sexta-feira, 30 de maio de 2014

CRITÉRIOS DE INDIANIDADE - assimilação, integração e emancipação

A Constituição Federal do Brasil, de 1988, em seu artigo 231, reconheceu o direito e assegurou o respeito aos povos indígenas à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como o direito originário sobre as terras que ocupam tradicionalmente.


Tal conquista, foi fruto de uma coalisão entre movimento indígena e movimento de apoio ao índio, em 1987 mas que se estendeu por todo o processo da Assembléia Constituinte. A importância dessa união só pode ser devidamente avaliada dentro do contexto histórico em que foi gerada e formada. Como parte dessa compreensão, segue um texto de Manuela Carneiro da Cunha, de 1981, sob o título "Critérios de Indianidade ou Lição de Antropofagia".





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O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) vem manifestando há longos meses uma inquietação persistente, a de saber afinal "quem é e quem não é índio" (veja-se, por exemplo, a Folha de São Paulo, 17/9/1980), inquietação que culmina agora no anuncio de modificação de pelo menos dois artigos do Estatuto do Índio, um que define índios e comunidades indígenas e outro que especifica as condições necessárias para a emancipação. Não se trata, ao que parece, de um problema acadêmico, para o qual, aliás, a antropologia social tem respostas que  veremos a seguir. Como a modificação anunciada permite resolver por decreto "quem é e quem não é", dado à Funai a iniciativa, até agora reservada aos interessados, de emancipar índios mesmo à sua revelia, vemos que não parece ser a curiosidade científica o móvel da pergunta. Esta indaga e não decreta. Trata-se, isso sim, segundo tudo indica, da tentativa de eliminar índios incômodos, artimanha em tudo análoga à do frade da anedota, quando, naquela sexta-feira em que devia se abster de carne, declarava ao suculento bife que cobiçava: "Eu te batizo carpa"... e comia-o em sã consciência.

O alvo mais imediato desse afã classificatório pare ser os líderes indígenas que estão aprendendo a percorrer os meandros da vida administrativa brasileira, agora ameaçados de serem declarados emancipados ex officio. A medida poderia acarretar até a proibição de entrarem em áreas indígenas, se continuarem incorrendo na ira do Executivo. Ou seja, os líderes poderiam ser separados de suas comunidades.

O que torna a ameça de modificação do Estatuto mais acintosa é ter sido ela anunciada logo depois do julgamento do Tribunal Federal de Recursos, autorizando a viagem do chefe xavante Mario Juruna, impedida pelo Ministério do Interior, num claro revide a essa manifestação de independência da Justiça. O procedimento, a bem dizer, não deveria surpreender: não é a primeira vez que se mudam as regras do jogo durante a partida.

A questão real, em tudo isso, é saber o que se pretende com a política indigenista. O Estatuto do Índio, seguindo a Convenção de Genebra, da qual o Brasil é signatário, fala em seu artigo primeiro em preservar as culturas indígenas e em integrar os índios, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Distingue-se, portanto, como o faz a Convenção de Genebra, entre a assimilação, que rechaça seu artigo 2º (2c) e a integração. Integração não pode, com efeito, ser entendida como assimilação, como uma dissolução na sociedade nacional, sem que o artigo 1º do Estatuto se torne uma contradição em termos. Integração significa, pois, darem-se às comunidades indígenas verdadeiros direitos de cidadania, o que certametne não se confunde com emancipação, enquanto grupos etnicamente distintos, ou seja, provê-los dos meios de fazerem ouvir sua voz e de defenderem adequadamente seus direitos em um sistema que, deixado a si mesmo, os destruiria: e isso é, teoricamente pelo menos, mais simples do que modificar uma lei. Trata-se - trocando em miúdos - de garantir as terras, as condições de saúde, de educação; de respeitar uma autonomia e as lideranças que possam surgir: lideranças que terão de conciliar uma base interna com o manejo de instituições nacionais e parecerão por isso mesmo bizarras, com um pé na aldeia e outro - por que não? - em tribunais internacionais.

Tudo isso parece longe das preocupações da presidência da Funai, mais interessada em "critérios de indianidade" que a livrassem de uns quantos índios "a mais". Esses critérios já estão consagrados na antropologia social e são aplicados na definição de qualquer grupo étnico. Entre eles, não figura o de "raça", entendida como uma subdivisão da espécie, que apresenta caracteres comuns hereditários, pois esta foi abandonada não só como critério de pertinência a grupos sociais, mas também como conceito científico. Raça não existe, embora exista uma continuidade histórica de grupos de origem pré-colombiana. Tampouco podem ser invocados critérios baseados em formas culturais que se mantivessem inalterados, pois isso seria contrário à natureza essencialmente dinâmica das culturas humanas: com efeito, qual o povo que pode exibir os mesmos traços culturais de seus antepassados? Partilharíamos nós os usos e a língua que aqui vigoravam há apenas cem anos? Na realidade, a antropologia social chegou à conclusão de que os grupos étnicos só podem ser caracterizados pela própria distinção que eles percebem entre eles próprios e os outros grupos com os quais interagem. Existem enquanto se consideram distintos, não importando se essa distinção se manifesta ou não em traços culturais. E, quanto ao critério individual de pertinência a tais grupos, ele depende tão somente de uma autoidentificação e do reconhecimento pelo grupo de que determinado indivíduo lhe pertence. Assim, o grupo pode aceitar ou recusar mestiços, pode adotar ou ostracizar pessoas, ou seja, ele dispõe de suas próprias regras de inclusão e exclusão.

Comunidades indígenas são pois aquelas que, tendo uma continuidade histórica com sociedades pré-colombianas, se consideram distintas da sociedade nacional. E índio é quem pertence a uma dessas comunidades indígenas e é por ela reconhecido. Parece simples. Só que se conserva às sociedades indígenas o direito soberano de decidir quem lhes pertence: em última análise, é esse direito que a Funai lhes quer retirar. Claro está que índio emancipado continua índio e, portanto, detentor de direitos históricos. Mas tal não parece ser a interpretação corrente da Funai, que lava as mãos de qualquer responsabilidade em relação aos índios emancipados.

Assestadas - como já dissemos - contra as incipientes lideranças indígenas, as modificações no Estatuto podem trazer malefícios adicionais: a emancipação leva, por caminhos que já foram amplamente discutidos em 1978, à exploração de terras das comunidades indígenas. Salta aos olhos, com efeito, que se trata de uma nova versão do famigerado decreto de regulamentação da emancipação, rechaçado pela opinião pública em 1978 e, em vista disso, engavetado. Desta vez, porém a versão é mais brutal: se o projeto do decreto era ilegal por contrariar o Estatuto do Índio, projeta-se agora alterar o próprio Estatuto, e conferem-se poderes discriminatórios a um tutor cuja identidade de interesses com seus tutelados snão é patente.

Na verdade, o que deveria estar claro é que a posição especial dos índios na sociedade brasileira lhes advém de seus direitos históricos nesta terra: direitos constantemente desrespeitados mas essenciais para sua defesa e para que tenham acesso verdadeiro a uma cidadania da qual não são os únicos excluídos. Direitos, portanto, e não privilégios, como alguns interpretam. Uma maneira de tratar a questão é fazer como o frade do apólogo: batizar os índios de emancipados... e comê-los.

domingo, 18 de maio de 2014

TEYUNA, A CIDADE PERDIDA


Teyuna é como uma casa cerimonial.
É o lugar que concentra toda a responsabilidade com o resto do universo,
é o lugar de onde se vigia e protege o sagrado e o vital para o planeta,
é a base e a união com o espiritual.
É o cordão umbilical que une a origem e o presente,
o espiritual e o material,
é a união com a Mãe!
Organização Gonawindúa Tayrona

A "Sierra Nevada", de Santa Marta, na Colômbia, é uma imensa montanha com uma extensão de 17.000 quilômetros quadrados. Os picos mais altos são o Colón e o Bolívar, ambos com 5775 metros de altura. São os mais altos do país e os mais altos do mundo perto do mar – do qual distam apenas 42 quilômetros.

Na Sierra Nevada de Santa Marta se apresentam todos os climas da Terra, excetuando o desértico. É habitada desde épocas remotas; no início da era cristã, os TAYRONA, povo de origem mesoamericana e de língua chibcha, se estabeleceram ali. Não conheciam a escrita, nem o uso da roda ou a utilização de animais para transporte ou tração. Entretanto, desenvolveram a agricultura em larga escala, que permitia a obtenção de produção excedente.

Os Trayrona viviam em vários assentamentos: o mais conhecido hoje é conhecido pelo nome de Pueblito (povinho, em português), no parque Tayrona. Era um dos maiores, com aproximadamente 1000 cabanas – todas de barro construídas em conjunto sobre bases circulares delimitadas por muros de contenção de pedra. Outros assentamentos, hoje perdidos, eram Bonda, Pocigueica, Tayronaca e Betoma, todos situados em locais afastados da costa. No interior da Sierra Nevada, a uma altura de aproximadamente 1200 metros acima do nível do mar, estava situada TEYUNA, centro espiritual e comercial de importância primordial.

Para chegar a Teyuna é necessário caminhar pelas estreitas trilhas da Sierra Nevada. A primeira parada da viagem ocorre em Mamey, um pequeno povoado de colonos ao qual se chega por uma estrada sem asfalto. De Mamey continua caminhando, escalando para cima e para baixo os caminhos da Sierra, em meio a uma exuberante vegetação tropical.

Após um dia de viagem, entra-se no VALE DO RIO BURITACA, onde atualmente vive o povo Kogui, descendentes dos Tayrona. Ainda usam a língua chibcha e seguem as tracições ancestrais dos Tayrona. Eles chamam o vale de MUTANJI.

Depois de mais um dia de viagem – atravessando uma dezena de vezes o rio Buritaca –, chega-se a uma escada íngreme, construída pelos Tayrona. São aproximadamente 1200 degraus antes de chegar em Teyuna e poder vislumbrar os primeiros terraços delimitados por muros de contenção feitos de pedra, que também serviam como suporte às cabanas.



Teyuna em língua chibcha significa origem dos povos da Terra, porém o nome popular deste importante depósito arqueológico é cidade perdida. Teyuna permaneceu, na realidade, abandonada e esquecida durante aproximadamente 375 anos, até 1973, quando foi localizada.

Depois das incursões dos espanhóis na zona costeira de Santa Marta, a partir de 1525, os Tayrona adentraram cada vez mais na Sierra Nevada e provavelmente se refugiaram em Teyuna em torno de 1540. No vale do rio Buritaca, numa zona compreendida entre 500 e 2000 metros de altitude, foram encontrados 32 centros urbanos. Alguns contam com apenas 50 terraços, delimitados por muros de contenção. Outros, como Teyuna, contam com uns 140 aterros. Estes assentamentos são: Tigres, Alto de Mira, Frontera e Tankua.

Teyuna, cujas estruturas de pedra se encontram a uma altura compreendida entre 900 e 1200 metros acima do nível do mar, era o centro principal do vale e cumpria um papel espiritual e comercial. Provavelmente em cada terraço estavam construídas duas cabanas. Pode-se estimar, assim, que a população total de Teyuna chegava a 1500 pessoas, que habitavam as 280 cabanas.

Os Tayrona decidiram, com o passar do tempo, modificar o terreno, íngreme e acidentado, para obter superfícies planas aptas para a construção de suas unidades residenciais. Algumas paredes de Teyuna têm uma altura de até 9 metros e além de conter os terraços, servem para marcar os caminhos, canalizar os fluxos de água e evitar a erosão das montanhas. A forma dos terraços varia segundo a localização e provavelmente segundo o uso ao qual estavam destinados. Aqueles situados mais altos são ovais, enquanto que os outros são, na sua maioria, semicirculares ou circulares. Sua extensão varia de 50 até 880 metros quadrados.


Na Sierra Nevada o regime de chuvas é abundante: de 2000 à 4000 mm anuais. Os arquitetos Tayrona se viram obrigados a aperfeiçoar as técnicas para controlar o fluxo de água. Foram construídos canais subterrâneos que funcionam até hoje. Igualmente, a superfície dos terraços tem um gradiente médio de 10% para o exterior.

A economia dos Tayrona, baseada na agricultura, permitiu dar suporte à densa população da Sierra Nevada por aproximadamente 700 anos, em um período compreendido entre o século IX até o fim do século XVI da era cristã. Depois da análise e do estudo das tradições dos Kogui, descendentes dos Tayrona, se deduz que Teyuna foi abandonada em torno de 1600 e que permaneceu esquecida, exatamente, durante mais de três séculos. Provavelmente houve a difusão de epidemias que obrigaram os Tayrona a abandonarem sua cidade e se dispersarem em pequenos assentamentos ao longo do vale, de difícil acesso aos espanhóis.

Com o tempo, os nativos da Sierra Nevada deixaram de visitar Teyuna, embora nas tradições dos Kogui a exata localização da cidade estivesse cuidadosamente guardada.

Em torno de 1970, alguns camponeses que colonizaram a parte baixa da Sierra Nevada, até aproximadamente 700 metros acima do nível do mar, souberam das possibilidades de encontrar grandes tesouros. Em pouco tempo, alguns deles se organizaram e, sem nenhuma preparação arqueológica, se dedicaram ao saque das tumbas Tayrona, atividade ilegal chamada guaquería.


Os guaqueros entraram cada vez mais ao interior da Sierra até que, em 1973, um deles, Julio César Sepúlveda, chegou à cidade perdida e começou a saqueá-la. Quase contemporâneo, outro guaquero, Jorge Restrepo, chegou junto com seus homens a Teyuna e se dedicou aos saques. Os bandos se enfrentaram e os líderes morreram no sangrento combate. A história voltou a se repetir. Depois de quase 500 anos do desembarque dos primeiros europeus na América, a mania de se enriquecer com o ouro sepultado nas tumbas indígenas continuou fazendo vítimas.

Os saques persistiram. Em Santa Marta, em 1975, havia comerciantes sem escrúpulos que organizavam as expedições dos guaqueros para a Sierra Nevada. Aqueles forneciam os equipamentos necessários: mulas, armas, lâminas e alimentos, e obtinham de retorno a obrigação dos guaqueros de vender só para eles as descobertas arqueológicas, muitas vezes de inestimável valor histórico e artístico. As descobertas eram então revendidas no mercado internacional e perdidas para sempre.


Por sorte, este infame comércio foi interrompido em 1976, quando uma expedição científica organizada pelo Instituto Colombiano de Antropologia chegou até Teyuna e iniciou um processo de valorização, restauração e conservação das descobertas e dos terraços da cidade. Cinco pessoas foram responsáveis pela reconstrução: os arqueólogos Gilberto Cadavid e Luisa Herrera de Turbay, o arquiteto e escritor Bernando Valderrama Andrade e os guias locais Francisco Rey e "O Negro" Rodríguez.

Após os seus trabalhos de escavação nos terraços de Teyuna, eles descobriram coisas muito importantes, como jóias de ouro e copos de cerâmica esculpidos. Foram encontrados também algumas espadas e alabardas espanholas, porém não está claro se alguns grupos de espanhóis chegaram a Teyuna ou se essas armas foram sepultadas nas tumbas como troféus de guerra.

Texto de Yuri Leveratto


DESENVOLVIMENTO NA AMAZÔNIA PRÉ-COLOMBIANA


No final do século XX surge a preocupação mundial com o desenvolvimento e meio ambiente. Nessa mesma época, na Amazônia Brasileira, alguns pesquisadores brasileiros e estrangeiros (arqueólogos, etnólogos, antropólogos, etc.) descobriam vestígios de um modelo de desenvolvimento social, econômico, tecnológico e humano totalmente diferente do que se vinha propondo em termos de desenvolvimento local, até então baseados unicamente no determinismo ecológico (FAUSTO, 2000). Surge uma nova explicação para o desenvolvimento social na Amazônia, centrado na questão ecológica.

As provas arqueológicas mostram que as sociedades que se desenvolveram na Amazônia antes da conquista européia adotavam sistemas de manejo que não agredem o meio ambiente, conseqüentemente, não prejudicam as gerações futuras, mediante uma forma de desenvolvimento planejado que otimizou o uso dos recursos disponíveis num lugar, dentro das restrições ambientais locais. Para Godard (1997) o ecodesenvolvimento pode ser compreendido como uma visão do desenvolvimento consorciado com o manejo dos ecossistemas, procurando utilizar os conhecimentos já existentes na região, no âmbito cultural, biológico, ambiental, social e político, evitando-se assim a agressão ao meio ambiente. Portanto, ecodesenvolvimento também pode se definido como um processo criativo de transformação do meio com a ajuda de técnicas ecologicamente prudentes, concebidas em função das potencialidades deste meio, impedindo o desperdício inconsiderado dos recursos, e cuidando para que estes sejam empregados na satisfação das necessidades de todos os membros da sociedade, dada a diversidade dos meios naturais e dos contextos culturais (SACHS apud VEIGA, 2005)

As estratégias do ecodesenvolvimento são múltiplas e só podem ser concebidas a partir de um espaço endógeno das populações consideradas. Atualmente, promover o ecodesenvolvimento é, no essencial, ajudar as populações envolvidas a se organizar e se educar, para que repensem seus problemas, identifiquem suas necessidades e recursos potenciais para conceber e realizar um futuro digno de ser vivido, conforme os postulados de justiça social e prudência ecológica (SACHS apud VEIGA, 2005). Um estilo ou modelo para o desenvolvimento de cada ecossistema, que, além dos aspectos gerais, considera de maneira particular os dados ecológicos e culturais do próprio ecossistema para otimizar seu aproveitamento, evitando a degradação e ações degradadoras. E uma técnica de planejamento que busca articular dois objetivos: por um lado, o desenvolvimento, a melhoria da qualidade de vida através do incremento da produtividade, por outro, manter em equilíbrio o ecossistema onde se realizam essas atividades.

A Arqueologia Amazônica é marcada por uma forte herança histórico-cultural. Durante os anos 1970, o principal foco da pesquisa foi à realização de prospecções arqueológicas, empreendidas pelo PRONAPABA – Programa Nacional de Prospecções Arqueológicas na Bacia Amazônica. Criado por Clifford Evans, Betty Meggers e Mário Simões, o programa concentrou suas atividades ao longo dos principais rios e tributários da bacia Amazônica, visando a determinação de fases e tradições cerâmicas. A metodologia da época baseava-se na construção de cronologias relativas, por meio da seriação (NUNES FILHO, 2005).

De modo geral, o registro arqueológico da Amazônia era visto como o produto de sociedades ceramistas de pequena escala, que, impactadas pelas restrições impostas pelo meio-ambiente, eram obrigadas a uma mudança constante do local de assentamento, o que resultava em sucessivas ocupações de curta duração, num padrão bastante semelhante às sociedades conhecidas etnograficamente (MEGGERS, 1977, 1979). Evidências de complexidade sócio-política, especialmente no caso da Ilha de Marajó, foram interpretadas como sociedades originárias dos Andes, com uma organização social do tipo cacicado, que, em contato com o meio ambiente da floresta tropical decaíram (MEGGERS, 77; EVANS, 1955). Contudo, a partir de 1980, com o início dos trabalhos de Anna Roosevelt no Baixo Amazonas, assistimos a uma mudança nos parâmetros da arqueologia amazônica, em termos de teoria, prática e escolha dos temas de pesquisa.

Além da investigação em antigos sítios cerâmicos e paleoíndios, Roosevelt têm se dedicado ao estudo das sociedades complexas na Amazônia. A cultura pré-colonial Santarém (1000-1500 d.C.) é uma destas sociedades estudada por ela. Embora os dados que poderiam comprovar o desenvolvimento de um cacicado local ainda não tenha sido publicado pela autora, seu modelo preditivo, baseado em antigos relatos etno-históricos e em trabalhos arqueológicos anteriores, destaca a existência de hierarquia social e política, concentração territorial, expansão da guerra, agricultura intensiva, trabalhos de larga escala e presença de especialistas – exemplificada pelo desenvolvimento de uma indústria cerâmica elaborada (Roosevelt 1992).

De fato, a cerâmica Santarém pode ser considerada como exemplo de uma das indústrias pré-coloniais mais elaboradas da Amazônia. Sua iconografia é caracterizada por um repertório básico de animais de floresta tropical, estruturados de maneira coerente e recursiva, a fim comunicar princípios de significado mitológico. Por outro lado, grandes representações de homens, algumas delas bastante naturalistas, exibem indivíduos sentados em bancos, segurando chocalhos, que demonstram a importância dos xamãs como líderes de rituais e guardiões do conhecimento cosmológico desta sociedade (GOMES, 2002).

Depois deste panorama das pesquisas arqueológicas na Amazônia, devemos considerar que ela não foi hostil à presença do ser humano. A vida na floresta nunca foi fácil, mas há milhares de anos o homem aprendeu a se estabelecer na mata e nela desenvolveu sociedades complexas. Grupos com hierarquia de poder bem definidas criaram verdadeiras capitais que integravam vastas áreas da Amazônia. A descobertas arqueológicas mostram que a ocupação da floresta amazônica começou há cerca de 12 mil anos e que alguns dos grupos pré-históricos chegaram a desenvolver trabalhos sofisticados, como: tesos (elevação artificial do solo), canais, estradas, poços funerários, urnas funerárias refinadas, mumificação e manejo florestal. Inicialmente, a ocupação aconteceu por populações caçadoras-coletoras, mas algumas delas se desenvolveram em sociedades complexas, que desapareceram deixando suas marcas enterradas no solo da Amazônia.

Os indícios do início da ocupação da Amazônia foram encontrados por Anna Roosevelt na Caverna da Pedra Pintada, no Baixo Amazonas, no Pará. E seriam de mais de dez mil anos atrás. A cerâmica mais antiga das Américas também foi achada nessa região, com datação de oito mil anos. Segundo Roosevelt, as sociedades complexas viriam bem mais tarde, começando por volta do século XI d.C. (ainda considerado pré-história nas Américas) e indo até o século XVII ou XVIII. Seu desaparecimento estaria ligado ao contato com os colonizadores. Cronistas espanhóis do Século XVI e XVII que estiveram na Amazônia registraram que estas sociedades possuíam uma hierarquia de chefes e de assentamentos, na qual Santarém funcionava como uma espécie de capital. Existiam paralelamente outros centros com aldeias subordinadas a eles. Estas sociedades produziram uma cerâmica em que fica claro o cuidado com seu acabamento (PORRO, 1996). Os motivos e a técnica utilizados são bem diferentes dos andinos.

Com a descoberta e a exploração da América pelos europeus, filósofos, autoridades políticas, teólogos e cientistas conheceram uma realidade de contrastes culturais espantosos em relação à civilização humana até então conhecida. No período conhecido como Iluminismo, surgiram as primeiras tentativas sistemáticas para explicar as diferenças culturais. A idéia central era a noção de progresso, onde se acreditava que a humanidade havia passado por estágio não civilizado: sem leis, governos, agricultura ou qualquer conhecimento técnico.

Gradualmente, no entanto, guiada pela razão, evoluiu do estado natural para o estado civilizado iluminista. As diferenças culturais eram atribuídas aos diversos estágios de progresso moral e intelectual dos povos. Nesta concepção de progresso alguns pesquisadores e cientista que tentaram explicar a evolução humana a partir de modelos explicativos.

Assim, no século XIX, teremos: Augusto Comte, que postulou um progresso em que o pensamento teológico cedia lugar ao pensamento científico; Hengel que via o movimento de um passado onde só havia um homem livre (despotismo oriental), passando por um estágio intermediário onde poucos homens podiam exercer a liberdade (cidades-estado da Grécia), até o estágio final onde todos os homens eram livres (monarquias constitucionais e democracias modernas); Morgan que dividiu a evolução cultural em estágios (selvagem, barbárie e civilização), detalhando minuciosamente a passagem de um para outro em estudos etnográficos; Darwin com o social-darwinismo, movimento que acreditava ser o progresso biológico e cultural dependente da competição das espécies pela sobrevivência; Marx e Engels avaliaram as culturas por meio de estágios progressivos (comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo e comunismo).

No Século XX, os antropólogos se dividiram em diversas correntes de pensamento, criticando tanto os esquemas social-darwinistas como o pensamento marxista. Sem encampar nenhuma das correntes, há conceitos de uma e de outra que devem ser consideradas para uma compreensão ampla do processo de evolução cultural. Assim, os antropólogos assumiram a tarefa de elaborar modelos teóricos para explicar a presença humana no planeta Terra.

Frans Boas, antropólogo americano, defende o Particularismo Histórico, onde todas as tentativas de esquematizar estágios ou determinar leis para a evolução cultural são infrutíferas. Segundo ele, cada cultura possui sua própria história e é única. Sustenta o relativismo cultural, em que não há formas culturais superiores ou inferiores e os conceitos de selvageria, barbárie e civilização são etnocêntricos, refletindo a preocupação de cada povo em afirmar que seu próprio meio de vida é melhor que os demais.

Durante muito tempo, e por inspiração dos filósofos racionalistas do século XVIII, a palavra civilização significou um conjunto de instituições capazes de instaurar a ordem, a paz e a felicidade, favorecendo o progresso intelectual da humanidade. Por ser uma concepção eurocêntrica, a palavra civilização teve emprego dificultado na América quando utilizada para distinguir os povos autóctones antes da chegada do europeu, pois, no caso particular da Amazônia esta dificuldade é somada as teorias que tentam explicar a ocupação da Amazônia, por parte de pesquisadores norte americanos a partir da década de 30 do Século XX. Assim, por mais de cinco décadas pensou-se na Amazônia pré-colonial como uma região sem expressão cultural, pouco povoada e sem o desenvolvimento de grandes civilizações humanas.

Para Pinsky (2003), na concepção européia, uma civilização, via de regra, implica ter: uma organização política formal; projetos amplos de trabalho conjunto e administrativo centralizados; corpo de sustentação política; incorporação de crenças por uma religião vinculada ao poder central; uma produção artística que tenha sobrevivido ao tempo e ainda nos encante; criação ou incorporação de um sistema de escrita e a criação de cidades.

Por outro lado Porro (1996) utilizando os cronistas do século XVI e XVII (Carvajal, de Altamirano, de Vasquez, Rojas, Acuña, Cruz e Heriarte), fala da existência de organizações sociopolíticas complexas na Amazônia antes da chegada dos europeus; de grandes territórios tribais; de uma grande demografia, com grandes assentamentos nas áreas de várzeas; de estratificação social; de poder político de alguns caciques; de uma dominação intertribal; de religião estruturada; da realização de comércio entre as tribos; de mitologias e da produção de artesanatos.

Corroborando com o trabalho etno-histórico de Porro (1996) temos o artigo “Sociedades complexas na mata”, de Eduardo Góes Neves (2004), que destaca que a arqueologia amazônica tem passado por uma grande transformação na última década. Isto é, estudos realizados em diferentes partes têm mostrado que a região foi densamente ocupada antes da chegada do europeu. Prova disso são as descobertas arqueológicas realizadas nas últimas décadas, como também, essas evidências contribuem para que se repense a relação entre as populações humanas e o meio ambiente na Amazônia pré-colonial. As novas informações têm mostrado, ao contrário, que amplas partes da Amazônia no século XVI eram densamente ocupadas por populações sedentárias, que viviam em grandes aldeias com centenas e talvez, em alguns casos, milhares de pessoas.

Segundo Neves (2004), a Amazônia é ocupada há pelo menos 12 mil anos. Entre 9 mil e 8 mil anos atrás, sítios localizados na serra dos Carajás, em Rondônia, no rio Caquetá (Colômbia) e na Amazônia central, perto de Manaus, já eram ocupados por populações com economias baseadas na caça, pesca e coleta. A distribuição desses sítios por áreas ribeirinhas e de terra firme mostra que essas populações não estavam restritas apenas a locais próximos aos grandes rios. Assim, a ocupação da Amazônia não pode mais ser pensada a partir de um único modelo teórico ecológico.

Segundo Jameson (2005), o conceito da palavra modernidade já estava em uso desde o século V d.C. e, que a palavra latina modernus significa simplesmente “agora” ou “o tempo do agora”. Para ele moderno é necessariamente novo, ao passo que tudo que é novo não é necessariamente moderno. Assim, significa sempre estabelecer e postular uma data e um começo. Portanto, a modernidade refere-se a uma inovação relevante no presente atual ou passado.

Utilizando o conceito de modernidade de Jameson (2005) já é possível fazer inferências, a partir de dados arqueológicos, da existência de sociedades modernas em sociedades pré-coloniais da Amazônia a partir de complexos culturais arqueológicos, como: Marajoara, Tapajônica, Maracá, Aristé e Mazagão. Alguns grupos culturais pré-coloniais, de uma forma ou de outra, desenvolveram inovações culturais relevantes no passado e no presente. Para Gomes (2002) a maior parte das pesquisas arqueológicas atuais, desenvolvidas na Amazônia brasileira, tem mostrado a existência de sociedades complexas pré-coloniais.

Fontes etno-históricas sugerem que, na época da conquista européia, as várzeas dos principais rios estavam repletas de assentamentos humanos. Os relatos indicam que tais assentamentos estavam integrados a amplos territórios, controlados por chefias políticas hierarquizadas (ACUÑA, 1891; PORRO, 1996). O registro arqueológico destas áreas apresenta estilos cerâmicos elaborados, construções coletivas, além de inúmeras evidências que confirmam a existência de grandes densidades populacionais (ROOSEVELT, 1991,1992).

Exemplo de inovação cultural na Amazônia Pré-Colonial tem confirmado a utilização do manejo florestal com a produção de terra preta, batizada pela população do interior da Amazônia de Terra Preta de Índio (TPI), estudada desde 1995 por pesquisadores da Universidade de São Paulo, através do Projeto Amazônia Central – PAC. Segundo Beckerman (1991) ocorreram mudanças na paisagem da Amazônia Pré-Colonial, sobre a qual o homem teve uma participação não intencional: o desenvolvimento de TPI.

O conhecimento da existência das TPI é muito antigo na Amazônia, remota o Século XVII, quando os primeiros colonos europeus (ingleses, franceses, holandeses e portugueses) estabeleceram-se na região, os quais localizaram suas plantações agrícolas nesse tipo de terra. No espaço de pesquisa do PAC, o testemunho mais perceptível de modificação antrópicas ocorridas no passado são solo de terra preta. Normalmente, o solo da Amazônia é amarelado, pouco fértil e ácido, já as terras pretas, ao contrário, são bastante férteis, escuras ricas em matéria orgânica e com um pH tendendo a neutro, ela é surpreendentemente estável ao longo do tempo, sendo capaz de manter alta quantidade de nutrientes ao longo dos séculos.

Para os pesquisadores do PAC ainda não está claro por que as terras pretas são tão estáveis. Contudo, eles supõem que a estabilidade é resultado da associação entre fatores naturais (o próprio solo) e fatores culturais (fragmentos de cerâmicas, carvão resultante fogueiras, ossos de animais em restos de comida) nas matrizes dos sítios arqueológicos. A pesquisa do PAC está sendo muito significativa do ponto de vista interdisciplinar, pois, com a participação de diferentes áreas cientificas, estamos podem entender a verdadeira história dos povos antigos que viveram na Amazônia.

Depois de todos os dados apresentados, naturalmente, surgem diversas dúvidas, por exemplo: como era a qualidade de vida das pessoas na Amazônia Pré-Colonial? Qual era a relação entre desenvolvimento e meio ambiente?

Respondendo a primeira questão podemos dizer que medir a qualidade de vida segundo o modelo utilizado hoje, não é possível, pois, de acordo com Veiga (2005) os bens de primeira necessidade variam de cultura para cultura e, a cultura é a principal geradora de diferenças. Assim, podemos dizer que os nativos da Amazônia pré-colombiana não conheciam um sistema de escrita e comunicação parecido com o nosso; alguns grupos desenvolveram um sistema de comunicação iconográfico presente em seus vasilhames cerâmicos (SCHAAN, 1999); não tinham que angustiar-se com pagamento de despesas, pois, não possuíam renda per capita; não possuíam água encanada e nem energia elétrica. Enfim, eles não tinham que se preocupar com o dia seguinte e, muito menos com a fome e a privação física e material, preocupações da maioria das pessoas que hoje vivem no planeta Terra.

A relação entre desenvolvimento e meio ambiente é algo que surge com a produção de bens e produtos a partir de matérias primas que são transformadas em um processo de produção industrializada ou artesanal, o que resulta na produção de riscos, em especial os ambientais de graves conseqüências. O conceito de risco passa a ocupar um papel estratégico para entender as características, os limites e as transformações do projeto histórico da modernidade (JACOBI, 2005). As sociedades americanas no nosso entendimento não chegaram a uma produção de riscos, pois, a sua relação com o meio ambiente ocorreu a partir da diversidade e especialização econômica, ou seja, cultivo de plantas, criação de animais aquáticos em cativeiro, pesca e caça (Roosevelt 1992). Portanto, o que caracterizava as sociedades americanas antes do contato com os europeus era a diversidade econômica, política, cultural e religiosa (EVANS, 2003).

Baseado em texto de Edinaldo Pinheiro Nunes Filho

AMAZÔNIA: UM PRODUTO PALEOINDÍGENA

Se a Amazônia tem o nome de uma tribo de mulheres guerreiras, talvez não seja coincidência que sua virgindade continue sendo tema de um intenso debate, dentro e fora da Academia. Como se fosse uma donzela em um romance de cavalaria, a expectativa é que, na Amazônia, quanto mais virgem for uma parte da floresta, mais valor ela terá para conservação. Ironias à parte, essa é uma discussão importante, principalmente em face ao brutal processo de ocupação e desmatamento que tem ocorrido na região nas últimas décadas, com uma perda importante de biodiversidade e também de conhecimento tradicional – de indígenas, quilombolas e ribeirinhos – sobre essa biodiversidade.

Desde o final do século passado, antropólogos e arqueólogos vêm insistindo que, na Amazônia, existe um importante componente humano na constituição atual desta floresta, que para muitos ainda é o exemplo acabado de natureza intocada pela ação nociva do Homo sapiens. Se essa hipótese estiver correta, boa parte do que é patrimônio natural da Amazônia deve também ser considerado como PATRIMÔNIO CULTURAL, resultado da atividade humana ao longo dos milênios, obviamente em uma escala totalmente diferente da verificada nos contextos de exploração madeireira e pecuária verificados na região do arco do desmatamento.

Há uma óbvia diferença de escala e ritmo entre, por um lado, as formas de antropização da natureza que ocorreram no passado ou entre populações tradicionais do presente, e desmatamento violento que assistimos acontecer do Acre ao Pará.

Quais são as evidências usadas pelos arqueólogos para apoiar esta hipótese? A primeira delas diz respeito à própria presença de sítios arqueológicos em diferentes partes a Amazônia, em áreas ribeirinhas e de terra firme e também sob muitas das cidades da região. Em Manaus, Carlos Augusto da Silva, da Universidade Federal do Amazonas, catalogou há alguns anos mais de quarenta sítios arqueológicos na área urbana, a maioria destruídos – como o conjunto Nova Cidade, próximo à Reserva Ducke – ou então em processo de destruição, como o sítio localizado no Conjunto Atílio Andreazza no Japiim, onde ônibus manobram sobre fragmentos de urnas funerárias da cultura Paredão, com cerca de mil anos de idade.

Em Santarém, os moradores do bairro da Aldeia, no centro da cidade, encontram constantemente fragmentos cerâmicos e solos de terra preta no quintal de suas casas, enquanto que em Urucurituba a Prefeitura Municipal guarda um verdadeiro tesouro arqueológico reunido pelo Professor Alberto Neves em um trabalho louvável de resgate em face do impacto gerado pela construção da nova sede do município na década de 70.

Fora das cidades, em unidades de conservação, como Parques Nacionais ou Reservas Biológicas, sítios arqueológicos são também comuns. Márjorie Lima, manauara da gema, que faz seu mestrado em arqueologia na Universidade de São Paulo, trabalha agora com cerâmicas produzidas há mais de dois mil anos nos sítios Floresta e Lago das Pombas, localizados sob as comunidades homônimas no rio Unini, em um ambiente de igapós de águas pretas, a mais de 100 km de sua boca junto ao rio Negro, no Parque Nacional do Jaú. Na Reserva Biológica do Guaporé, Eurico Miller localizou sambaquis fluviais com cerâmicas datadas em cerca de quatro mil anos em uma área atualmente ocupada por quilombolas e grupos indígenas.

A recente publicação de um artigo denominado “Hiperdominância na Flora Arbórea da Amazônia” na revista Science, escrito por dezenas de cientistas, muitos deles brasileiros, coordenados por Hans ter Steege, da Universidade de Utrecht, na Holanda, parece corroborar, por outros caminhos, o que têm dito os arqueólogos. Nesse artigo os autores realizaram uma ampla compilação de dados de inventários de espécies de árvores realizados em 1170 locais em toda a bacia Amazônica. Baseados nesses dados, estima-se que há cerca de 16.000 espécies de árvores por toda a Amazônia, algo compatível com a imensa biodiversidade da região. Desse total de espécies, no entanto, apenas 227 – ou seja, 1.4% – correspondem a metade de todas as árvores amostradas. Seria mais ou menos como, guardadas as proporções, se, sobre uma mesa de bilhar, houvesse vinte bolas coloridas, dez delas com cores diferentes, dez delas vermelhas. Essas espécies preponderantes seriam as tais “hiperdominantes” mencionadas no título do artigo.

A coisa fica ainda mais interessante quando se verifica a lista das vinte espécies mais dominantes entre as 227 hiperdominantes porque nela encontraremos velhas conhecidas dos povos tradicionais da Amazônia. Encabeçando a lista está, nada mais nada menos, que Euterpe precatoria, o bom e velho AÇAÍ, que faz a fama de Codajás. Em sexto lugar, pra não ficar distante, vem seu primo Euterpe oleracea, o AÇAÍ-DO-PARÁ, seguido logo após, em sétimo pela bela bacabeira Oenocarpus bataua. Entre as vinte primeiras há ainda outras plantas manejadas há séculos ou milênios pelos povos indígenas, tais como Hevea brasiliensis (seringueira), Licania heteromorpha (lixeira), Astrocaryum murumuru (muru-muru) e Socratea exorrhiza, nada mais nada menos que a paxiuba, tão usada como material de construção no rio Negro.

O artigo de Steege e colegas parece mostrar claramente que a atividade humana de baixa intensidade no passado e no presente tem um papel importante na história da distribuição de espécies de árvores na Amazônia. Isso quer dizer que toda a Amazônia foi modificada pela ação humana no passado? Ainda é cedo para afirmar, mas é inegável que há um grande paralelismo entre os dados botânicos agora apresentados e a ampla distribuição de sítios arqueológicos pela região, paralelismo esse que nos permite dizer que há uma longa história co-evolutiva entre plantas e pessoas na Amazônia.

Outro dado interessante que ilustra o quanto a agricultura indígena alterou a floresta e paisagem amazônica e co-evoluiu com ela, segundo Evaristo E. Miranda, é o fato dos sítios arqueológicos amazônicos estarem associados a terras de cor muito escura, conhecidas como “terra preta de índio”, que formam um mosaico de áreas com vegetação em diferentes estágios de reconstituição, desde pequenas capoeiras até matas secundárias e bem recompostas. Isso é facilmente observável, ainda hoje, através de imagens de satélite: a floresta parece um mosaico de matas com diversos tamanhos e fisionomias, em função da idade das capoeiras, desenhando figuras geométricas bem definidas (círculos, elipses, polígonos, etc). Elas descrevem a fantástica história das relações homem-natureza, caracterizada pelo enriquecimento contínuo de determinadas unidades de vegetação com plantas de interesse alimentar, medicinal ou simbólico, úteis para a fabricação de instrumentos de caça, pesca e, posteriormente, para a agricultura. Ao longo dos séculos, esses povos foram transformando as florestas e, de certa forma, co-evoluíram com a vegetação. “Os conhecimentos dos grupos humanos sobre os diversos usos das plantas amazônicas os levaram a favorecer algumas delas, protegendo-as ou disseminando-as em determinados locais”, segundo Evavisto Miranda.

Esse debate, no entanto, não é puramente acadêmico. Na Amazônia, populações tradicionais são ainda constrangidas a abandonar seus locais de moradia, seja pela perspectiva de construção de usinas hidrelétricas, como acontece agora no Tapajós, seja para a constituição de alguns tipos de unidade de conservação que restringem bastante a ocupação humana, mesmo que em condições de baixa densidade demográfica e baixo impacto.

Parece claro que não são esses ribeirinhos e quilombolas as reais ameaças à preservação da floresta. Ao contrário, pode ser que seja sua ação de manejo que garanta uma parte da própria reprodução da Amazônia que hoje conhecemos e queremos proteger. Ao forçar seu deslocamento, não estaria o poder público matando o mutum que põe os ovos de ouro?

Baseado em texto de Eduardo Góes Neves

TERRA PRETA INDÍGENA: O ADUBO DA AMAZÔNIA

Os arqueólogos costumam debater qual o real significado das manchas de terra preta encontradas em sítios pré-históricos da Amazônia Central, um tipo de solo escuro que se destaca visualmente da monotonia marrom-amarelada característica das áreas de terra firme da região. Essa terra preta tem de duas a três vezes mais nutrientes do que o solo circundante, de baixa qualidade. É caracterizada pelo grande acúmulo de matéria orgânica e apresentam nutrientes como cálcio, magnésio, zinco, manganês, fósforo e carbono, além de restos de cerâmica pré-colombiana, artefatos líticos, carapaças de tartarugas e ossos. Em geral, cada mancha mede dois ou três hectares, mas calcula-se que a soma dessas manchas chegaria a 154.063 km² de terra preta na Amazônia, de acordo com artigo publicado no periódico Proceedings of the Royal Society B.

Para alguns pesquisadores, elas são um indicativo de que grupos indígenas pré-colombianos viveram por centenas ou até uns poucos milhares de anos em sociedades complexas e estruturadas, baseadas na agricultura sedentária e no manejo do ambiente, em meio à floresta. Esse solo teria, portanto, sua origem relacionada a povos ancestrais pré-colombianos e, por isso, chamada de TERRA PRETA INDÍGENA – TPI. Para outros, a existência desse tipo de terreno mais escuro, frequentemente recheado de fragmentos de peças de cerâmica, não é uma prova cabal de que houve ali um processo de ocupação humana antiga e prolongada antes do desembarque do conquistador europeu. Mas sobre uma questão, mais relacionada às ciências agrárias do que às humanidades, há consenso generalizado: a terra preta indígena é um oásis quase permanente de fertilidade numa zona recheada de solos pobres e incapazes de reter nutrientes por muito tempo. Estudo recente confirma que um componente importante dessa variante de solo é um vestígio inequívoco do estabelecimento de assentamentos humanos: as fezes dos índios.

Concentrações de um biomarcador associado à deposição de excrementos humanos no ambiente, o coprostanol (5ß-stanol), foram encontradas em amostras de terra preta oriundas de cinco sítios pré-históricos da Amazônia, de acordo com um artigo científico a ser publicado por uma equipe de pesquisadores do Brasil e da Alemanha na edição de junho da revista Journal of Archaeological Science. Quatro sítios estão localizados no Amazonas, a sudoeste de Manaus, numa faixa de terra firme na confluência entre os rios Negro e Solimões, e um se situa no Pará, a sudoeste de Santarém, no baixo Tapajós. “A rigor, o biomarcador também poderia indicar a presença de fezes de porcos domesticados”, afirma o engenheiro agrônomo Wenceslau Geraldes Teixeira, da Embrapa Solos, do Rio de Janeiro, um dos autores do trabalho. “Mas, como esse animal só foi introduzido na América do Sul depois da chegada dos europeus, descartamos essa possibilidade.” Todos os exemplares de terra preta analisados se formaram entre 500 e 2.500 anos atrás, antes da descoberta oficial do continente por Cristóvão Colombo.

Rica em minerais associados à fertilidade dos solos, a terra preta deve sua cor enegrecida à elevada presença em sua composição do chamado carbono pirogênico, uma forma estável de carvão aromático produzida pela combustão incompleta de biomassa. O modo de vida dos antigos índios da Amazônia – que queimavam os restos de animais consumidos, enterravam os mortos e depositavam lixo e excrementos nos arredores de suas comunidades – deve ter sido o responsável pela formação desse tipo de solo. “Estamos tentando entender a composição química da terra preta e descobrir qual aporte de material orgânico a mantém fértil até hoje”, afirma o arqueólogo Eduardo Góes Neves, da Universidade de São Paulo (USP), outro autor do estudo e coordenador de um projeto temático da FAPESP sobre a história pré-colonial da Amazônia. “Se tivermos sucesso nesse objetivo, talvez possamos aprender a melhorar a fertilidade em solos pobres e dar uma contribuição para uma agricultura tropical mais sustentável.” Pesquisadores consideram a terra preta indígena um dos solos mais férteis do mundo. Por isso, desde a década de 90, existem tentativas de reproduzir artificialmente as propriedades da TPI, mas os esforços ainda estão nos trabalhos iniciais.

Alguns especialistas acreditam que compostos presentes nas fezes humanas desempenham um papel importante na manutenção a longo prazo da fecundidade dessa variante do chão amazônico. Ao contrário dos empobrecidos latossolos típicos da Amazônia, a terra preta sofre pouca lixiviação, processo caracterizado pela perda de nutrientes devido à infiltração da água da chuva que “lava” o solo e lhe rouba os componentes químicos. “Os excrementos dão uma contribuição significativa para o conteúdo de nutrientes encontrados na terra preta, como nitrogênio e fósforo, e a ajudam a reciclar seus nutrientes”, afirma Bruno Glaser, da Universidade Martinho Lutero de Halle-Wittenberg, Alemanha, estudioso da biogeoquímica de solos e também coautor do artigo. “Nas sociedades modernas isso não ocorre mais, pois esses nutrientes são perdidos com a deposição do lodo de esgoto em reservatórios.” Na terra preta as fezes provavelmente se misturam ao solo devido à ação de minhocas, cupins, formigas e outros organismos.

Embora não costume ser diretamente apontado como um elemento capaz de conferir fertilidade ao solo, o carbono pirogênico parece conter uma conjunto único de fungos e bactérias, cuja sinergia pode estar relacionada à fertilidade da terra preta. Trabalhos feitos pela equipe da engenheira agrônoma Siu Mui Tsai, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da USP, em Piracicaba, mostram que a forma de carvão presente nesse tipo de solo abriga o DNA de até 3 mil espécies de microrganismos. “Essa biodiversidade é bem maior do que a encontrada em solos amazônicos vizinhos à terra preta”, afirma Siu. “Os índios não usavam produtos tóxicos e seu sistema estava em equilíbrio.” Ninguém sabe, no entanto, se os povos pré-colombianos criaram intencionalmente a terra preta, como forma de enriquecer o solo destinado à agricultura, ou se ela é uma mera decorrência acidental dos dejetos e do lixo produzidos por seu modo de vida.

Na sua maioria, as manchas de terra preta indígena têm uma idade entre 500 e 2.500 anos, mas alguns sítios foram datados em mais de 4.000 anos. Sua profundidade pode chegar a extraordinários 2 metros – sabe-se que são necessários dez anos de ocupação permanente e intensa para se produzir 1 cm de terra preta; portanto, dois metros equivaleriam a mais ou menos 2000 anos de ocupação ininterrupta. Outro dado importante é que as manchas de TPI encontram-se normalmente em áreas elevadas próximas a curvas de rio, lagos, igarapés e cachoeiras. Nas suas camadas mais profundas, foram encontrados urnas funerárias, algumas de sepultamento coletivo (mulheres e jovens junto com homens adultos).


“A ocorrência de milhares de sítios de TPI na Amazônia seria um forte indicador da existência de povoamentos permanentes, densos, hierarquizados e estáveis, a partir do quinto milênio AEP. Foram povos muito diferentes dos atuais, cujas práticas agrícolas e nomadismo não levam à formação de terras pretas”, de acordo com Evaristo E. Miranda.

Baseado em texto do NUPARQ – Núcleo de Pesquisa Arqueológica da UFRGS

sábado, 10 de maio de 2014

MEDICINA TRADICIONAL INDÍGENA

Era comum morrer de malária na Europa do século XIV. Ninguém sabia como curar esse mal súbito caracterizado por febre alta, calafrios, dores no corpo e na cabeça – tudo acompanhado por um cansaço extremo. Incapazes de encontrar uma solução para a doença, a que mais matou na história da humanidade, os europeus a levaram às novas terras do outro lado do Atlântico. A malária veio a bordo dos navios negreiros, segundo uma recente e extensa pesquisa. E nunca mais saiu do continente. No entanto, os europeus não esperavam encontrar nos índios a primeira arma minimamente útil contra o mal. Na América do Sul, os índios já usavam extrato da casca de cinchona para combater os sintomas. Funcionava. A ponto de jesuítas levarem mudas da planta à Europa. E depois, no século XVIII, dois químicos franceses, Joseph Pelletier e Joseph Caventou, isolaram a quinina, presente na cinchona. O feito proporcionou a popularização do remédio indígena e, de quebra, a invenção da água tônica, refrigerante de quinino, derivado da quinina.

Outros conhecimentos dos índios também viraram medicamentos de farmácia – e eles fazem parte, ainda hoje, da sua caixa de remédios. Mas antes é preciso saber que doença, para índio, é algo diferente. Não se cura apenas com remédio. Exige um ritual completo, com rezas e cantos. Qualquer problema de saúde envolve corpo, espírito e mente. A causa da malária, como a ciência moderna descobriria mais tarde, não se resumia à picada do mosquito Anopheles contaminado com o protozoário Plasmodium. Para eles, é um problema espiritual, uma praga jogada por um inimigo ou por espíritos da natureza que foram desrespeitados. Só uma negociação bem-sucedida entre o curandeiro e o espírito causador da doença pode salvar o paciente. "Existe uma tríade dentro do processo de cura xamânico: o poder da pessoa que conhece as palavras encantadas, as palavras em si, e a planta, que viabiliza a penetração daquela palavra", explica Renato Athias, professor de antropologia na Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador da medicina tradicional na região do rio Negro. Eles aprenderam o que é bom ou não com base em séculos de observação atenciosa do circo da natureza em ação. E por meio de testes empíricos.

Em uma briga entre lagarto e jararaca, a cobra leva a melhor. A picada dela o deixa fraco, perto da morte. Mas ele é esperto: foge da briga e corre atrás de remédio. Mastiga umas folhas e dias depois fica forte novamente. O índio, na espreita, acompanha todo aquele processo. Se alguém for picado por uma jararaca, ele corre em busca daquela mesma planta mastigada pelo lagarto. Primeiro, testa o remédio. Se der certo, a planta entra na lista de medicações daquela aldeia. Foi assim que, ao verem animais machucados roçando em uma árvore, os índios descobriram o poder cicatrizante do óleo de uma árvore chamada copaíba, por exemplo.

O acúmulo de conhecimento se dá ao prestar atenção nas semelhanças entre formatos e cores das plantas e as doenças que elas combatem. Por exemplo, a madeira amarela de um tipo de abútua, uma trepadeira, e a seiva amarelada da caopiá, árvore também chamada de pau-de-lacre, são usadas para curar doenças no fígado. Em casos de tosse com sangue, comem Boletus sanguineus, um tipo de cogumelo vermelho. Já a raiz em formato de serpente da parreira-brava serve para curar mordida de cobra. E se for picada daquela jararaca, dá para se livrar do veneno com o sumo da planta Dracontium polyphyllum – as cores do caule lembram a pele da cobra. Os índios repararam em outros detalhes, como no látex que sai da casca de algumas árvores. Exposto ao ar, o líquido parecia um verme. Logo, aquele podia ser um bom remédio para lombriga. "As formas indígenas de classificar remédios naturais são sofisticadas", diz Maria Luiza Garnela, médica e antropóloga da Fundação Oswaldo Cruz, na Amazônia. "Envolvem cheiros, identificação de resinas e semelhanças e diferenças entre plantas".

Claro que nem toda semelhança dava certo. Esther Jean Langdon, professora de antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em saúde indígena, diz que era assim que se aprendia. "Eles observam o que funciona. Fazem essa comparação com a natureza, mas testam para saber se dá certo", explica. "É nesse sentido que eles têm uma ciência, não com experimentos em laboratórios, mas na vida". A enfermeira Patrícia Rech, professora de saúde indígena na Universidade Federal de São Paulo, viveu no Parque do Xingu, em Mato Grosso, por cinco anos. Ela presenciou um exemplo disso. Certa vez, acompanhou um parto problemático. A placenta não saía, seria preciso aumentar as contrações. Mas não havia nenhum medicamento, e a farmácia mais próxima ficava a horas de distância. Assim que souberam do problema, as mulheres da aldeia correram mata adentro. Voltaram com um punhado de plantas nas mãos. Amassaram as folhas e deram o sumo para a paciente. Em meia hora, a placenta, enfim, saiu. Sem a ajuda de nada mais. Outra história aconteceu com Maximiliano Menezes, do povo tukano, da região do rio Negro, no Amazonas. Ele levou o cunhado, picado por uma cobra, às pressas para um posto de saúde. Com a perna inchada e roxa até a altura do joelho, os médicos deram o veredito: seria transferido para Manaus e teria de fazer uma cirurgia de amputação. Um parente contou a Maximiliano sobre a eficácia de um tipo de cipó rasteiro para picadas. Ele extraiu o sumo da planta e passou no pé do cunhado. "Era para o médico autorizar a ida para Manaus na manhã seguinte. Mas o pé desinchou. O médico ficou surpreso. Era para amputar, mas ele melhorou", lembra Maximiliano. Em três dias, o cunhado recebeu alta. Saiu caminhando.

Olhar para a ciência indígena pode ser o caminho mais curto para a produção de novos medicamentos. "Quando se parte de um conhecimento tradicional, usualmente, encurta-se pela metade o tempo necessário para fabricar um novo remédio", diz o médico Clayton Coelho, que atua no projeto Xingu, da Unifesp. Uma pesquisa da Universidade da Paraíba analisou 23 especiarias usadas popularmente como remédios antimicrobianos. Depois de avaliar os efeitos, 40% das plantas tiveram suas propriedades comprovadas. Isso porque nenhum conhecimento surge do nada, sem qualquer embasamento.

É por isso que os cientistas não descartam medicamentos indígenas. E não estamos falando de tratamentos fitoterápicos, que estão no balaio dos tratamentos alternativos. Megahits das farmácias e blockbusters das receitas médicas têm herança popular. É o caso da aspirina, que saiu da casca do salgueiro. Na Europa, o médico Hipócrates já receitava o chá com a casca e folhas da árvore para amenizar febres e dores de cabeça. Os índios americanos a utilizavam para o mesmo fim (e para muito mais: reumatismo, calafrios e dores musculares). Para transformar salgueiro em aspirina, a ciência isolou o ácido salicílico, aprendeu a sintetizá-lo e transformou a droga no analgésico mais popular do mundo. Outro exemplo é a toxina d-tubocurarina, extraída do curare, veneno que os índios colocam na ponta das flechas para imobilizar caças. Ela virou relaxante muscular, usado por anestesistas durante cirurgias, principalmente para controlar convulsões. Já o jaborandi, árvore típica das regiões Norte e Nordeste, oferece os colírios de pilocarpina, que os índios usam há séculos para estimular a produção de suor. Por muito tempo, os médicos brasileiros (e alguns europeus) indicaram o remédio com o mesmo objetivo. Mais tarde, a ciência descobriu um efeito mais poderoso da pilocarpina: ela também funciona no tratamento de glaucoma. Já remédios químicos que tratam arritmia e insuficiência cardíaca devem sua vida a uma planta ornamental de flores em forma de sininhos, a dedaleira. O chá dessa planta era feito pelos índios nativos dos Estados Unidos para um distúrbio na circulação do sangue que causa insuficiência do coração.

A lista é longa e se estende a outros continentes. Pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia tentam aproveitar os conhecimentos das parteiras africanas. Elas usam o chá de uma erva de flores violetas, a Oldenlandia affinis, para aumentar as contrações uterinas. E dá certo. Não à toa, os cientistas estudam modos de viabilizar a produção de remédios com kalata B1, composto protéico da planta.

O próximo passo é encontrar na natureza possibilidades de cura para nada menos que o câncer. Pesquisadores da Unicamp isolaram e sintetizaram componentes do óleo da copaíba, de poderes cicatrizantes. Deixaram os compostos em contato com células cancerígenas de vários tipos (ovário, próstata, rins, cólon, pulmão, mama, melanoma e leucemia). "Mostrou potencial como anticancerígeno", diz o químico Paulo Imamura, orientador da pesquisa. Infelizmente, a idéia não saiu do papel, por falta de tempo e dinheiro. "Seria necessária uma longa pesquisa sobre como preparar em grande escala", completa. Nos EUA, outros pesquisadores estudam a eficácia do melão-de-são-caetano, muito usado contra doenças de pele. Apesar do nome, trata-se de um cipó. E agora, com testes em ratos, o estudo comprovou que o extrato da planta realmente ajuda a reduzir sinais de tumor.

Não se trata de uma via de mão única. Há – e sempre houve – intercâmbio de informações, mesmo que desfavorável à cultura indígena. Índios pernambucanos fazem, hoje, ritual de cura com aspirina na lista de remédios. Práticas tradicionais perdem espaço para a medicina moderna. Mas elas se adaptam. Como em Santa Catarina, onde o povo kaingang, de Chapecó, rebatizou uma espécie de artemisia que tem efeitos antifebris. Deram a ela o nome de novalgina.

Da mata à farmácia
Métodos de cura tradicionais dos índios que viraram remédio:

Ipecacuanha
O que é – Planta comum na Bahia e em Mato Grosso.
Princípio ativo – Emetina
Uso dos índios – Bronquite, disenteria e indução de vômito.
Na farmácia – Remédios contra tosse e xaropes para indução de vômito.

Jaborandi
O que é – Arbusto típico em regiões subtropicais.
Princípio ativo – Pilocarpina
Uso dos índios – Estimular a produção de suor.
Na farmácia – Curar glaucomas.

Salgueiro
O que é – Árvore de climas temperado e frio.
Princípio ativo – Ácido salicílico
Uso dos índios – Mal-estar, febre, reumatismo.
Na farmácia – Mal-estar, febre.

Dedaleira
O que é – Planta ornamental.
Princípio ativo – Digoxina
Uso dos índios – Distúrbio na circulação, causa de insuficiência cardíaca.
Na farmácia – Arritmia e insuficiência cardíaca.

Cinchona
O que é – Arbusto comum na América do Sul.
Princípio ativo – Quinina
Uso dos índios – Antitérmico
Na farmácia – Febre malárica

Texto de Carol Castro

TERRA SAGRADA

O funeral dos índios bororo é um dos rituais mais complexos do mundo. Leva meses e envolve toda a aldeia, com pinturas, músicas, danças e rezas. Eu tive a oportunidade de acompanhar um, na Terra Indígena Teresa Cristina, em Mato Grosso. Os bororo acreditam que, após a morte, a alma da pessoa passa a habitar o corpo de um animal, e o funeral deve guiá-la nessa transição. Notei que os índios sempre se deslocavam seguindo linhas imaginárias, que eu não enxergava, mas que para eles tinham um significado profundo - a aldeia é dividida em clãs, e cada um faz determinados caminhos para atravessar o pátio central. Mario, um jovem bororo, foi meu guia durante o funeral. Graças a ele descobri que cada elemento da aldeia, aquelas coisas que pareciam apenas casas, um banhado, árvores, também tinha um significado oculto – porque desempenhava um papel específico no processo. Mario resumiu de forma simples: "Nossa aldeia é sagrada". Quando um índio diz que a própria terra é sagrada, não é força de expressão. Muitos povos indígenas acreditam em deuses e seres mitológicos ligados a elementos da natureza, e o território é o espaço físico onde essas divindades se manifestam. Ou seja: a terra não é apenas o lugar onde os índios moram. É um elemento central da religião e da identidade cultural deles. "É o lugar onde descansam os espíritos de nossos ancestrais", diz o yawanawa Joaquim Tashka, que vive no interior do Acre.

"Todos os índios querem voltar no tekohá (local sagrado) onde nasceu. Os antepassados querem que a gente vá pra lá, andar em cima da nossa aldeia", explica o cacique guarani Elpidio Pires. "Os guarani têm a concepção de que são a primeira semente plantada na terra", afirma o antropólogo Rubem Almeida, que estuda esse povo há décadas. E isso explica a relação deles com seu território. "É como com as plantas. Se uma planta nasce em certo lugar, é dali. Os guarani entendem que pertencem a uma determinada terra - e não que a terra pertence a eles", diz.

Mas os territórios indígenas, que atualmente correspondem a 13% do Brasil, também são alvo de interesses políticos e econômicos. Em 16 de abril (de 2013), três dias antes do Dia do Índio, as redes de TV registraram uma cena impressionante: a invasão do Congresso Nacional por um grupo de 300 indígenas, que tomaram o plenário e cercaram alguns deputados, em volta dos quais cantaram e dançaram. Era um protesto contra a emenda constitucional (PEC) 215, projeto de lei que, se aprovado, dará ao Congresso o poder de demarcar - e reaver- terras indígenas. Os índios temem que deputados ligados ao setor agropecuário (que formam a chamada "bancada ruralista") e empresas se mobilizem para reduzir suas terras. Após a manifestação, o presidente da Câmara dos Deputados disse que a PEC 215 só voltará a ser discutida no próximo semestre. Ou seja: os índios ganharam tempo. Mas não ganharam a batalha - mesmo porque, em maio, o governo mudou as regras. A Fundação Nacional do Índio (Funai), que era a responsável por demarcar os territórios indígenas, agora terá de dividir esse poder com outros órgãos do governo - entre eles a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). As 687 terras indígenas no país, que abrigam aproximadamente 517 mil pessoas, despertam enorme interesse de agricultores, pecuaristas, mineradoras e empreiteiras, que veem nelas uma grande oportunidade de lucro e têm tentado explorá-las - nem sempre de forma pacífica.

No final do ano passado, uma mobilização online pedia que as pessoas mudassem de sobrenome nas redes sociais - trocando-o por "guarani kaiowá", nome de dois povos indígenas que vivem no Mato Grosso do Sul. Eles têm as piores condições de vida do país, com expectativa de vida de apenas 45 anos (contra 73 dos brasileiros em geral). Os guarani kaiowá vivem tão pouco porque, entre outros motivos, são assassinados – entre 2003 e 2010, 452 índios foram mortos no Mato Grosso do Sul. Em novembro de 2011, o cacique Nísio Gomes foi morto por pistoleiros, e várias lideranças indígenas estão ameaçadas de morte – algumas precisam andar com proteção da Força Nacional. Toda essa violência tem um motivo simples: terra.

A primeira terra indígena reconhecida legalmente no Brasil foi o Parque do Xingu, em 1961. Nos anos 1970 e 1980, houve uma grande mobilização em torno da defesa dos índios, que culminou nos direitos da Constituição de 1988. "Índio é terra, não dá para separar", dizia um cartaz da época. A partir daí, grandes áreas foram demarcadas, tentando respeitar os territórios tradicionalmente ocupados pelos índios. A maior de todas é a yanomami, com mais de 9 milhões de hectares, situada entre Roraima e o Amazonas, demarcada em 1992 depois que um genocídio perpetrado por garimpeiros mobilizou a sociedade.

Mas nem todo índio ocupa seu território original. Muitos povos foram desalojados. A ocupação da terra é dinâmica, com histórico de violência e lutas desde o início da conquista pelos europeus e das primeiras entradas dos bandeirantes no interior. Mais recentemente, essas lutas passaram a envolver os interesses de empresas de vários setores.

As mineradoras, por exemplo. Hoje, é proibido fazer mineração em terras indígenas. Mas dois projetos de lei, em discussão no Congresso, querem legalizar a prática. Hoje há empresas interessadas em minerar 152 terras indígenas, segundo levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA). Um dos projetos estipula que os índios fiquem com pelo menos 2% do faturamento do empreendimento. Como as empresas de mineração têm um poder político e econômico maior que o dos indígenas, existe a possibilidade de que esse "pelo menos" não tenha qualquer efeito prático – e os índios acabem ficando com apenas 2% mesmo. No Canadá, onde a mineração de terra indígena é prevista em lei, eles recebem até 50% do lucro.

Alguns povos, como os índios cinta-larga em Rondônia, já convivem com a mineração. Eles encontraram diamante na sua terra, no início da década passada, e passaram a estabelecer relações com garimpeiros de forma ilegal. Isso lhes rendeu dinheiro mas também conflitos, que culminaram com a morte de 29 mineradores em 2004. E, se alguns povos indígenas possuem interesse em explorar economicamente a mineração, outros não querem nem ouvir falar no assunto. É o caso dos yanomami. Segundo o ISA, mais da metade da terra deles poderia ser destinada a mineração, principalmente de ouro, caso essa prática seja liberada. Mas os yanomami são contra. Um dos projetos que está no Congresso prevê que, caso os índios não aceitem a mineração, ela poderá ser imposta pelo Poder Executivo, que ouviria um conselho formado por órgãos do governo, da sociedade civil e do Congresso. Se esse conselho decidisse a favor da mineração, os indígenas seriam forçados a aceitá-la.

Com ou sem mineração, os territórios indígenas já estão sendo afetados por grandes projetos de infraestrutura. O rio Tapajós, um dos maiores formadores do Amazonas, possui muitas cachoeiras quando passa pela divisa do Pará com o Mato Grosso. Uma delas é conhecida como Sete Quedas, e ficou conhecida por ser intransponível para os barcos que tentavam cruzá-la no período da economia da borracha na Amazônia, até 1913. O local servirá de base para a construção de uma usina hidrelétrica, já em curso, pelo governo. Para especialistas em energia, a obra é necessária. E para os índios munduruku, que vivem na região, um pesadelo. Um deles, o cacique Kubatiapã, conta que teve um sonho relacionado à construção da usina: "Estávamos andando, um bocado de pessoas. Pintados. Com arco e flecha nas costas, na direção do poente. Num momento vem um avião, passando pertinho. E em uma estrada, para um carro, e eles começam a atirar. Eu estava com a arma, o arco na mão, que virou uma espingarda 22. Gritei para todo mundo entrar no mato. Nos escondemos, e fomos para essa cachoeira sagrada. Lá é um lugar protegido."

Texto de Felipe Milanez