“São gente maravilhosamente estranha e
selvagem, sem fé, sem lei, sem religião, sem civilidade alguma, vivendo como
bichos irracionais, tais como a natureza os produziu. comendo raízes,
permanecendo nus, tanto homens como mulheres (...)": em sua
apresentação dos índios brasileiros, Thevet (1983:49) escolheu o modo da
diferença, ou, melhor dizendo, da privação. Os selvagens são definidos pelo que
eles não são, em oposição aos cristãos que terão por tarefa "levá-los a· despirem essa brutalidade, para vestir modos mais civis e
humanos". De imediato, coloca-se a oposição entre natureza e cultura. Os
índios são vistos como pertencentes à ordem da natureza
enquanto os cristãos representam a cultura.
À
medida que os pensadores europeus se vão desencantando com sua própria
sociedade, o suposto “estado de natureza" passa a ser valorizado. É esta a
posição de Montaigne que, ouvindo o relato de um daqueles marinheiros que se
fixara "por 10 ou 12 anos no lugar
onde Villegagnon se assentou, e que apelidou de França Antártica", chega
à conclusão de que “nada há que seja
bárbaro ou selvagem nessa nação, a não ser que cada qual chama de bárbaroaquilo que não faz parte dos seus
costumes" (1950:243). Desgostoso com as atrocidades perpetradas por
católicos e protestantes no decorrer das Guerras de Religião, Montaigne sonha
com homens vivendo em estado de inocência original. Como bem observou Todorov
(1989), na verdade Montaigne está menos interessado nas reais condições de vida
dos tupinambás do que na denúncia das inadequações de sua própria sociedade. O
outro é, mais uma vez, o espelho sonhado. Para condenar a absurda crueldade da sociedade
francesa, é preciso contrastá-Ia com o comportamento dos índios. Mas a oposição
inicial é mantida. O europeu permanece o ser da cultura, ainda que pervertido, e
o indígena não foge à condição de ser da natureza, ainda que valorizado. "O outro jamais é percebido nem
conhecido. O que Montaigne elogia, não são os ‘canibais’, mas sim os seus
próprios valores" (Todorov, 1989:60).
Lussagnet
(1953:VIl) adverte que tanto o informante de Montaigne quanto os colaboradores de
Thevet eram pessoas "simples e
grosseiras" (Montaigne) que, vivendo muito tempo entre os índios,
haviam aderido em grande parte aos seus costumes. Todos tinham constituído família
com mulheres indígenas e suspeita-se que alguns deles tivessem "virado
nativos" a ponto de praticarem também o canibalismo. Não lhes convinha
passar, para os viajantes, imagens por demais negativas que pudessem reverter na
condenação de suas próprias vidas. O selvagem tinha de ser bom para que os marinheiros
não fossem maus. Não será esta a última vez que informantes determinarão o rumo
dos estudos antropológicos.
Thevet
e Léry pretendem fornecer aos leitores um quadro exaustivo da vida dos índios e
dos seus costumes. Os tupinambás não são apenas diferentes dos europeus. Eles
tampouco se enquadram nas expectativas medievais que representavam a humanidade
dos confins do mundo como monstruosa ou próxima da animalidade. Não são cobertos
de pelos, não têm pés maiores do que o corpo nem feições de lobo. "Saem do ventre de sua mãe tão belos
e bonitos quanto as crianças de nossa Europa" (Thevet. 1983:55). "Não são maiores, mais grossos ou mais
pequenos de estrutura do que somos na Europa; não têm corpo monstruoso nem
desmedido em comparação conosco; são porém mais fortes, mais robustos, mais
fornidos, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, e quase não tem
coxos, tortos, aleijados nem doentios" (Léry, 1889:180).
A comparação faz-se a favor do índio que, no que diz respeito ao corpo, é melhor
em tudo.
No
levantamento das diferenças, o índio é descrito essencialmente em sua dimensão corporal,
pois o que distingue o tupinambá, o que faz dele, inapelavelmente, o ser da natureza,
é que este corpo se revela em toda a evidência de sua nudez.
"Isso não é tolerável", Thevet
fulmina (1983:52). "Não lhes basta
ficarem nus e pintarem o corpo de várias cores" (p.66), ainda arrancam
os pelos e furam o beiço. Colam penas no corpo, fazem enfeites de orelha com
papo de tucano, e o efeito, diz Léry, é "deslumbrante" (1889:185).
Enquanto Thevet vitupera a falta de vergonha dos índios, Léry, não
menos puritano, visto que calvinista, empenha-se constantemente em separar a
nudez - estado por assim dizer objetivo dos índios - e suas possíveis
implicações eróticas. Faz questão de responder "aos que pensam que a assistência entre os selvagens nus e
principalmente entre as mulheres incita a lascívia e impudicícia (...) que essa
nudez grosseira da mulher é muito menos atraente do que se pensa, como então
geralmente observamos" (p.193). Embora as mulheres selvagens, "em relação às feições, nada devam às
outras damas em formosura" (op. cit), são menos perigosas, em sua nudez
usual" do que as francesas.
Apesar
disso, reina a repressão sexual na França Antártica. Villegagnon, cioso de manter
a separação entre selvagem e civilizado, "proibiu,
sob pena de morte, que ninguém, que tivesse o título de cristão, habitasse com
as mulheres dos selvagens" (Léry, 1889:163). Como todo tabu, essa interdição,
ao mesmo tempo em que discrimina, aponta para a possível junção, pois não é
necessário proibir aquilo que não se deseja. Põe também em evidência a natureza
ideológica da distinção: é o título de cristão que produz o corte. Em nível
concreto, a nudez é o marcador dessa diferença. Remete ao próprio instante do
pecado original e à revelação da consciência da culpa. Por mais que se
insista, os índios recusam as roupas. Usam-nas como enfeites quaisquer em suas
farras: é claro que nada significam para eles (Thevet, 1983:53). As escravas
indígenas do forte Coligny, vestidas à força, castigadas com chicote, tiram a
roupa assim mesmo, logo que podem (Léry,
1889:190). O apego à nudez como que assinala a impossibilidade de situar o índio
nas categorias disponíveis de humanidade. É, por assim dizer, um puro significante.
Mostra um corpo em nada diferente do dos europeus. Mas o fato de exibi-lo, em
sua simplicidade, evidencia o paradoxo: os índios são homens como nós, mas
mostram isso de um modo que revela que não são como nós. O único meio que se oferece
aos europeus para superar essa contradição, é transformá-la em objeto de
estudo. Nasce a antropologia.
O
referencial interpretativo, nesse início da Idade Moderna, ainda é fornecido pela
religião. A descrição dos costumes indígenas será articulada por categorias
oriundas da teologia. “Este
trabalho", escreve De Certeau (1982:222), "é, de fato, uma hermenêutica do outro. Transporta para o novo mundo
o aparelho exegético cristão que, nascido de uma relação necessária com a alteridade
judaica, foi aplicado, alternadamente, à tradição bíblica, antiguidade grega ou
latina, ou a muitas outras totalidades ainda estrangeiras (...). A etnologia
irá tornar-se uma forma de
exegese que não deixou de fornecer ao Ocidente moderno com o que articular sua
identidade numa relação com o passado ou o futuro, com o estranho ou com a
natureza".
Situar
os indígenas em relação ao plano do Gênesis, constitui um desafio. Thevet afirma
que eles não têm religião, mas têm crenças. Acreditam na imortalidade da alma, reverenciam
um deus chamado Tupã e são perseguidos por uma espécie de diabo. Na
multiplicidade de ritos e de mitos, Thevet e seus informantes selecionam os
elementos que poderão servir de ganchos para alguma catequese, “tão espiritual é aquela pobre gente"
(1983:78). Léry, por sua vez, julga que "na
terra não existe nação alguma, que mais afastada vive de qualquer idéia religiosa"
(1889:274), mas assinala a crença na alma imortal e relata com detalhes os procedimentos
mágicos dos pajés. Aproveita para jogar algumas farpas em direção dos papistas
que, nesse particular, não lhe parecem muito diferentes dos selvagens, inaugurando
assim uma tradição que florescerá entre os viajantes ingleses dos séculos XVIII
e XIX.
Mas o
que realmente preocupa Léry é inserir os índios na ordem bíblica do mundo. "Parece que a opinião mais provável acerca
de sua origem é que descendem de Cam, e eis a meu ver a conjetura mais verossímil
que podemos formar" (p. 291). Os indígenas americanos estão colocados na
mesma categoria que os negros africanos. O terceiro mundo já se está esboçando.
Se os
amaldiçoados netos de Noé estão fora da cristandade, a culpa é deles. Analisando
os mitos indígenas referentes a antigos profetas, Léry passa
em revista diversas hipóteses, até concluir que os índios já tiveram a oportunidade
de serem evangelizados pelo apóstolo dos gentios em pessoa. "Considero muito melhor fundamentada a
passagem de São Paulo, constante do Salmo 19, a saber: 'A sua voz percorreu toda
a terra e suas palavras chegaram às extremidades do mundo' (...) e pergunto que incongruência
haveria em crer que um ou muitos tenham estado na terra desses bárbaros?" (p.
287).
A
exegese cristã do mesmo modo que permite legitimar a pregação de São Paulo através
do Antigo Testamento, oferece subsídios para que os mitos dos tupinambás sejam
interpretados como sobrevivências degredadas da mensagem cristã. Observa-se que,
nesse processo, os índios deixam de ser chamados de selvagens para serem classificados
como bárbaros. A partir do momento em que é enquadrado no referencial cristão, o
Bom Selvagem desaparece. "Passa a
ser reconhecido como um ser degredado, corrompido e decaído, que precisa do Ocidente
para a sua salvação" (Hurbon, 1988:33). A inversão no espelho
imaginário da França Antártica dá lugar à existência da conversão.
Entre
os colonizadores portugueses, Holanda (1985:104-25) desmonta mecanismo semelhante.
Os índios teriam sido evangelizados por São Tomé, vindo da índia, mas esqueceram
os seus ensinamentos. Tomaram-se apóstatas. No horizonte do Novo Mundo,
profilam-se os tribunais da Santa Inquisição. Impossibilitado de reconhecer a realidade
do outro em sua singularidade, o Ocidente aniquila-a.
Mas o
mito do Bom Selvagem conserva a sua utilidade. Na linha inaugurada por Montaigne,
os pensadores europeus necessitam legitimar crítica de sua própria sociedade pela
comparação com as supostas virtudes das sociedades selvagens, e sabe-se o quanto
o Iluminismo contribuiu para a manutenção do mito e até mesmo a sua expansão. O
enfoque teológico será substituído pelo filosófico e, por fim, a Societé dês
Observateurs de I 'Homme, fundada em 1799, assumirá de vez a perspectiva do
cientificismo.
Por
religiosos, Thevet e Léry reduzem a estranheza à herança da apostasia ou da
maldição. Por modernos, contudo, mantêm o interesse pelas
singularidades dessa humanidade desconhecida. Sob esse aspecto, ambas as
narrativas expressam como que uma constante negociação entre a exigência teológica
da condenação e o deslumbramento da descoberta. Uma das ilustrações mais curiosas
dessa ambivalência é fornecida pelo tratamento dado ao problema do canibalismo.
Aceita
por muito tempo como realidade factual, a antropofagia foi recentemente objeto de
acirrado debate. Vários autores mostraram que, na maioria das vezes, os relatos
referentes à prática do canibalismo fundamentavam-se em depoimentos de informantes
que descreviam o que tinham ouvido contar a respeito dos costumes repugnantes
de sociedades inimigas ou afastadas. Tal como a feitiçaria, o canibalismo hoje
tomou feições de categoria de acusação, e, sem
chegar ao extremo de negar terminantemente a sua ocorrência pode se
supor que foi muito menos praticado do que se afirmava antigamente.
No caso
dos tupinambás, não há porque duvidar dos relatos de Thevet e Léry. Se os
informantes do primeiro não puderam silenciar a respeito, é porque,
provavelmente, o fato era por demais reconhecido por todos. Nem Thevet nem Léry,
contudo, parecem ter presenciado essa situação, ao contrário de Hans Staden
(1974), que praticamente só fala nisso. Com os nossos viajantes, o tema recebe
um tratamento assaz peculiar. Thevet, sobretudo, oferece·nos interessante
demonstração de rearrumação dos dados: é verdade que os tupinambás costumam comer
os inimigos. Mas será que vale a pena chamá-los de canibais por esse simples
motivo?
Canibais,
ensina doutamente Thevet, são aqueles que "só
vivem de carne humana" (1983:134). É o caso dos Goitacazes "comedores de cante humana como cães e
lobos, e possuidores de linguagem não entendida pelos vizinhos"
(p.146). A crueldade acompanha-se de incompreensibilidade. Na verdade, Thevet
adverte que o problema essencial está na significação. Língua ou costumes, tudo
é código.
Todos
os grupos indígenas que moram do cabo Santo Agostinho para cima fazem parte da
mesma categoria subumana. "Esta canalha
come regularmente carne humana, como nós comemos carneiro, e disso eles tiram o
maior prazer. E vocês podem ter certeza que é muito difícil arrancar-lhes um homem
das mãos, pela vontade que eles têm de comê-lo, como se fossem leões vorazes"
(p.156). São tão ferozes que nenhuma nação deles consegue se aproximar. No
entanto, detalhe que lá tem a sua importância, espanhóis e portugueses os
costumam frequentar. "Só Deus sabe
qual o tratamento que eles recebem, pois eles jantam juntos", acrescenta
Thevet, com boa dose de perversidade.
"Qui se ressemble, s'assemble”
(Pássaros com as mesmas penas, voam juntos), diz um provérbio
francês presente nas estrelinhas da insinuação de Thevet. Para frequentarem tão
de perto os canibais, e até compartilhar as suas refeições, espanhóis e
portugueses boa gente não são. É claro que os nossos tupinambás, com quem
convivem tão bem os franceses - e particularmente os normandos - "estão longe da ferocidade daquela canalha".
Logo, canibais são os outros.
O
cosmógrafo do rei desenha uma geografia própria. Para Thevet, a América compõe-se
basicamente de três regiões: o Peru, o País dos Canibais - que começa pelos lados
do rio Paraíba e se estende ao norte, até incluir o Caribe - e, é óbvio, a
França-Antártica. À medida que o conhecimento faz-se
mais objetivo, recuam as fronteiras do imaginário. O país dos canibais é cheio de
ouro e pedras preciosas. Lugar de todas as fantasias, nele se misturam riqueza
e terror.
Ainda
que os tupinambás sejam "maravilhosamente
vingativos" e cruéis com os inimigos, demonstram possuir qualidades morais.
São leais com os amigos, hospitaleiros, prezam as pessoas generosas e são até
capazes de "caridade natural"
(Léry, 1889:310). No cômputo geral, apesar de todas as reduções, ganha o Bom
Selvagem.
Texto de Monique Augras
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