Se a Amazônia tem o nome de uma tribo de mulheres guerreiras, talvez não seja coincidência que sua virgindade continue sendo tema de um intenso debate, dentro e fora da Academia. Como se fosse uma donzela em um romance de cavalaria, a expectativa é que, na Amazônia, quanto mais virgem for uma parte da floresta, mais valor ela terá para conservação. Ironias à parte, essa é uma discussão importante, principalmente em face ao brutal processo de ocupação e desmatamento que tem ocorrido na região nas últimas décadas, com uma perda importante de biodiversidade e também de conhecimento tradicional – de indígenas, quilombolas e ribeirinhos – sobre essa biodiversidade.
Desde o final do século passado, antropólogos e arqueólogos vêm insistindo que, na Amazônia, existe um importante componente humano na constituição atual desta floresta, que para muitos ainda é o exemplo acabado de natureza intocada pela ação nociva do Homo sapiens. Se essa hipótese estiver correta, boa parte do que é patrimônio natural da Amazônia deve também ser considerado como PATRIMÔNIO CULTURAL, resultado da atividade humana ao longo dos milênios, obviamente em uma escala totalmente diferente da verificada nos contextos de exploração madeireira e pecuária verificados na região do arco do desmatamento.
Há uma óbvia diferença de escala e ritmo entre, por um lado, as formas de antropização da natureza que ocorreram no passado ou entre populações tradicionais do presente, e desmatamento violento que assistimos acontecer do Acre ao Pará.
Quais são as evidências usadas pelos arqueólogos para apoiar esta hipótese? A primeira delas diz respeito à própria presença de sítios arqueológicos em diferentes partes a Amazônia, em áreas ribeirinhas e de terra firme e também sob muitas das cidades da região. Em Manaus, Carlos Augusto da Silva, da Universidade Federal do Amazonas, catalogou há alguns anos mais de quarenta sítios arqueológicos na área urbana, a maioria destruídos – como o conjunto Nova Cidade, próximo à Reserva Ducke – ou então em processo de destruição, como o sítio localizado no Conjunto Atílio Andreazza no Japiim, onde ônibus manobram sobre fragmentos de urnas funerárias da cultura Paredão, com cerca de mil anos de idade.
Em Santarém, os moradores do bairro da Aldeia, no centro da cidade, encontram constantemente fragmentos cerâmicos e solos de terra preta no quintal de suas casas, enquanto que em Urucurituba a Prefeitura Municipal guarda um verdadeiro tesouro arqueológico reunido pelo Professor Alberto Neves em um trabalho louvável de resgate em face do impacto gerado pela construção da nova sede do município na década de 70.
Fora das cidades, em unidades de conservação, como Parques Nacionais ou Reservas Biológicas, sítios arqueológicos são também comuns. Márjorie Lima, manauara da gema, que faz seu mestrado em arqueologia na Universidade de São Paulo, trabalha agora com cerâmicas produzidas há mais de dois mil anos nos sítios Floresta e Lago das Pombas, localizados sob as comunidades homônimas no rio Unini, em um ambiente de igapós de águas pretas, a mais de 100 km de sua boca junto ao rio Negro, no Parque Nacional do Jaú. Na Reserva Biológica do Guaporé, Eurico Miller localizou sambaquis fluviais com cerâmicas datadas em cerca de quatro mil anos em uma área atualmente ocupada por quilombolas e grupos indígenas.
A recente publicação de um artigo denominado “Hiperdominância na Flora Arbórea da Amazônia” na revista Science, escrito por dezenas de cientistas, muitos deles brasileiros, coordenados por Hans ter Steege, da Universidade de Utrecht, na Holanda, parece corroborar, por outros caminhos, o que têm dito os arqueólogos. Nesse artigo os autores realizaram uma ampla compilação de dados de inventários de espécies de árvores realizados em 1170 locais em toda a bacia Amazônica. Baseados nesses dados, estima-se que há cerca de 16.000 espécies de árvores por toda a Amazônia, algo compatível com a imensa biodiversidade da região. Desse total de espécies, no entanto, apenas 227 – ou seja, 1.4% – correspondem a metade de todas as árvores amostradas. Seria mais ou menos como, guardadas as proporções, se, sobre uma mesa de bilhar, houvesse vinte bolas coloridas, dez delas com cores diferentes, dez delas vermelhas. Essas espécies preponderantes seriam as tais “hiperdominantes” mencionadas no título do artigo.
A coisa fica ainda mais interessante quando se verifica a lista das vinte espécies mais dominantes entre as 227 hiperdominantes porque nela encontraremos velhas conhecidas dos povos tradicionais da Amazônia. Encabeçando a lista está, nada mais nada menos, que Euterpe precatoria, o bom e velho AÇAÍ, que faz a fama de Codajás. Em sexto lugar, pra não ficar distante, vem seu primo Euterpe oleracea, o AÇAÍ-DO-PARÁ, seguido logo após, em sétimo pela bela bacabeira Oenocarpus bataua. Entre as vinte primeiras há ainda outras plantas manejadas há séculos ou milênios pelos povos indígenas, tais como Hevea brasiliensis (seringueira), Licania heteromorpha (lixeira), Astrocaryum murumuru (muru-muru) e Socratea exorrhiza, nada mais nada menos que a paxiuba, tão usada como material de construção no rio Negro.
O artigo de Steege e colegas parece mostrar claramente que a atividade humana de baixa intensidade no passado e no presente tem um papel importante na história da distribuição de espécies de árvores na Amazônia. Isso quer dizer que toda a Amazônia foi modificada pela ação humana no passado? Ainda é cedo para afirmar, mas é inegável que há um grande paralelismo entre os dados botânicos agora apresentados e a ampla distribuição de sítios arqueológicos pela região, paralelismo esse que nos permite dizer que há uma longa história co-evolutiva entre plantas e pessoas na Amazônia.
Outro dado interessante que ilustra o quanto a agricultura indígena alterou a floresta e paisagem amazônica e co-evoluiu com ela, segundo Evaristo E. Miranda, é o fato dos sítios arqueológicos amazônicos estarem associados a terras de cor muito escura, conhecidas como “terra preta de índio”, que formam um mosaico de áreas com vegetação em diferentes estágios de reconstituição, desde pequenas capoeiras até matas secundárias e bem recompostas. Isso é facilmente observável, ainda hoje, através de imagens de satélite: a floresta parece um mosaico de matas com diversos tamanhos e fisionomias, em função da idade das capoeiras, desenhando figuras geométricas bem definidas (círculos, elipses, polígonos, etc). Elas descrevem a fantástica história das relações homem-natureza, caracterizada pelo enriquecimento contínuo de determinadas unidades de vegetação com plantas de interesse alimentar, medicinal ou simbólico, úteis para a fabricação de instrumentos de caça, pesca e, posteriormente, para a agricultura. Ao longo dos séculos, esses povos foram transformando as florestas e, de certa forma, co-evoluíram com a vegetação. “Os conhecimentos dos grupos humanos sobre os diversos usos das plantas amazônicas os levaram a favorecer algumas delas, protegendo-as ou disseminando-as em determinados locais”, segundo Evavisto Miranda.
Esse debate, no entanto, não é puramente acadêmico. Na Amazônia, populações tradicionais são ainda constrangidas a abandonar seus locais de moradia, seja pela perspectiva de construção de usinas hidrelétricas, como acontece agora no Tapajós, seja para a constituição de alguns tipos de unidade de conservação que restringem bastante a ocupação humana, mesmo que em condições de baixa densidade demográfica e baixo impacto.
Parece claro que não são esses ribeirinhos e quilombolas as reais ameaças à preservação da floresta. Ao contrário, pode ser que seja sua ação de manejo que garanta uma parte da própria reprodução da Amazônia que hoje conhecemos e queremos proteger. Ao forçar seu deslocamento, não estaria o poder público matando o mutum que põe os ovos de ouro?
Baseado em texto de Eduardo Góes Neves
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