sábado, 7 de abril de 2012

O BOM SELVAGEM


“São gente maravilhosamente estranha e selvagem, sem fé, sem lei, sem religião, sem civilidade alguma, vivendo como bichos irracionais, tais como a natureza os produziu. comendo raízes, permanecendo nus, tanto homens como mulheres (...)": em sua apresentação dos índios brasileiros, Thevet (1983:49) escolheu o modo da diferença, ou, melhor dizendo, da privação. Os selvagens são definidos pelo que eles não são, em oposição aos cristãos que terão por tarefa "levá-los a· despirem essa brutalidade, para vestir modos mais civis e humanos". De imediato, coloca-se a oposição entre natureza e cultura. Os índios são vistos como pertencentes à ordem da natureza enquanto os cristãos representam a cultura.

À medida que os pensadores europeus se vão desencantando com sua própria sociedade, o suposto “estado de natureza" passa a ser valorizado. É esta a posição de Montaigne que, ouvindo o relato de um daqueles marinheiros que se fixara "por 10 ou 12 anos no lugar onde Villegagnon se assentou, e que apelidou de França Antártica", chega à conclusão de que “nada há que seja bárbaro ou selvagem nessa nação, a não ser que cada qual chama de bárbaroaquilo que não faz parte dos seus costumes" (1950:243). Desgostoso com as atrocidades perpetradas por católicos e protestantes no decorrer das Guerras de Religião, Montaigne sonha com homens vivendo em estado de inocência original. Como bem observou Todorov (1989), na verdade Montaigne está menos interessado nas reais condições de vida dos tupinambás do que na denúncia das inadequações de sua própria sociedade. O outro é, mais uma vez, o espelho sonhado. Para condenar a absurda crueldade da sociedade francesa, é preciso contrastá-Ia com o comportamento dos índios. Mas a oposição inicial é mantida. O europeu permanece o ser da cultura, ainda que pervertido, e o indígena não foge à condição de ser da natureza, ainda que valorizado. "O outro jamais é percebido nem conhecido. O que Montaigne elogia, não são os ‘canibais’, mas sim os seus próprios valores" (Todorov, 1989:60).

Lussagnet (1953:VIl) adverte que tanto o informante de Montaigne quanto os colaboradores de Thevet eram pessoas "simples e grosseiras" (Montaigne) que, vivendo muito tempo entre os índios, haviam aderido em grande parte aos seus costumes. Todos tinham constituído família com mulheres indígenas e suspeita-se que alguns deles tivessem "virado nativos" a ponto de praticarem também o canibalismo. Não lhes convinha passar, para os viajantes, imagens por demais negativas que pudessem reverter na condenação de suas próprias vidas. O selvagem tinha de ser bom para que os marinheiros não fossem maus. Não será esta a última vez que informantes determinarão o rumo dos estudos antropológicos.

Thevet e Léry pretendem fornecer aos leitores um quadro exaustivo da vida dos índios e dos seus costumes. Os tupinambás não são apenas diferentes dos europeus. Eles tampouco se enquadram nas expectativas medievais que representavam a humanidade dos confins do mundo como monstruosa ou próxima da animalidade. Não são cobertos de pelos, não têm pés maiores do que o corpo nem feições de lobo. "Saem do ventre de sua mãe tão belos e bonitos quanto as crianças de nossa Europa" (Thevet. 1983:55). "Não são maiores, mais grossos ou mais pequenos de estrutura do que somos na Europa; não têm corpo monstruoso nem desmedido em comparação conosco; são porém mais fortes, mais robustos, mais fornidos, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, e quase não tem coxos, tortos, aleijados nem doentios" (Léry, 1889:180). A comparação faz-se a favor do índio que, no que diz respeito ao corpo, é melhor em tudo.

No levantamento das diferenças, o índio é descrito essencialmente em sua dimensão corporal, pois o que distingue o tupinambá, o que faz dele, inapelavelmente, o ser da natureza, é que este corpo se revela em toda a evidência de sua nudez.

"Isso não é tolerável", Thevet fulmina (1983:52). "Não lhes basta ficarem nus e pintarem o corpo de várias cores" (p.66), ainda arrancam os pelos e furam o beiço. Colam penas no corpo, fazem enfeites de orelha com papo de tucano, e o efeito, diz Léry, é "deslumbrante" (1889:185). Enquanto Thevet vitupera a falta de vergonha dos índios, Léry, não menos puritano, visto que calvinista, empenha-se constantemente em separar a nudez - estado por assim dizer objetivo dos índios - e suas possíveis implicações eróticas. Faz questão de responder "aos que pensam que a assistência entre os selvagens nus e principalmente entre as mulheres incita a lascívia e impudicícia (...) que essa nudez grosseira da mulher é muito menos atraente do que se pensa, como então geralmente observamos" (p.193). Embora as mulheres selvagens, "em relação às feições, nada devam às outras damas em formosura" (op. cit), são menos perigosas, em sua nudez usual" do que as francesas.

Apesar disso, reina a repressão sexual na França Antártica. Villegagnon, cioso de manter a separação entre selvagem e civilizado, "proibiu, sob pena de morte, que ninguém, que tivesse o título de cristão, habitasse com as mulheres dos selvagens" (Léry, 1889:163). Como todo tabu, essa interdição, ao mesmo tempo em que discrimina, aponta para a possível junção, pois não é necessário proibir aquilo que não se deseja. Põe também em evidência a natureza ideológica da distinção: é o título de cristão que produz o corte. Em nível concreto, a nudez é o marcador dessa diferença. Remete ao próprio instante do pecado original e à revelação da consciência da culpa. Por mais que se insista, os índios recusam as roupas. Usam-nas como enfeites quaisquer em suas farras: é claro que nada significam para eles (Thevet, 1983:53). As escravas indígenas do forte Coligny, vestidas à força, castigadas com chicote, tiram a roupa assim mesmo, logo que podem (Léry, 1889:190). O apego à nudez como que assinala a impossibilidade de situar o índio nas categorias disponíveis de humanidade. É, por assim dizer, um puro significante. Mostra um corpo em nada diferente do dos europeus. Mas o fato de exibi-lo, em sua simplicidade, evidencia o paradoxo: os índios são homens como nós, mas mostram isso de um modo que revela que não são como nós. O único meio que se oferece aos europeus para superar essa contradição, é transformá-la em objeto de estudo. Nasce a antropologia.

O referencial interpretativo, nesse início da Idade Moderna, ainda é fornecido pela religião. A descrição dos costumes indígenas será articulada por categorias oriundas da teologia. “Este trabalho", escreve De Certeau (1982:222), "é, de fato, uma hermenêutica do outro. Transporta para o novo mundo o aparelho exegético cristão que, nascido de uma relação necessária com a alteridade judaica, foi aplicado, alternadamente, à tradição bíblica, antiguidade grega ou latina, ou a muitas outras totalidades ainda estrangeiras (...). A etnologia irá tornar-se uma forma de exegese que não deixou de fornecer ao Ocidente moderno com o que articular sua identidade numa relação com o passado ou o futuro, com o estranho ou com a natureza".

Situar os indígenas em relação ao plano do Gênesis, constitui um desafio. Thevet afirma que eles não têm religião, mas têm crenças. Acreditam na imortalidade da alma, reverenciam um deus chamado Tupã e são perseguidos por uma espécie de diabo. Na multiplicidade de ritos e de mitos, Thevet e seus informantes selecionam os elementos que poderão servir de ganchos para alguma catequese, “tão espiritual é aquela pobre gente" (1983:78). Léry, por sua vez, julga que "na terra não existe nação alguma, que mais afastada vive de qualquer idéia religiosa" (1889:274), mas assinala a crença na alma imortal e relata com detalhes os procedimentos mágicos dos pajés. Aproveita para jogar algumas farpas em direção dos papistas que, nesse particular, não lhe parecem muito diferentes dos selvagens, inaugurando assim uma tradição que florescerá entre os viajantes ingleses dos séculos XVIII e XIX.

Mas o que realmente preocupa Léry é inserir os índios na ordem bíblica do mundo. "Parece que a opinião mais provável acerca de sua origem é que descendem de Cam, e eis a meu ver a conjetura mais verossímil que podemos formar" (p. 291). Os indígenas americanos estão colocados na mesma categoria que os negros africanos. O terceiro mundo já se está esboçando.

Se os amaldiçoados netos de Noé estão fora da cristandade, a culpa é deles. Analisando os mitos indígenas referentes a antigos profetas, Léry passa em revista diversas hipóteses, até concluir que os índios já tiveram a oportunidade de serem evangelizados pelo apóstolo dos gentios em pessoa. "Considero muito melhor fundamentada a passagem de São Paulo, constante do Salmo 19, a saber: 'A sua voz percorreu toda a terra e suas palavras chegaram às extremidades do mundo' (...) e pergunto que incongruência haveria em crer que um ou muitos tenham estado na terra desses bárbaros?" (p. 287).

A exegese cristã do mesmo modo que permite legitimar a pregação de São Paulo através do Antigo Testamento, oferece subsídios para que os mitos dos tupinambás sejam interpretados como sobrevivências degredadas da mensagem cristã. Observa-se que, nesse processo, os índios deixam de ser chamados de selvagens para serem classificados como bárbaros. A partir do momento em que é enquadrado no referencial cristão, o Bom Selvagem desaparece. "Passa a ser reconhecido como um ser degredado, corrompido e decaído, que precisa do Ocidente para a sua salvação" (Hurbon, 1988:33). A inversão no espelho imaginário da França Antártica dá lugar à existência da conversão.

Entre os colonizadores portugueses, Holanda (1985:104-25) desmonta mecanismo semelhante. Os índios teriam sido evangelizados por São Tomé, vindo da índia, mas esqueceram os seus ensinamentos. Tomaram-se apóstatas. No horizonte do Novo Mundo, profilam-se os tribunais da Santa Inquisição. Impossibilitado de reconhecer a realidade do outro em sua singularidade, o Ocidente aniquila-a.

Mas o mito do Bom Selvagem conserva a sua utilidade. Na linha inaugurada por Montaigne, os pensadores europeus necessitam legitimar crítica de sua própria sociedade pela comparação com as supostas virtudes das sociedades selvagens, e sabe-se o quanto o Iluminismo contribuiu para a manutenção do mito e até mesmo a sua expansão. O enfoque teológico será substituído pelo filosófico e, por fim, a Societé dês Observateurs de I 'Homme, fundada em 1799, assumirá de vez a perspectiva do cientificismo.

Por religiosos, Thevet e Léry reduzem a estranheza à herança da apostasia ou da maldição. Por modernos, contudo, mantêm o interesse pelas singularidades dessa humanidade desconhecida. Sob esse aspecto, ambas as narrativas expressam como que uma constante negociação entre a exigência teológica da condenação e o deslumbramento da descoberta. Uma das ilustrações mais curiosas dessa ambivalência é fornecida pelo tratamento dado ao problema do canibalismo.

Aceita por muito tempo como realidade factual, a antropofagia foi recentemente objeto de acirrado debate. Vários autores mostraram que, na maioria das vezes, os relatos referentes à prática do canibalismo fundamentavam-se em depoimentos de informantes que descreviam o que tinham ouvido contar a respeito dos costumes repugnantes de sociedades inimigas ou afastadas. Tal como a feitiçaria, o canibalismo hoje tomou feições de categoria de acusação, e, sem chegar ao extremo de negar terminantemente a sua ocorrência pode se supor que foi muito menos praticado do que se afirmava antigamente.

No caso dos tupinambás, não há porque duvidar dos relatos de Thevet e Léry. Se os informantes do primeiro não puderam silenciar a respeito, é porque, provavelmente, o fato era por demais reconhecido por todos. Nem Thevet nem Léry, contudo, parecem ter presenciado essa situação, ao contrário de Hans Staden (1974), que praticamente só fala nisso. Com os nossos viajantes, o tema recebe um tratamento assaz peculiar. Thevet, sobretudo, oferece·nos interessante demonstração de rearrumação dos dados: é verdade que os tupinambás costumam comer os inimigos. Mas será que vale a pena chamá-los de canibais por esse simples motivo?

Canibais, ensina doutamente Thevet, são aqueles que "só vivem de carne humana" (1983:134). É o caso dos Goitacazes "comedores de cante humana como cães e lobos, e possuidores de linguagem não entendida pelos vizinhos" (p.146). A crueldade acompanha-se de incompreensibilidade. Na verdade, Thevet adverte que o problema essencial está na significação. Língua ou costumes, tudo é código.

Todos os grupos indígenas que moram do cabo Santo Agostinho para cima fazem parte da mesma categoria subumana. "Esta canalha come regularmente carne humana, como nós comemos carneiro, e disso eles tiram o maior prazer. E vocês podem ter certeza que é muito difícil arrancar-lhes um homem das mãos, pela vontade que eles têm de comê-lo, como se fossem leões vorazes" (p.156). São tão ferozes que nenhuma nação deles consegue se aproximar. No entanto, detalhe que lá tem a sua importância, espanhóis e portugueses os costumam frequentar. "Só Deus sabe qual o tratamento que eles recebem, pois eles jantam juntos", acrescenta Thevet, com boa dose de perversidade.

"Qui se ressemble, s'assemble” (Pássaros com as mesmas penas, voam juntos), diz um provérbio francês presente nas estrelinhas da insinuação de Thevet. Para frequentarem tão de perto os canibais, e até compartilhar as suas refeições, espanhóis e portugueses boa gente não são. É claro que os nossos tupinambás, com quem convivem tão bem os franceses - e particularmente os normandos - "estão longe da ferocidade daquela canalha". Logo, canibais são os outros.

O cosmógrafo do rei desenha uma geografia própria. Para Thevet, a América compõe-se basicamente de três regiões: o Peru, o País dos Canibais - que começa pelos lados do rio Paraíba e se estende ao norte, até incluir o Caribe - e, é óbvio, a França-Antártica. À medida que o conhecimento faz-se mais objetivo, recuam as fronteiras do imaginário. O país dos canibais é cheio de ouro e pedras preciosas. Lugar de todas as fantasias, nele se misturam riqueza e terror.

Ainda que os tupinambás sejam "maravilhosamente vingativos" e cruéis com os inimigos, demonstram possuir qualidades morais. São leais com os amigos, hospitaleiros, prezam as pessoas generosas e são até capazes de "caridade natural" (Léry, 1889:310). No cômputo geral, apesar de todas as reduções, ganha o Bom Selvagem.

Texto de Monique Augras

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