Memórias deixadas por
naturalistas viajantes já assinalavam a presença de vestígios pré-históricos
nas regiões do interior de Minas Gerais, mas foi somente em 1834, quando Peter
Willelm Lund iniciou trabalhos sistemáticos no Vale do Rio da Velhas, que a
região tornou-se notoriamente de interesse arqueológico.
Este dinamarquês
fixou residência em Lagoa Santa, onde fez pesquisas paleontológicas.
Registrando também a presença de sítios arqueológicos, chegou a retirar ossos
humanos dos depósitos que julgara inicialmente apenas fossilíferos, e registrou
a presença de sítios arqueológicos, sempre que pode reconhecê-los. Entre tais
registros estão inclusive sinalações rupestres como as da Lapa das Poções, em
Cerca Grande, e da Pedra dos Índios.
A primeira escavação
que propiciou o achado de ossos humanos foi realizada em 1840, durante os
trabalhos de pesquisa paleontológica feitos na lagoa existente no fundo da gruta
do Sumidouro. Lá foram encontrados ossos humanos secundariamente depositados,
misturados a fósseis de animais pleistocênicos extintos.
O achado de restos de
mais de 30 indivíduos, e sua associação com a megafauna, estendeu a polêmica
existente sobre o porque da extinção de algumas espécies e não de outras,
passando a incluir também o homem. Lund refere achar pouco provável que a
humanidade não fosse tão antiga no Brasil quanto os animais extintos, e
menciona curiosamente em suas Memórias que questão semelhante ainda era motivo
de investigação também na Europa.
Falando de seus
achados, o naturalista é o primeiro a reconhecer como, ao cabo de muito
trabalho, acabara por mudar de opinião, passando a aceitar a contemporaneidade
do homem com a fauna extinta, baseada na cuidadosa análise do processo pelo
qual se dera a deposição dos materiais, a qual excluía a partir de evidências
empíricas a hipótese de mistura posterior das ossadas.
(....)
quando inesperadamente, depois de sete anos de baldadas pesquisas, tive a
fortuna de encontrar os primeiros restos de indivíduos da espécie humana sob circunstâncias
que admitiam pelo menos a possibilidade de uma solução contrária da questão
Achei esses
restos humanos numa caverna que continha, misturados com eles, ossos de vários
animais de espécies decididamente extintas (Platyonyx Buklandii, Chlamidotherium
Humboldtii, C. majus, Dasypus sulcatus, Hydrochoerus sulcidens etc.)
circunstância que devia chamar toda atenção para as interessantes relíquias.
Apresentavam
eles, além disso, todos os caracteres físicos de ossos realmente fósseis. Estavam
em parte petrificados em parte impregnados de partículas férreas, o que dava a
alguns deles um brilho metálico semelhante ao bronze, assim como um peso
extraordinário.
Tendo sido
antecedidos de apenas alguns anos pelos dois primeiros achados de crânios
Neandertal na Europa (Lazareto, em Nice, na França, em 1826 e Engis, na
Bélgica, em 1829), os achados de Lund foram, como ele mesmo acentuou,
precursores, dando-se num momento em que ainda não se havia acumulado
conhecimentos paleontológicos sobre o surgimento do homem, e a própria
discussão do paradigma evolucionista estava por firmar-se.
Com sua publicação sucedida
por dois outros achados – o de Forbe Quarry, em Gibraltar, em 1848, e o de La
Chaise, também na França, em 1850 – os achados do Sumidouro se deram,
obviamente, no contexto inicial de descobrimento de fósseis humanos,
alimentando a efervescência das controvérsias entre as teorias evolutivas e os
dogmas religiosos.
A aceitação por Lund,
da antiguidade do chamado “Homem de Lagoa Santa” e sua convivência com animais
extintos, foi informada em correspondência pessoal ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro tal como refere Mendonça de Souza:
À vista
dos fatos que acabo de referir, não pode, pois, restar dúvida alguma de quea
existência do homem neste continente data de tempos anteriores à época em que acabaram
de existir as últimas raças de animais gigantescos (....)
Tais achados
apresentam como pano de fundo a discussão sobre o povoamento do continente
Americano. Num cenário em que ainda se discutia se os povos indígenas
americanos realmente teriam origem no Velho Mundo ou seriam autóctones, e que
os achados na Europa e na Ásia despontavam timidamente, discutia-se a aparente
contradição entre o que fora encontrado no Brasil e as teorias vigentes, como
no trecho que se segue:
Vemos,
pois, que a América já era habitada em tempo em que os primeiros raios da
história não tinham ainda apontado no horizonte do Velho Mundo, e que os povos
daquela época, que aqui habitavam, eram da mesma raça que os habitantes desta
região nos tempos do descobrimento. Estes dois resultados, na verdade, pouco
harmonizavam com as idéias geralmente aceitas sobre a origem dos habitantes
desta parte do mundo (...)
(...)
se considerarmos que a natureza procede do imperfeito para o perfeito; que esta
parte do mundo é, do ponto de vista geológico, considerada antiga; enfim, que o
exame da caverna em questão nos leva a admitir a habitação desta parte do mundo
desde os tempos mais remotos, devemos convir, segundo creio, que temos boas
razões para emitir, ao lado de conjecturas ainda menos firmes, uma opinião que
causaria a modificação total da relação cronológica que se estabeleceu até hoje
entre as duas raças de que falamos.
O trabalho feito em
Lagoa Santa na primeira metade do século XIX teve destaque mundial, e o
pensamento do dinamarquês, suas idéias sobre a extinção da megafauna, e sobre a
formação das jazidas paleontológicas e arqueológicas, influenciou
internacionalmente. Com o envio da coleção pré-histórica de Lagoa Santa para a
Dinamarca, no final do século XIX, o material passa a ser acessível a
pesquisadores internacionais, que passarão a descrevê-la e a publicar.
Entretanto, após
Lund, o primeiro arqueólogo a testar em campo a proposição da contemporaneidade
do homem com a fauna extinta, foi Padberg-Drenkpohl, que somente cerca de um
século depois viajou em missões de pesquisas do Museu Nacional (1926 e 1934),
para trabalhar na região de Cerca Grande. Deste trabalho, infelizmente, ficaram
apenas relatórios sucintos.
Tendo realizado uma
proporção pequena de trabalhos de campo, mas concentrando-se nos achados
arqueológicos, este autor partiu com o objetivo explícito de contestar as
conclusões de seu antecessor, razão pela qual foi veementemente combatido por
outro grupo de aficcionados, que começavam a reunir-se na mesma época, o grupo
da Academia de Ciências de Minas Gerais. Em relatório da viagem, diz Padberg:
Achando
nessa lapa, que batizei de Lapa Mortuária, relíquias de uns 80 indivíduos humanos
e muitos restos, especialmente dentes de animais extintos, mormente grandes,
como de mastodonte, cavalos indígenas, Macharuchenia etc., a escavação foi
feita sistematicamente, com auxílio de mais de meia dúzia de operários, durante
todo o mês de outubro, acompanhando tudo com apontamentos, desenhos,
photographias etc. Verificou-se que os restos humanos (entre os quais um ou
outro esqueleto quase completo: os primeiros conhecidos da ‘raça de Lagoa Santa’!
– meia dúzia de crânios bem mensuráveis, mais de 50 mandíbulas, inúmeros dentes
e especialmente muitos ‘rochedos’, i.e., as partes petrosas do osso temporal,
muitas vezes a única testemunha dum indivíduo, estavam sem ordem, às vezes
debaixo de grandes lajes ou blocos calcáreos (...).
Missão subseqüente
foi empreendida por Bastos de Ávila, Rui de Lima e Silva e Ney Vidal, também
enviados pelo Museu Nacional, em 1937. Estes, com base no achado de um sítio
que continha sepultamentos em situação primária, sob lajes de pedra,
limitariam-se a dizer pouco dos mesmos, não chegando a contribuir para a
discussão.
Outras missões de
pesquisa se seguiram, conduzidas pela Academia de Ciências de Minas Gerais,
onde Harold Walter, Arnaldo Cathoud e Anibal Matos iniciariam seus trabalhos em 1933,
escavando numerosas grutas e abrigos e publicando até a década de 70. A coleção
formada na época, hoje sob guarda da Universidade Federal de Minas Gerais,
ainda é estudada, apesar dos problemas representados pela falta de informações
de campo que satisfaçam as exigências metodológicas atuais.
Depois de Lund, este
foi o grupo que realizou a mais intensiva e extensiva escavação das grutas de
Lagoa Santa, reunindo um vasto acervo. Sua busca exaustiva, entretanto, não
tinha o cuidado de preservar testemunhos dos depósitos arqueológicos
pesquisados, o que impossibilitou a volta aos sítios com novas abordagens
técnicas, para verificar suas afirmativas.
Segundo Prous, os
trabalhos de Walter, principalmente o achado do chamado “Homem de Confins”,
representaram um esforço para divulgar internacionalmente os achados de Lagoa
Santa, levantando nova polêmica e motivando a vinda da missão arqueológica
americana no Brasil. Convencido da contemporaneidade entre os grupos primevos
de Lagoa Santa e a megafauna, afirmaria Walter:
Durante
15 anos de exploração e escavação dos depósitos em lapas e abrigos o autor tem
conseguido uma coleção relativamente boa da fauna pleistocênica, algum material
indígena e em alguns lugares separados revelou dois esqueletos humanos junto
com animais extintos.
Na Lapa
de Confins foram encontrados em 1935 um crânio e outros ossos humanos numa
profundidade de dois metros abaixo de uma camada de estalagmite. O depósito
desta caverna produziu, durante três anos de escavações uma variedade de
animais extintos como urso, preguiça terrestre, lhama, mastodonte etc. Talvez o
Homem de Confins tenha chegado nessa localidade no fim do pleistoceno, quando muitos
mamíferos que hoje estão extintos ainda existiam na região.
Com o intuito de
demonstrar cientificamente suas interpretações, Walter investiu em verificações
científicas objetivas, tais como análises químicas, na tentativa de provar a
antiguidade e a condição de fossilização dos ossos, humanos e animais. Através
das análises químicas comparativas entre ossos animais e do Homem de Confins,
logrou por algum tempo a aceitação de sua tese de contemporaneidade entre os
homens e a fauna pleistocênica extinta.
Tendo a preocupação
em editar em livros bilíngües – inglês/português – suas idéias, Walter voltou a
colocar internacionalmente a questão de Lagoa Santa.
Uma missão americana
viria ao Brasil na década de 1950, liderada por Wesley Hurt, que encontrou e descreveu
um conjunto funerário numeroso com datação que chegou aos 10 mil anos.
Seguiu-se outra
grande missão estrangeira em Lagoa Santa, a missão franco-brasileira, inicia-se
em 1971 sob a liderança de Annette Laming-Emperaire. Dela participam nomes de
arqueólogos como Águeda Vilhena, hoje Vialou, Maria Beltrão, André Prous e
Niède Guidon, de paleontólogos como Fausto Cunha, além de vários outros
pesquisadores nacionais e estrangeiros. Após numerosas sondagens, uma grande
escavação é finalmente iniciada na Lapa Vermelha IV. Se, por um lado, não são
encontrados cemitérios ou estruturas de habitação que proporcionassem
reconstruções seguras, essa missão traz à luz um conhecimento muito detalhado
da gênese de um sítio de Lagoa Santa e, tal como já visto anteriormente, dos
riscos e dificuldades de sua interpretação.
Um crânio
admiravelmente bem conservado, semelhante a tantos outros retirados dos sítios
de Lagoa Santa, acabou por tornar-se o produto mais destacado deste trabalho.
Sua datação, que antes era relativa e conflituosa, só recentemente pôde ser
feita a partir do exame de um pequeno fragmento ósseo. Esse crânio, que passou
a ser conhecido na mídia como Luzia, é ainda um dos mais bem conservados
exemplares de Lagoa Santa, mostrando sua morfologia craniana mais
característica.
Embora o achado da
Lapa Vermelha IV tenha sido considerado para muitos como não conclusivo da
contemporaneidade do homem com a fauna extinta, esta interpretação não foi
consensual, e outra das velhas polêmicas se reacendeu.
O tema da antiguidade
e contemporaneidade do homem com a fauna extinta foi tratado por Prous ao
descrever ossos, modificados de maneira que sugeria ação humana, encontrados em
Lagoa Santa e também de Brejões, na Bahia. Embora lembrando que a megafauna
parece ter persistido até o Holoceno no Brasil, este autor argumenta também com
o achado de materiais líticos em níveis pleistocênicos, dizendo:
Todos
estes vestígios não podem, em hipótese alguma, ser atribuídos a causas naturais,
ao contrário do que acontece com as marcas de dentes de roedores, que formam
numerosas estrias paralelas ao final da crista. Estas últimas foram feitas pelos
animais depois do abandono do osso pelo Homem, mas antes dele ter sido levado
pelas águas.
Portanto
não temos mais dúvidas sobre a contemporaneidade do Homem com a megafauna no
Brasil, sem que os contactos tenham de ser atribuídos, ipso facto, ao período pleistocênico. O aproveitamento alimentar
nos parece inquestionável, e a utilização do osso como instrumento, bastante
provável (Haplomastodon de Borges).
(...)
Concluindo
esta apresentação, lembraremos que há tempo que se podia esperar indícios
concretos de relacionamento entre paleoíndio e megafauna: mesmo se o significado
das datações mais antigas da Lapa Vermelha (22.410 e 25.000 AP) é discutível, como
explicamos no ano passado em Goiânia, a existência de instrumentos retocados há
mais de 15.400 anos neste sítio, de várias datações também antigas tanto em
Minas Gerais quanto em outros estados do Brasil, fazem com que tenhamos certeza
de que durante os milênios de convívio, pelo menos a caça devia ter existido.
Portanto os ossos trabalhados que apresentamos não nos parece ser revolucionários;
mas, pelo menos trazem uma prova concreta.
Nas últimas décadas,
pesquisas sistemáticas da equipe do Museu de História Natural da Universidade
Federal de Minas Gerais, lideradas por André Prous, seguiram trabalhando
metodicamente nos sítios. Hoje o trabalho está concentrado na região a nordeste
do Planalto de Lagoa Santa, local em que, ao contrário do que ocorre com os
sítios de Pedro Leopoldo, Confins e outros a sudoeste do Planalto, ainda há
sítios preservados permitindo melhores pesquisas.
Recentemente, foi
possível a comprovação da contemporaneidade do Homem de Lagoa Santa e a fauna
extinta, por Walter Neves (veja artigo de Neves, neste volume), através da
datação direta de um osso de Catonyx cuvieri proveniente da Gruta
Cuvieri, cuja idade medida a partir do colágeno foi de 9.990 +- 40AP (Beta
165398), aproximando definitivamente os achados de ossos humanos e de animais
extintos na região, o que responde a uma velha dúvida da arqueologia e da
paleontologia brasileira.
Texto de Sheila M. F. Mendonça de Souza, Claudia
Rodrigues-Carvalho,
Hilton P. Silva ,Martha Locks
Hilton P. Silva ,Martha Locks
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