimento da vida criada, seja para agradecer e vitalizar, por sua vez, o mundo. O trabalho e a produção são, a um tempo só, atividade prática e culto sagrado. “A terra não dá sem mais nem mais”, é um ditado andino muito comum. Chamam a atenção as continuas expressões carinhosas utilizadas no trabalho. O indígena trabalha com o coração e com carinho, sendo mais uma atividade espiritual do que corporal, ou melhor, ambas as coisas simultaneamente.
Como funciona essa tecnologia simbólica? Segundo Van Kessel, “é uma tecnologia que compreende um grande caudal de conhecimentos e de habilidades empíricas. Conhecimentos da agro-astronomia e do meio natural: a imensa diversidade de terras e de águas, a leitura sofisticada de indicadores climáticos, o comportamento das plantas, dos animais e das águas, a bondade dos materiais construtivos e dos adubos. Também, habilidades no uso produtivo destes elementos: na agricultura e na pecuária, medicina humana e veterinária, proteção contra pestes e doenças, geadas e granizadas, secas e inundações. A tecnologia andina compreende uma riqueza empírica insuspeitada de saberes e habilidades, que investigadores do desenvolvimento, fechados no seu etnocentrismo ocidental e colonizador, jamais puderam apreciar”. O homem andino - diz o autor - é um grande observador da natureza e das pessoas; desenvolve uma apurada observação dos fenômenos naturais, porém distante de uma atitude fria e impessoal, e sim em uma relação carregada de afetividade e de dedicação orientada a sentir a vida íntima das coisas, no intuito de entender sua linguajem secreta e de se sintonizar delicadamente com elas. Observa, também, a conduta e a ação, a força e a fraqueza dos irmãos, suas exigências e suas motivações, seu caráter e suas alianças.
Dos fenômenos e das pessoas que observa, efetua uma leitura mitológica que desdobra comunitariamente. Todos os comuneiros observam os sinais e fazem a leitura dos indicadores, e os comentam entre eles. A leitura é coletiva, descentralizada, ao igual que a interpretação. Esta acontece num ambiente religioso e em cerimônias rituais coletivas, sempre à procura de prever o futuro para se proteger e se preparar para o trabalho e para a luta pela vida, que é extraordinariamente dura sob as condições geográficas em que se desenvolve. O processo de aprendizagem e a transmissão dos conhecimentos para as gerações jovens, são uma iniciação na vida secreta da comunidade. A instrução tecnológica é educação ética e formação religiosa. Os comuneiros valorizam a tradição, e suas conversações versam sobre o passado remoto ou incidem na lembrança de feitos anedóticos. Os fatos e as experiências do passado têm realidade e consistência, enquanto que o futuro é desconhecido porém procura-se predizê-lo e controlá-lo através de atos rituais e de trabalhos preventivos.
Este conjunto de características da tecnologia incide, ainda, num alto grau de adequação por parte da comunidade, ao meio ecológico onde habita. Ela procura um equilíbrio móbil e duradouro entre o homem e o seu meio, orientado a garantir o bem-estar da comunidade. A tecnologia simbólica constitui uma atitude mental ética do camponês, que maneja suas técnicas de produção e que, ao mesmo tempo, rende culto tanto à natureza como à comunidade das deidades.
Van Kessel salienta dez aspectos através dos quais este modo de organizar a produção tende a garantir sua eficácia. Eles são:
1. As cerimônias e os símbolos têm efeito enquanto constituem um estímulo psicológico, que gera autoconfiança e otimismo numa comunidade cuja existência é dura e azarada, exposta às inclemências e os riscos da ecologia andina.
2. O trabalho e a tecnologia conscientizam, enquanto levam as comunidades a adquirir consciência da própria identidade cultural e histórica, fundamentais para incentivar as iniciativas e as forças coletivas.
3. Os ritos e os símbolos operam como um controlador social dos experimentos técnicos, indispensáveis para o desenvolvimento tecnológico e para o aperfeiçoamento da produção, mas que inevitavelmente implicam riscos que é preciso mitigar.
4. É uma tecnologia integradora de valores, que garante uma visão integral da existência humana e estimula a consciência da unidade hierarquizada dos valores espirituais, sociais e corporais.
5. O rito religioso provê à comunidade, de uma metodologia ordenada e eficaz de observação e de análise da realidade, refinada e penetrante.
6. A ritualidade da produção os protege do materialismo, do consumismo e do tecnicismo. Não cabe, para o andino, uma racionalidade econômica autônoma, descontrolada, liberada das normas éticas e religiosas.
7. Garante a acumulação e a reprodução do “saber fazer”, que é transmitido oralmente. O ritual da produção representa o principal sistema mnemotécnico. A codificação da tecnologia nas formas rituais e nos símbolos religiosos, seja talvez menos exata e esteja exposta ao esquecimento e à perda de informação, porém é altamente flexível e reajustável ao desenvolvimento local baseado no microclima.
8. Os rituais da produção estimulam a responsabilidade dos comuneiros, porque interiorizam e ativam compromissos sociais e pessoais. Ao mesmo tempo, estimulam o esforço pessoal e o aperfeiçoamento, pois salientam e premiam simbolicamente, os resultados positivos alcançados pelas pessoas, as famílias e as comunidades.
9. A tecnologia andina é propriedade comunitária; suas formas rituais garantem o acesso pleno de todos os membros da comunidade.
10. É uma economia e uma tecnologia que garantem os equilíbrios ecológicos.
Na distribuição dos produtos econômicos entre os diversos membros da comunidade e entre as diversas famílias e comunidade que conformam um povo economicamente integrado, não predominam as relações comerciais mas as relações de intercâmbio recíproco, que buscam uma equilibrada satisfação das necessidades fundamentais de todos, reconhecidos como igualmente necessários para a vida, a conservação e a reprodução da comunidade no tempo. Mediante fluxos de reciprocidade regulados pela tradição e os costumes, a comunidade procura assegurar o aporte de cada um conforme as próprias capacidades, e a compensação de seus esforços segundo as próprias necessidades.
Diferentes sistemas cultuais e festivos introduzem elementos de emulação e de competição: neles são celebradas as pessoas, as atividades e os resultados de maior eficácia, aumentando o prestígio social dos mais capazes e esforçados. Porém, também se os compromete e se os faz responsáveis por prover dos recursos necessários para a convivência e o progresso da comunidade. Estabelecem-se assim os mecanismos de redistribuição periódica da riqueza, que impedem um excessivo distanciamento entre as pessoas e as famílias de diferentes capacidades e graus de riqueza.
Produzir é cultivar a vida do mundo, na lavoura, no gado, na casa. A terra, chamada de Pachamama, é a mãe universal da vida e é mãe deles; seus frutos são vivos e são fontes de vida. O trabalho é mais do uma simples atividade produtiva: é um culto religioso à vida. A economia andina se desenvolve no próprio meio, o ayllu, que é um meio social e cultural, natural e religioso. É sua comunidade junto a todo seu cosmos, e inclui a comunidade humana, a comunidade de huacas, ou divindades, e a comunidade da sallqa ou natureza. Na cosmovisão andina, a comunidade humana “faz chácara” a partir da comunidade da natureza e sob a tutela da comunidade de huacas. Trata-se de um encontro e de um diálogo de intercâmbio e de reciprocidade.
“Saber cultivar a vida” seria a definição andina da própria tecnologia. A produção não é transformação e domínio do mundo, mas “criação da vida”.
Os elementos da natureza e da comunidade humana possuem todos, seu lado interior, sua vida secreta, sua própria personalidade capaz de se comunicar com o homem sob condição deste saber tratá-los com sensibilidade; de que saiba respeitá-los e recompensá-los adequadamente. A produção deve contemplar o “pagamento da terra” segundo o princípio de reciprocidade. Conscientes da vida interior do mundo, os povos andinos acompanham todas suas atividades econômicas com rituais de produção, seja para estimular simbolicamente o desenvolvimento da vida criada, seja para agradecer e vitalizar, por sua vez, o mundo. O trabalho e a produção são, a um tempo só, atividade prática e culto sagrado. “A terra não dá sem mais nem mais”, é um ditado andino muito comum. Chamam a atenção as continuas expressões carinhosas utilizadas no trabalho. O indígena trabalha com o coração e com carinho, sendo mais uma atividade espiritual do que corporal, ou melhor, ambas as coisas simultaneamente.
Como funciona essa tecnologia simbólica? Segundo Van Kessel, “é uma tecnologia que compreende um grande caudal de conhecimentos e de habilidades empíricas. Conhecimentos da agro-astronomia e do meio natural: a imensa diversidade de terras e de águas, a leitura sofisticada de indicadores climáticos, o comportamento das plantas, dos animais e das águas, a bondade dos materiais construtivos e dos adubos. Também, habilidades no uso produtivo destes elementos: na agricultura e na pecuária, medicina humana e veterinária, proteção contra pestes e doenças, geadas e granizadas, secas e inundações. A tecnologia andina compreende uma riqueza empírica insuspeitada de saberes e habilidades, que investigadores do desenvolvimento, fechados no seu etnocentrismo ocidental e colonizador, jamais puderam apreciar”. O homem andino - diz o autor - é um grande observador da natureza e das pessoas; desenvolve uma apurada observação dos fenômenos naturais, porém distante de uma atitude fria e impessoal, e sim em uma relação carregada de afetividade e de dedicação orientada a sentir a vida íntima das coisas, no intuito de entender sua linguajem secreta e de se sintonizar delicadamente com elas. Observa, também, a conduta e a ação, a força e a fraqueza dos irmãos, suas exigências e suas motivações, seu caráter e suas alianças.
Dos fenômenos e das pessoas que observa, efetua uma leitura mitológica que desdobra comunitariamente. Todos os comuneiros observam os sinais e fazem a leitura dos indicadores, e os comentam entre eles. A leitura é coletiva, descentralizada, ao igual que a interpretação. Esta acontece num ambiente religioso e em cerimônias rituais coletivas, sempre à procura de prever o futuro para se proteger e se preparar para o trabalho e para a luta pela vida, que é extraordinariamente dura sob as condições geográficas em que se desenvolve. O processo de aprendizagem e a transmissão dos conhecimentos para as gerações jovens, são uma iniciação na vida secreta da comunidade. A instrução tecnológica é educação ética e formação religiosa. Os comuneiros valorizam a tradição, e suas conversações versam sobre o passado remoto ou incidem na lembrança de feitos anedóticos. Os fatos e as experiências do passado têm realidade e consistência, enquanto que o futuro é desconhecido porém procura-se predizê-lo e controlá-lo através de atos rituais e de trabalhos preventivos.
Este conjunto de características da tecnologia incide, ainda, num alto grau de adequação por parte da comunidade, ao meio ecológico onde habita. Ela procura um equilíbrio móbil e duradouro entre o homem e o seu meio, orientado a garantir o bem-estar da comunidade. A tecnologia simbólica constitui uma atitude mental ética do camponês, que maneja suas técnicas de produção e que, ao mesmo tempo, rende culto tanto à natureza como à comunidade das deidades.
Van Kessel salienta dez aspectos através dos quais este modo de organizar a produção tende a garantir sua eficácia. Eles são:
1. As cerimônias e os símbolos têm efeito enquanto constituem um estímulo psicológico, que gera autoconfiança e otimismo numa comunidade cuja existência é dura e azarada, exposta às inclemências e os riscos da ecologia andina.
2. O trabalho e a tecnologia conscientizam, enquanto levam as comunidades a adquirir consciência da própria identidade cultural e histórica, fundamentais para incentivar as iniciativas e as forças coletivas.
3. Os ritos e os símbolos operam como um controlador social dos experimentos técnicos, indispensáveis para o desenvolvimento tecnológico e para o aperfeiçoamento da produção, mas que inevitavelmente implicam riscos que é preciso mitigar.
4. É uma tecnologia integradora de valores, que garante uma visão integral da existência humana e estimula a consciência da unidade hierarquizada dos valores espirituais, sociais e corporais.
5. O rito religioso provê à comunidade, de uma metodologia ordenada e eficaz de observação e de análise da realidade, refinada e penetrante.
6. A ritualidade da produção os protege do materialismo, do consumismo e do tecnicismo. Não cabe, para o andino, uma racionalidade econômica autônoma, descontrolada, liberada das normas éticas e religiosas.
7. Garante a acumulação e a reprodução do “saber fazer”, que é transmitido oralmente. O ritual da produção representa o principal sistema mnemotécnico. A codificação da tecnologia nas formas rituais e nos símbolos religiosos, seja talvez menos exata e esteja exposta ao esquecimento e à perda de informação, porém é altamente flexível e reajustável ao desenvolvimento local baseado no microclima.
8. Os rituais da produção estimulam a responsabilidade dos comuneiros, porque interiorizam e ativam compromissos sociais e pessoais. Ao mesmo tempo, estimulam o esforço pessoal e o aperfeiçoamento, pois salientam e premiam simbolicamente, os resultados positivos alcançados pelas pessoas, as famílias e as comunidades.
9. A tecnologia andina é propriedade comunitária; suas formas rituais garantem o acesso pleno de todos os membros da comunidade.
10. É uma economia e uma tecnologia que garantem os equilíbrios ecológicos.
Na distribuição dos produtos econômicos entre os diversos membros da comunidade e entre as diversas famílias e comunidade que conformam um povo economicamente integrado, não predominam as relações comerciais mas as relações de intercâmbio recíproco, que buscam uma equilibrada satisfação das necessidades fundamentais de todos, reconhecidos como igualmente necessários para a vida, a conservação e a reprodução da comunidade no tempo. Mediante fluxos de reciprocidade regulados pela tradição e os costumes, a comunidade procura assegurar o aporte de cada um conforme as próprias capacidades, e a compensação de seus esforços segundo as próprias necessidades.
Diferentes sistemas cultuais e festivos introduzem elementos de emulação e de competição: neles são celebradas as pessoas, as atividades e os resultados de maior eficácia, aumentando o prestígio social dos mais capazes e esforçados. Porém, também se os compromete e se os faz responsáveis por prover dos recursos necessários para a convivência e o progresso da comunidade. Estabelecem-se assim os mecanismos de redistribuição periódica da riqueza, que impedem um excessivo distanciamento entre as pessoas e as famílias de diferentes capacidades e graus de riqueza.
Texto de LUIS RAZETO MIAGLIARO
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