Os índios brasileiros não verão a chegada do século XXI. Assim previa o antropólogo Darcy Ribeiro, enquanto escrevia Os índios e a civilização (1970). A profecia do indigenista não se concretizou. Ao contrário: é crescente a presença demográfica e política dos povos indígenas brasileiros. O que teria acontecido?
Não foi um erro de Darcy. Em sua obra, ele fez uso das mais extensas informações estatísticas e demográficas disponíveis à época, tiradas do Serviço de Proteção dos Índios (SPI), onde trabalhava, e utilizou um moderno arsenal interpretativo para avaliar a situação. O que mudou de lá para cá foram as garantias legais que protegem esses povos, e o modo como se pensa e se reconhece hoje a própria condição indígena.
Na década de 1950, o Estado brasileiro via o índio como alvo de uma inevitável e gradativa integração à sociedade nacional. Desde o Marechal Rondon e a criação do SPI, em1910, estabeleceu-se que o papel do governo seria tornar essa marcha para a civilização a mais indolor possível. Criaram-se Frentes de Atração e Pacificação, postos indígenas nas aldeias e todo um aparato institucional para que o Estado pudesse tutelar o índio. Os indigenistas funcionários do SPI (depois Funai) deveriam garantir que essa transição se desse de modo mediado e sem violência. Ao fim, ele se tornaria um índio integrado, indistinto no meio dos demais brasileiros.
A própria ideia de tutela é uma continuidade histórica, uma resposta à difícil pergunta de qual deve ser o status dos primeiros habitantes das terras brasileiras. Trata-se de cidadãos de segunda classe, condição semelhante à dos órfãos no século XIX: ambos necessitam de um responsável perante a lei. O Estado tutor é aquele que decide pelos índios e, sob pretexto de cuidar deles, os mantém sob controle. Aquele era também o tempo em que se começava a pôr em prática a ideia de territórios indígenas, nos quais poderiam dar continuidade a seus modos de vida sob a proteção (ou o controle) do Estado. Era este também responsável por definir quem é índio ou não.
A mudança mais importante nesse quadro foi a Constituição de 1988, que reconhece o direito dos índios às suas terras e à cidadania plena. Esse avanço jurídico só pôde ocorrer por conta da mobilização indígena e de sua atuação junto a aliados na Assembleia Constituinte. Imagens da época mostram a presença maciça de representantes indígenas acompanhando os debates e a votação da nova Constituição.
O direito a terra, reconhecido como originário, evita um antigo dilema dos índios: tendo sido muitos deles obrigados, pela colonização, a se embrenharem cada vez mais para o interior, nem sempre era fácil comprovar sua ocupação histórica e tradicional. Agora se deixa de procurar vestígios da ocupação milenar para se estudar seu território atual, designando-lhes uma porção suficiente para sua sobrevivência física e cultural. “Há muita terra para pouco índio”, dizem os críticos. Ou, mais grave: “Eles estão tomando conta do território nacional”. A primeira acusação não merece crédito, em um país de latifundiários. Quanto à segunda, vale lembrar algo que muitas vezes é omitido: os territórios indígenas demarcados pelo Estado brasileiro são terras alienáveis da União, cedidas aos índios em regime de usufruto, ou seja, eles não têm a posse das terras: ganham o direito de nelas residir e fazer uso das riquezas do solo e das águas para viver.
Incorporados aos sistemas nacionais de educação escolar e saúde, os índios passaram a compartilhar direitos universais de todos os cidadãos. Têm também garantido o direito de que estes serviços respeitem suas culturas e organizações sociais e políticas. A educação indígena é regulamentada por diversas legislações, a começar pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Garante-se o direito ao ensino bilíngue, aos próprios processos de ensino e aprendizagem, à cultura e aos conhecimentos indígenas, além de poderem desenhar seus próprios currículos e rotinas escolares com gestão indígena e professores indígenas. Na prática, em sistemas de ensino engessados, isso nem sempre é tão fácil. Mas os direitos existem e demarcam as políticas.
Em linhas gerais, o mesmo vale para a saúde. Antes atendidos por um serviço da Funai, os índios agora são integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Como a educação escolar indígena, em muito se ganha no respeito às culturas e às práticas indígenas. Da mesma forma, a aplicação desses princípios é um desafio, assim como a formação e a contratação de pessoal especializado e a operação do sistema.
Mesmo com tantas conquistas, diversas violações aos direitos indígenas permanecem. A começar pelo direito a terra. Quando promulgada a Constituição, o Brasil teria cinco anos para demarcar todas as terras indígenas. Até hoje isso não aconteceu. E muitas terras demarcadas se transformam em uma espécie de confinamento – em especial, as áreas devassadas e ocupadas pela monocultura.
Permanece a visão de que os índios são um empecilho ao desenvolvimento nacional. Suas terras têm sido cada vez mais ameaçadas por projetos de criação de hidrelétricas, pela construção e pelo asfaltamento de estradas que cruzam suas terras, por projetos de mineração. A hidrelétrica de Belo Monte é um caso exemplar entre tantos outros, em praticamente todos os rios amazônicos. Nisso, parece que a história se repete. Darcy dizia que os índios são atingidos por algumas frentes de expansão e colonização do território: a extrativista, a agrícola e a pecuária. Entre hidrelétricas, projetos de mineração, fazendas de gado e grandes plantações de monocultura, o Brasil está sacrificando sua diversidade ecológica, biológica, social e cultural. E os índios, frequentemente, são vistos como os bandidos desta história.
Ao longo do tempo, foram superadas as dificuldades em reconhecer sua humanidade, sua liberdade (direito a não escravização) e sua capacidade (direito a não serem tutelados). Resta, hoje, a questão das identidades étnicas.
A diversidade étnica baseia-se no autorreconhecimento e na autoidentificação. É índio aquele que se reconhece como tal, e é reconhecido por uma comunidade indígena como seu membro. Assim, evita-se o arbítrio de ter um terceiro definindo a “indianidade” de qualquer pessoa – porque se estes, como foram a Funai ou o SPI por tanto tempo, podem afirmar a identidade indígena, podem também, com frequência e de modo arbitrário, negá-la. O Brasil ratificou em 2000 a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual a identidade dos povos indígenas só pode ser autodeclarada – e não mais atribuída. Por isso, não há critérios fixos para definir essa identidade.
Assistimos ao que parece ser o ressurgimento de grupos indígenas. Isto se dá porque comunidades que tiveram que praticar sua diversidade cultural e étnica em silêncio e às escondidas finalmente podem vir a público, dadas as garantias legais. Por muito tempo, ser índio no Brasil significou ser reduzido às missões, escravizado, ser alvo de discriminação e até de chacinas. Diversos povos foram obrigados a abrir mão de suas línguas e de muitos costumes que eram importantes para eles. Voltam agora a afirmar sua diferença, a ver reconhecida sua identidade e a recuperar muito do que perderam.
Mas a condição de indígena só faz sentido em contraponto ao Estado nacional. Os índios são muito diversos entre si, em comum eles têm sua diferença em relação aos não indígenas. Assim, hoje todos se descobrem parte de algo que é maior do que suas identidades particulares: sua condição indígena. Dos yanomamis embrenhados na selva aos kayapós emplumados e aos indígenas do Nordeste que perderam suas línguas, todos igualmente assumem esta condição.
Não vale para eles acusações de artificialidade: não há nada que defina um índio, a não ser seu reconhecimento e o de seus pares de que ele o é. E esta é uma das maiores conquistas do Brasil contemporâneo, de que todos temos que nos orgulhar.
Texto de Clarice Cohn
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