O
cone sul do estado de Mato Grosso do Sul apresenta hoje a maior população
indígena do Brasil. São aproximadamente 46 mil indivíduos, que pertencem às
etnias guarani-kaiowá e estão distribuídos em uma área de 30 mil hectares, em territórios
em conflito com tamanhos variados e em diferentes condições de regularização
fundiária (demarcadas, identificadas ou em acampamentos aguardando
reconhecimento do Estado).
No
que diz respeito aos territórios tradicionais guarani-kaiowá reivindicados
pelos indígenas contemporâneos, as fontes históricas e arqueológicas assinalam
claramente o fato de que o atual cone sul do Mato Grosso do Sul é, através de
séculos, território de ocupação tradicional dos guarani-kaiowá. Porém,
atualmente, eles demandam somente uma parte dos territórios antigos,
localizados basicamente à margem de cinco rios: Brilhantes, Dourados, Apa,
Iguatemi e Hovy.
O
modo tradicional de ocupação do espaço pelas famílias extensas ou comunidades guarani-kaiowá
é difuso no território, morando fundamentalmente na proximidade de fontes de água
boa (minas d’água, córregos, rios etc.), que permitiam o assentamento destes
indígenas. Além disso, estes lugares possibilitavam o desenvolvimento das
atividades pesqueiras, de caças e coletas. Estes locais vitais, então, recebiam
uma nomenclatura na língua indígena, a qual passava a denominar o território ou
a região onde cada grupo macrofamiliar habitava. Outros acidentes geográficos
e/ou marcos (físicos ou simbólicos) da paisagem, assim como espaços fontes de
recursos (como caça e coleta), ou nomes de chefes/lideranças indígenas que ali
viveram no passado foram igualmente utilizados para denominar essas regiões.
Terra indígena foi considerada “devoluta” pelo governo
A
ligação com a terra (em guarani, “yvy“),
assim, é vista por esses indígenas, por um lado, como tendo uma fundamentação
econômica, de desenvolvimento de atividades que permitem a sobrevivência dos guarani-kaiowá,
e, por outro, com um forte sentimento religioso de pertencimento à terra,
fundamentado em termos cosmológicos, sob a compreensão de que eles foram
destinados, em sua origem como humanidade, a viver e a cuidar desse território
específico
Neste
sentido, é possível compreender que os territórios tradicionais denominados Tekoha Guasu, localizados à margem dos
cincos rios mencionados, correspondem a um conjunto de várias microrregiões
internas dos amplos territórios tradicionais, cada um deles situado na margem
dos rios correspondendo à origem de um determinado grupo de parentesco
macrofamiliar guarani-kaiowá. O que vem, portanto, a ser concebido como a
Tekoha Guasu é a totalidade dessas microrregiões territoriais.
Por
conta do processo histórico de colonização oficial dos territórios guarani-kaiowá
pelo governo do Brasil, aproximadamente 15 mil indígenas guarani-kaiowá que
hoje reivindicam seus antigos territórios encontram-se residindo às margens de
rodovias federais nas pequenas áreas retomadas; além disso, 30 mil se assentam
nas reservas ou postos indígenas, que são áreas oficialmente demarcadas
(denominadas também Aldeias Indígenas
Desde
1915, quando foram instituídas oito reservas indígenas, até os anos 1980 — com
forte ênfase na década de 1970 —, o que se assistiu no atual Mato Grosso do Sul
foi um processo de expropriação de terras de ocupação antiga guarani-kaiowá, em
favor de sua titulação privada. As terras indígenas foram consideradas “terra
devoluta” e terra vazia, por isso o território antigo se tornou legalmente
objeto de comércio do governo.
Os
relatos de indígenas idosos, a partir da memória de seus anciãos, além de farta
documentação do governo do Brasil (através do Serviço de Proteção aos Índios)
revelam a presença guarani-kaiowá difusa nas margens dos cincos rios no cone
sul do estado, em espaços territoriais específicos. Além disso, as fontes documentais
mencionadas demonstram que a retirada ou expulsão desses indígenas têm sido
efetuadas por meio de forças violentas e de aliciamento e convencimento. Nessa
operação histórica de expulsão de indígenas guarani-kaiowá, a partir de 1970,
se envolveram os novos proprietários não indígenas, agentes políticos e
militares que passaram a operar no sul do Mato Grosso do Sul, contando
inclusive com a participação de funcionários do Estado, do antigo SPI e,
posteriormente da Funai, conforme relatórios oficiais e a literatura
historiográfica.
Diante
disso, as iniciativas de articulação e luta de várias lideranças guarani-kaiowá
para retornar aos antigos territórios começaram a despontar no final da década
de 1970. Os grandes rituais religiosos — jeroky
guasu — foram fundamentais para os líderes políticos e religiosos se
envolverem nos processos de reocupação/retomada e recuperação dos territórios
tradicionais específicos.
Até
hoje eles se sentem originários destes espaços reivindicados. Nos últimos 30
anos, tendo sido privados da possibilidade de se reassentar nos territórios
tradicionais e sobreviver conforme seus usos, costumes e crenças, passaram a
investir nas táticas pacificas de recuperação das terras.
Em
relação ao significado vital do território para o povo guarani-kaiowá, é
preciso observar em detalhe o relacionamento desses indígenas com os seres
invisíveis/guardiões (protetores/deuses) da terra, manifestado através de
cantos e rituais diversos dos líderes espirituais. A forma de diálogo e respeito
com esses seres humanos invisíveis marca uma diferença muito importante em
relação à percepção e ao uso dos recursos naturais da terra.
Pacto irrenunciável com o território
Os
guarani e os kaiowá têm conexão direta com os territórios específicos, consideram-se
uma família só, dado que o território é visto por estes indígenas como humano.
Eles possuem um forte sentimento religioso de pertencimento ao território,
fundamentado em termos cosmológicos, sob a compreensão religiosa de que foram
destinados, em sua origem como humanidade, a viver, usufruir e cuidar deste
lugar, de modo recíproco e mútuo. Portanto, eles podem até morrer para salvar a
terra. Há um compromisso irrenunciável entre os guarani-kaiowá e o
guardião/protetor da terra, há um pacto de diálogo e apoio recíproco e mútuo:
os guarani-kaiowá protegem e gerenciam os recursos da terra e, por sua vez, o
guardião da terra vigia e nutre os guarani-kaiowá.
A
compreensão destes espaços territoriais tem uma concepção cosmológica sui generis, e uma fundamentação
cosmológica e histórica que se enraíza em tempos passados e perdura até o
presente. Dessa forma, a luta pela recuperação das antigas áreas ocupadas pelos
guarani-kaiowá é realizada por meio de reocupação ou retorno pacífico ao território,
caracterizado como um movimento pacífico e político-religioso exclusivo. Isto
é, trata-se de uma articulação política comunitária e intercomunitária de
lideranças religiosas guarani-kaiowá.
Na
Aty Guasu, são discutidas
religiosamente e tomadas decisões vitais que afetam a todos, como sobre a
recuperação e retomada pacífica de parte dos territórios antigos, por exemplo.
A Aty Guasu é definida como uma assembléia geral realizada entre as lideranças
políticas e religiosas guarani-kaiowá a partir do final de 1970. Ela é
considerada o único foro legítimo de discussão religiosa e decisão articulada
dessas lideranças políticas e religiosas.
Apesar de violências anunciadas contra suas vidas, o movimento pacífico de guarani-kaiowá contemporâneos para recuperar os territórios se encontra em evolução, com uma articulação em rede cada vez maior entre lideranças reivindicantes de seus territórios tradicionais tekoha guasu localizados nas bacias do cono sul de Mato Grosso do Sul.
Texto de Tonico Benites, guarani-kaiowá, doutorando em Antropologia Social pela UFRJ
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