domingo, 29 de setembro de 2013

JAMINAWA DO CAETÉ - depoimento...


Sobre o nosso povo, posso afirmar que a gente não tinha esse nome JAMINAWA nem conhecia um povo que tinha esse nome. Com a chegada da Funai, em 1975, havia um desconhecimento da realidade dos índios que viviam aqui no estado. Como o órgão indigenista não sabia que povo nós pertencia, deu esse nome de Jaminawa. Antes chamavam a gente de Marinawa, Sharanawa e outros tipos de nomes. No tempo dos seringais, os “cariús”, os brancos, chamavam a gente de “caboclos”, como faziam com qualquer outro povo indígena no Acre.

Na realidade, existem quatro grupos originais, familhões, clãs, que na nossa língua chamamos de SHUKU ITSAWU: Não tinha um nome geral que reunia todos eles. Nossos shuku itsawu são originários de quatro troncos: Sapanawa (“gente da arara”), mais conhecido hoje como Xixinawa (“gente do quati”), Yawanawa (“gente da queixada”), que não tem nada a ver com o povo Yawanawá do rio Gregório, Shawãnawa (“gente da arara vermelha”), que também pegou o apelido de Mapudawa (“gente da cinza”), porque eles não gostavam de tomar banho, e Kaxinawa (“gente do mocego”), que também não tem nada a ver com o povo Kaxinawá, ou Huni Kuin, lá do Jordão. Esses Huni Kuin a gente chamava pelo apelido de Sainawa, porque é um povo da barriga cheia, que gosta de comer com muita fartura. Da mesma forma que pegou esse nome Jaminawa pros nossos parentes, pegou Kaxinawá pro povo Huni Kuin.

Até hoje o nosso povo tem essa tradição de viver em pequenos grupos, um bocado aqui e outro acolá. E ainda gostava de colocar apelido nos outros parentes e até entre nós mesmos. É a mesma coisa que a turma dali do Antonio Kuruma, na aldeia Extrema, se encontrasse com a turma da aldeia Buenos Aires comendo um bocado de manitê e, como brincadeira, dissesse: “Esse povo aí não é Sapanawa nada, é Neanawa, gente do jacamim, porque jacamim é que gosta de comer manitê”. E assim iam colocando apelido entre nossos próprios parentes e também nos outros povos indígenas.

Nosso shuku itsawu é transmitido por linha paterna, porque o filho é o herdeiro do pai. Se eu sou Xixinawa, casado com uma mulher Kaxinawa, meus filhos são Xixinawa também, porque eles são considerados do mesmo sangue meu. Do ponto de vista da nossa cultura, a mãe é uma pessoa importante, que a gente tem todo respeito com ela, mas quem colocou o filho lá dentro dela foi o homem.

Os Sapanawa sempre foram o grupo dominante. Por qual razão? Porque o clã Sapanawa, ou Sapadawa, tanto faz, sempre teve maior número de pessoas, de pajés, de guerreiros. Sempre dominou esses outros grupos, ou clãs, ou como eu poderia chamar isso? Nós chamamos de shuku itsawu.

Na nossa cultura, nossos nomes pessoais são dados pelo avô paterno, ou pelos irmãos ou primos-irmãos do nosso avô paterno. Por exemplo, o meu nome é Tunumã, que significa mandim grande. Eu não sou o primeiro, isso já vem de gerações. Quem me deu esse nome foi o irmão do meu avô paterno, que também era Tunumã. Então, o meu neto, filho do meu filho mais velho, é Tunumã também. E o primeiro neto do meu neto vai também pegar esse nome. E a primeira filha do meu filho, minha neta, portanto, recebe o nome da minha irmã. Se eu não tiver uma irmã, ela pode pegar o nome de uma minha prima, que também pertence a mesma turma da minha irmã. Nosso nome pessoal é uma coisa que nunca se acaba.

Dependendo do shuku itsawu, os parentes falam com um sotaque um pouquinho diferente. Muitas vezes até nome de peixe e de algum animal é diferente. Comparação, o piranambú, que é um peixe, a turma dos Sapadawa chama kabi, já a turma dos Shawãdawa fala kukati. Muitas vezes, os cariús (brancos) não percebem isso. Só conversando, a gente percebe. Quando chego numa aldeia, percebo logo se eles são do meu shuku itsawu só na forma deles se expressar, de falar o nome dos animais, na maneira como tratam suas noras e suas crianças. Ao chegar numa comunidade, sei se eles fazem parte da minha linha de sangue, ou não. Agora é complicado, porque algumas pessoas, muitas vezes, não conseguem falar a originalidade nossa, porque às vezes fazem parte de outro shuku itsawu, que é menor e ficam com vergonha, ou então, falam de uma maneira que acham que é da tradição deles. Isso atrapalha um pouco. Nós temos essa dificuldade até entre os professores bilíngües Jaminawa pra fazer um livro na nossa língua. Por isso que a nossa organização, que é a OCAEJ, tá trabalhando num dicionário da nossa língua. Cariú não percebe essas diferenças.

Olha, se um homem e uma mulher forem do mesmo sangue de pai e mãe, não podem se casar. Pode até haver um casamento entre um homem Sapanawa com uma mulher Sapanawa, mas às vezes a mãe ou o pai já é mesclado, o pai de um é Shawãnawa, ou a mãe já é Yawanawa. Então, existe muito isso, mas quando é uma coisa de puro para puro eles não podem casar. Isso leva a críticas, fofocas e comentários públicos. Também segundo a nossa tradição, se uma mulher tiver gestante e dez homens transarem com ela, todos eles são considerados pais dessa criança. Por isso que vira uma familiarização grande. Tem que saber qual é o original pra não casar os dois do mesmo original, porque isso leva a maior desmoralização da comunidade. E não é só isso, dá medo das crianças nascerem aleijadas, porque é parente muito próximo.

Com uma filha do irmão do meu pai eu não posso casar e se for uma filha da irmã do meu pai também não. Agora, se for uma filha da prima do meu pai, aí sim, porque já é prima de terceiro grau, aí posso me casar com ela. Ou por outra, com a filha do irmão da minha mãe também não posso. Só posso casar se ela for uma filha da prima da minha mãe. Os primos de primeiro grau, tanto do lado da mãe, como do lado do pai, são parentes muito próximos. Aí não tem como. Já no caso do povo Yawanawá do rio Gregório, eu vi que você pode se casar com a filha do irmão da sua mãe, ou com a filha da irmã do pai. Isso aí pra nós é chocante. Mas isso é a cultura deles e nós temos que respeitar. Sabemos que cada povo tem o seu jeito de ser e suas diferenças. Índio não é tudo igual, não!

Os Jaminawa foram pro Caeté depois de uma briga lá na aldeia São Lourenço, na Cabeceira do Acre. Na virada do ano de 1995 pra 96, um parente, o Adão, atirou em outro, o Zé Paulo. Então, o que aconteceu? Todo familhão do baleado se sentiu ofendido, em especial o Antonio Kuruma, que é uma liderança e cunhado do Zé Paulo. Já o tio do Zé Paulo, que é pajé no Caeté, também se sentiu ofendido, porque fizeram isso com um sobrinho dele. Mexeu com um, tá mexendo com muita gente.

Para evitar mais confusão, ou mortes, os parentes do baleado vieram tudo pra Rio Branco. Chegando por aqui, não tiveram mais condições de retornar, porque ficou um clima muito pesado. A outra parte, que baleou, que era parente do tuxaua de lá, o Zé Antonio, ficou escondida na mata, tudo armado. Assim é a tradição Jaminawa: não se briga de peito aberto, não. Faz uma coisa e se esconde todo mundo na mata, esperando se os parentes do ofendido vêm atrás de fazer vingança. Pra não ficar aquela cisma, todos os parentes do baleado se obrigaram a vir pra Rio Branco. Ficaram sem condições de voltar pro São Lourenço, mas também não podiam se mudar pra aldeia Betel, na TI Mamoadate, porque as pessoas de lá são parentes próximos daqueles que ficaram lá na Cabeceira do Acre, Eles ficaram sem saída. Que direção tomar? Mudar pro Guajará também não tinha boca, porque poderia aumentar esse conflito. Aí ficaram rolando pela cidade, mendigando, sem ter aonde ir. Ficaram uns tempos debaixo das pontes, perambulando pelas ruas e praças da capital. Quando as autoridades começaram a apertar os parentes, eles procuraram logo a Funai pra achar uma solução.

Aí a Funai, o governo do estado e a Procuradoria da República ficaram preocupados: “O que tá acontecendo com esse povo Jaminawa? Tantas terras indígenas no Acre e os índios pedindo esmolas nas ruas e praças da capital, assim não dá, é demais!”. Muitas vezes, as pessoas não entendem o que tá acontecendo com nosso povo e ficam falando mal dos índios em geral. Chegaram até a dizer que o Mamoadate é a maior terra indígena do estado e lá também é terra dos Jaminawa. “Por que, então, esses índios tão pedindo esmolas em Rio Branco?” Mas não sabiam que aquilo era decorrência de lutas internas entre os grupos Jaminawa.

Pressionada pelo Ministério Público Federal, a Funai começou a procurar outros locais pra colocar essa população. Naquela época, o administrador da Funai de Rio Branco era o Marcondes. Ele dizia assim: “Vocês querem passagem pra retornar pra Cabeceira do Acre?” E o pessoal dizia: “Não!” Uns porque tinham medo de morrer, outros de matar. O Antonio Kuruma dizia assim pra ele: “Marcondes, vê se a Funai arranja ao menos uma colônia pra nós saír das ruas”. Ele dizia que o Incra não tinha terra pra isso, pra índio já tinha terra demais, pra índio já tinha a Funai e “pra quê essa questão toda?”. Botava um monte de dificuldade.

Primeiro, o administrador da Funai disse: “Vamos ver se a gente coloca esses Jaminawa nos fundos da área dos Jamamadi do Capana”. Nós fomos na UNI, na época eu trabalhava lá, então decidimos levar as lideranças Jaminawa até o Capana pra ver se eles se agradavam. Quando chegaram lá, os líderes Jaminawa falaram: “Puxa vida, vamos ficar aqui nessa lonjura, de que jeito vamos viver aqui? Aqui é complicado”. Também as freiras de Boca do Acre, ligadas ao CIMI, eram contra os Jaminawa viverem na terra dos Jamamadi. Essas freiras começaram a dizer que isso ia gerar conflitos com os Jamamadi, botando mil e uma dificuldade. Aí os parentes disseram: “Puxa, a gente já saiu de um fuzueiro lá na Cabeceira do Acre e vir pra outro?” Elas diziam que os Jaminawa tavam invadindo a terra dos Jamamadi, chamando o pessoal de invasor e tudo o mais. Aí não teve boca, voltaram pra Rio Branco de novo e eu fui embora pra Tarauacá.

O administrador da Funai, então, pensou: “Se eles são Jaminawa, quem sabe eles vão dar certo com os Jaminawa lá do Igarapé Preto, afluente do Juruá? Até porque os troncos dos Jaminawa vieram daquela região”. Levaram as lideranças pra lá. O que aconteceu? Ao chegar lá, até acharam que dava pra eles viverem ali. Só que o Antônio Kuruma achou muito longe e disse: “Puxa, nós fomos exilados! Vai ser muito difícil aqui pra nós! Por mais que os parentes recebam a gente, não dá pra gente ficar aqui”. Pra branco é tudo pertinho, é bem ali e acolá, mas eles sentiram que de Rio Branco pra Cruzeiro era muito longe e que seria melhor voltar.

Por fim, a Funai botou o sertanista Antonio Macêdo na história. O Marcondes disse: “Macêdo, vai lá em Sena Madureira com essas lideranças Jaminawa pra ver se você consegue resolver esse problema. Vai procurar lá na Prefeitura e só volte aqui depois que encontrar uma solução.”. Aí o Macêdo disse: “Rapaz, é pra já!” Ele foi pra Sena Madureira, conversou e tal. Teve um cara do Ibama que disse assim: “Macêdo, a solução é o Caeté, porque lá tem muito seringal abandonado”. Macedo levou as lideranças pra averiguar o local. E acabou dando certo!

Quando o Macêdo chegou de volta a Sena Madureira, o Ciro Machado, proprietário do seringal Boa Vista no rio Caeté, soube e foi falar com ele: “Rapaz, assim a Funai tá invadindo meu seringal!”. O Macedo, então, prometeu que a Funai, ou o governo do estado, iria comprar o seringal Boa Vista dele. E pediu: “Ciro, faz uma proposta de venda por escrito, dando um prazo de 90 dias, que a Funai, ou o governo do estado, vai comprar teu seringal pra esses índios”. Antes desses 90 dias, mandaram me chamar de novo.

Essa foi a época que o Marcondes saiu da Funai e voltou o Toninho. Ele, então, ordenou: “Chama o Zé Correia, porque senão não vai adiantar nada. Esses índios sozinhos lá no rio Caeté, eles vão cair fora de novo. É preciso que ele ajude a articular isso”. Aí o finado Toninho me mandou uma carta dizendo assim: “Zé Correia, você tá intimado pra vir ajudar o seu povo, que o Macedo levou lá pro Caeté”. Eu disse: “Tudo bem, Toninho!”

O primeiro serviço que fiz, foi conseguir comida nas secretarias do estado pro pessoal se aguentar lá no Caeté, até terem seus roçados. Os primeiros a chegar foram o Antônio Kuruma, o Batista e o Manoel. O resto das famílias veio chegando aos poucos. O que aconteceu? A Funai e as secretarias estaduais deram um jeitinho brasileiro pra segurar esse pessoal lá no Caeté, até eles começarem a produzir macaxeira e outros legumes. Arranjaram até muita comida. Só que era verão, o Caeté tava muito seco e essa comida não tinha condições de chegar até lá. Mesmo assim, os parentes fizeram seus roçados, as casas de moradia, limparam os terreiros, fizeram os caminhos, os piques de caça, passando fome, comendo coco de aricuri, pedindo banana verde e um pé de roçado aos moradores. Comida tinha, mas não tinha condições de chegar lá, porque, no verão, o Caeté fica bem raso e seco. Por lá adoeceu a mulher do Batista de hemorragia, levaram na rede e aí foi um reboliço danado. Queriam voltar tudo de novo, procurar outro lugar. Foi quando eu entrei em ação e comecei a aconselhar o pessoal: “Olha, pessoal, vocês têm que entender a situação por causa disso e daquilo outro”. E o que resultou dessa história toda?
Em 1997, vieram 30 pessoas e agora, em 2006, já são 126 pessoas vivendo em três aldeias no rio Caeté: Canamari, Extrema e Buenos Aires. Tão ali há nove anos.

Desde o início de 2004, a Funai prometeu mandar um GT para fazer a identificação da terra, mas até agora, janeiro de 2006, nada aconteceu. Antes disso, em 2002, o Ibama criou a Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, sem combinar nada com a gente nem com a Funai. Resultado, deixaram apenas uma ilhazinha pra nós morar, que não dá nem pra caçar. E nós somos um povo caçador.

Sabemos também que o PPTAL, que tem dinheiro do governo da Alemanha pra identificar e demarcar terras indígenas na Amazônia, desde o início de 2004, portanto, há dois anos, também prometeu mandar um GT, mas até agora nada! Soubemos que tá tudo parado lá na Funai, porque os dirigentes tão dizendo pela imprensa que tem muita terra pra pouco índio no Brasil e que é preciso as autoridades maiores do país darem um basta nas reivindicações dos índios por mais terras. Depois que soubemos disso, mandamos um documento pro atual presidente da Funai, com cópia pro seu diretor fundiário, mas até agora nada!

Nosso povo vive lá no Caeté e no Guajará em precárias condições de saúde, abandonados, sem terras identificadas e a hepatite B matando um bocado de parente. E a Funai e o PPTAL não fazem nada!

Semana passada fui numa reunião na Secretaria Extrordinária dos Povos Indígenas do Acre e ouvi o secretário Francisco Ashaninka dizer que tem 37 Jaminawa contaminados com o virus da hepatite B e C. Ele reuniu muitas secretarias do estado pra tentar ajudar nossos parentes doentes, que trazem muita gente aqui pra Rio Branco com eles, atrás de tratamento, de interferon. Meu filho mais velho, o Arialdo, morreu contaminado de hepatite B logo depois. O que fazer agora? Estou sofrendo muito com a morte de meu filho. Tô quase chorando só em falar no nome dele. E ele morreu assim tão jovem! Vocês me desculpem, mas é melhor parar por aqui.

Texto de José Correia da Silva Tunumã

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

SHAWANAWA, o Povo Arara


O POVO ARARA é oriundo da família lingüística Pano. Seu território localiza-se no município de Marechal Thaumaturgo, Ac, com uma população de 378 pessoas, numa área delimitada e demarcada de 28.926 ha. Esse povo se autodenomina JAMINAWA ARARA e é conhecido também por Shawanawa, Arara, Xawanaúa, Xawaná-wa, Chauã-nau, Ararapina, Ararawa, Araraná, Ararauá e Tachinauá. Sua organização espacial no interior da terra indígena está distribuída em uma aldeia – Sirqueira – e três comunidades – Bom Futuro, Buritizal e São Sebastião. Estes formam grandes conglomerados populacionais com residências nas aldeias e comunidades. Esta forma de ocupação permite maior facilidade para transportar os produtos de primeira necessidade e facilitar no deslocamento até as cidades. Além disso, há também a predominância de fatores culturais e produtivos, bem como diferenças entre grupos, levando-os a permanecerem em aldeias distintas. Mais do que isso, tal distribuição espacial favorece as atividades de subsistência, diminuindo as dificuldades para o transporte de doentes, mas traz a escáces de caça, pesca, prática da coleta e agricultura por viver socialmente juntos para facilitar o convívio grupal.

Segundo a história oral dos Arara e as fontes históricas sobre o Alto Juruá, o contato entre esse povo e os não-índios só ocorreu no início do século XX. Mais precisamente em 1905, período em que estava sendo aberta uma estrada que iria ligar Cocamera, no Tarauacá, a Cruzeiro do Sul. Foi quando Felizardo Cerqueira e Ângelo Ferreira conseguiram, juntamente com índios Yawanawa, Rununawa e Iskunawa, estabelecem contato com os Arara que estavam localizados na região do igarapé Forquilha afluente da margem esquerda do riozinho da Liberdade e estes entraram em contato com os índios do Rio bagé e Riozinho Cruzeiro do Vale. Nesse período, os Arara residiam com os índios Rununawa, sendo todos liderados pelo célebre tuxaua Tescon, que era casado com a filha de um tuxaua Arara.

O padre francês Constantino Tastevin esteve no Alto Juruá, depois de 1912, deixando por escrito relatos da região e dos habitantes nativos. Em tais relatos, Tastevin faz uma distinção entre os Arara do Tauari e os do Forquilha, dando a entender que os Arara estavam divididos em mais de um grupo, ou em diferentes aldeias de um mesmo grupo. Tastevin relata, ainda, as constantes guerras intertribais travadas pelos Arara no início do século XX. Sabe-se que os Arara empreendiam migrações ao longo dos rios Tejo, Bagé, Liberdade e Amahuaca (riozinho Cruzeiro do Vale). Desses deslocamentos ocorreu o combate que resultou na morte de Tescon, em 1914, devido a um conflito com os Arara. Após a morte de Tescon, ocorreram ainda vários conflitos envolvendo o grupo que era liderado por ele, obrigando, assim, os Arara a migrarem para as proximidades dos rios Bajé, Tejo, Gregório e o riozinho Cruzeiro do Vale.

A história, a lembrança dos antigos, têm muita importância para o povo Arara, e as informações relativas a eles, em geral, estão vinculadas às correrias, às guerras intertribais, ao parentesco, à organização social, aos costumes tradicionais, às práticas de secessão e às migrações do grupo por um vasto território. Nem todo são araras , devido às guerras e aos casamentos intertribais que fizeram com que indivíduos de outros povos passassem a fazer parte da Nação Arara.

A região atualmente habitada pelo povo indígena Arara era território dos grupos Pano, desde o período pré-cabralino, mas a partir de meados do século XIX, passou a ser ocupada também por exploradores e comerciantes vindos de Belém, Manaus e centros urbanos localizados ao longo do rio Solimões. Entretanto, a exploração e ocupação efetiva da região do Alto Juruá, ocorreu apenas nas duas últimas décadas do século XIX, após vários embates com os grupos indígenas da região. Nesse período, a região foi povoada principalmente por migrantes oriundos do Nordeste brasileiro. Em fins da última década do século XIX, o Alto Juruá já estava povoado por brasileiros, quando peruanos “caucheiros” ocuparam a região.

Ao longo da segunda metade do século XX, os Arara estiveram sob o jugo dos patrões. No final da década de 1980 ao início da de 1990, muitos Arara migraram para as cidades, principalmente Cruzeiro do Sul, devido às precárias condições de vida na terra indígena. Os longos anos de ocupação por não-índios, fez mudar o antigo padrão de vida dos Arara.

No entanto, mesmo subjugados pelos patrões, a atividade produtiva voltada para a produção da borracha e a dependência do sistema de barracões, os Arara não abandonaram costumes tradicionais como a caça, a pesca, a agricultura e a coleta. Decorrente do processo de colonização, instrumentos novos foram inseridos a essas atividades, como machado, terçado, enxada, espingarda e outros. Com isso, o povo Arara agregou habilidades como o uso de arma de fogo a uma série de conhecimentos tradicionais sobre a floresta e sua fauna, e sobre os modos de como um caçador obter sucesso em sua atividade.

Na produção econômica atual também criam animais destinados ao consumo familiar ou à venda. As atividades de coleta destinam-se à colheita de frutos silvestres para completar alimentação, de produtos medicinais, temperos para os alimentos, óleos vegetais e outros. Cultivam vários tipos de mandioca, milho, banana, mamão, cana-de-açúcar, inhame, cará, feijão, fava branca, arroz, batata-doce, plantas medicinais e temperos.

Os Arara produzem também artesanato que, antes da dominação imposta pelos não-índios, era confeccionado em grande escala, inclusive utensílios domésticos, adornos e armas de caça e pesca. Alguns produtos artesanais como anéis, pulseiras, colares e bolsas de tecido são comercializados . Os igarapés Braço Esquerda e Rio Bagé, são de extrema importância para o bem-estar econômico e cultural dos Arara. Seus afluentes e respectivas cabeceiras coincidem com os limites da terra indígena, região onde são exercidas atividades de caça, pesca, coleta e agricultura.

Os rituais Arara possuem um forte vínculo com a cosmologia, mas são principalmente os mitos que retratam melhor os aspectos cosmológicos do grupo. Os mitos, contados principalmente pelos mais velhos, vêm a ser a forma própria de transmissão do saber do povo. A narrativa dos mitos se dá nas línguas Arara ou em português.

A tradição e o saber Arara dependem da preservação da sua terra, que vem sofrendo constantes invasões por regionais, causando conflitos latifundiários com a caça predatória. Por este motivo se faz Urgentes controle, pois esta é a única forma possível de se garantir a liberdade e o direito de viver desse povo, O Povo Shãwanawa ou Jaminawa Arara, encontra-se na Terra Indígena jaminawa-Arara no Rio Bagé munícipio de Marechal Thaumaturgo este território é reconhecido pelo governo estadual e federal. Esta terra é habitada por 378 pessoas em quatro aldeias do Clã Shawã, que em sua língua significa Arara.

Estes ocupam uma área de 28.926 ha, seu território continua preservado assim como sua cultura.

Texto de Hundu Shawanawa

JAMINAWÁ, povo Pano


Os Jaminawá são habitantes do centro da mata e da periferia miserável das cidades: representam o "selvagem" arredio ou o índio "deculturado" que esmola nas ruas. Encarnam as contradições mais dramáticas do imaginário e da história da Amazônia. Podemos encontrar as duas versões dos Jaminawá numa única página da Gazeta de Rio Branco (17/09/97): uma matéria informa da sua presença numa favela da capital acreana e uma outra atribui aos "Jaminawá" uma série de ataques que aterrorizam os habitantes de um remoto seringal.

O termo JAMINAWÁ começa a aparecer na segunda metade do passado século, e é traduzido habitualmente como "gente do machado" -- ora de pedra, índice do seu primitivismo, ora de ferro, pela avidez com que procuravam utensílios de metal nas colocações seringueiras. Habitualmente sabe-se deles só por intermédio de outros índios, os Kaxinawá no Brasil e os Shipibo no Peru, que temem suas incursões ou delas são vítimas, e que cunharam o nome com que os brancos passaram a conhecê-los. As grafias são muito variáveis: além de Jaminawá (no Brasil) e Yaminahua (no Peru e na Bolívia) podemos encontrar Yuminahua, Yabinahua, Yambinahua etc. Para além da diversidade ortográfica, devemos considerar que o costume de fazer trocadilho com o nome de povos vizinhos, muito comum no jogo das relações intertribais Pano, pode gerar outras versões.

O sufixo -nawa, que carateriza a maioria dos povos Pano do Acre, se apresenta, dependendo dos povos, em versão oxítona ou paroxítona. "Jaminawá" espelha melhor a pronúncia indígena e preserva assim as conotações históricas do nome.

Os Jaminawá se identificam com esse nome dado por outrem. Explicam que seus nomes "verdadeiros" são Xixinawa (xixi = quati branco), Yawanawa (yawa = queixada), Bashonawa (basho = mucura), Marinawa (mari = cutia) e assim por diante, dentro de uma série virtualmente infinita. Os -nawa formam uma constelação de grupos que ao longo de sua história tem se combinado de diversos modos, em sucessivas cissões, fusões ou anexações. Alguns desses nomes coincidem com o de povos genealógica e historicamente diferentes, embora sua língua e cultura sejam muito próximas - é o caso de "Yawanawa", que não alude aqui aos Yawanawá do Rio Gregorio. Nawa, vale a pena indicar, além de sufixo étnico é a palavra que designa os brancos.

Os Jaminawá são falantes de uma língua Pano, classificada num mesmo subgrupo junto com as outras línguas -nawa da região do Purus, de um lado e de outro da fronteira. É inteligível para outros grupos da área do Purus, como Sharanahua ou Marinawa; não para os Kaxinawá nem para os Amahuaca, também próximos. Com mínimas variações fonéticas e léxicas a língua coincide com a dos Yawanawá do rio Gregório. Em geral os falantes atribuem às outras línguas Pano uma proximidade muito maior que a admitida pelos técnicos: alguns Jaminawá e alguns Yawanawá do Gregório dizem poder se entender, por exemplo, com os Shipibo do Ucayali.

Excetuando-se a geração mais velha, que apenas conhece algumas palavras em português e espanhol, os Jaminawá são bilíngües. Têm participado dos projetos pedagógicos da Comissão Pró-Índio do Acre, com resultados duvidosos. O prestígio da atividade escolar -- e de algum dos professores -- é muito baixo no grupo, a frequência às aulas é escassa e irregular em comparação com o que pode ser observado em outros grupos, e, pertencendo todos os agentes à mesma facção do grupo, as cisões recentes têm isolado a maior parte dos Jaminawá da atividade educativa. A implementação de projetos de desenvolvimento, governamentais ou não, tem enfrentado dificuldades especiais entre os Jaminawá, em decorrência sobretudo da sua instabilidade política.

Qual seria, então, o sujeito e o fio da história desse povo? Devemos pensá-los como um feixe de linhas que se entrecruzam. Os Jaminawá do rio Acre situam o começo da sua história em duas grandes aldeias: uma sobre o rio Moa - não o afluente do Juruá, mas um outro menor, do rio Iaco - e outra entre os rios Iaco e Tahuamanu. Dali se deslocaram para as cabeceiras do Chandless, onde tiveram seus primeiros contatos pacíficos com os brancos, no caso caucheiros peruanos ou bolivianos. No rio Shambuyacu, no Peru, conviviam com Sharanawa, Marinawa e Mastanawa, que intermediavam, geográfica e comercialmente, com os brancos, como faziam mais ao noroeste os Shipibo. As relações com esses outros grupos Pano levavam regularmente ao conflito e à fuga dos Jaminawá mata adentro. Eles por sua vez exerciam a mesma função em relação a outros grupos nawa mais "selváticos", que acabaram incorporando.

Depois de um longo período em que alternam as aproximações pacíficas e as correrias - protagonizadas em muitos casos por índios Manchineri aliados aos seringalistas - os Jaminawá vão estabelecendo relações diretas com patrões brancos, entre o rio Acre e o Iaco. Em 1968 um grupo de algo mais de cem Jaminawá - debilitados por repetidas epidemias - se instalam no seringal Petrópolis, assumindo certo grau de dependência dos brancos, fato inédito até então. Os informes da FUNAI, que se instala no Acre em 1975, descrevem uma situação clássica: alcoolismo, prostituição, desorganização do grupo e exploração econômica. É estabelecido nesse ano um Posto Indígena, que quebra o monopólio do seringal. Com esse apoio, os Jaminawá se instalam rio acima, na área Mamoadate, que congrega duas aldeias Jaminawá (Bétel e Jatobá) e uma Manchineri (Extrema). Em 1989, provavelmente em função de desavenças internas e da vontade de se aproximar mais do mundo branco, um grupo considerável dirigido pelo chefe José Correia Tunumã migra para o rio Acre, onde já morava outro grupo de Jaminawá. Consolida-se assim a Terra Indígena Cabeceiras do Rio Acre, interditada em 1988, cuja declaração de posse permanente, oficializada em 6/3/92, alcança um área total de 78.512 hectares, no município de Assis Brasil, fronteira com o Peru. Em 1998, teve sua homologação publicada no Diário Oficial da União.

Há outras aldeias com as que os Jaminawá reconhecem vínculos próximos de parentesco. A primeira, conhecida como "A Escola", em território boliviano, a umas duas horas de canoa a partir de Assis Brasil, é uma aldeia organizada em volta de uma missão protestante, com uma população próxima dos duzentos habitantes Jaminawá do subgrupo Yawanawa. Em Brasiléia, no Bairro Samaúma, habita um contingente Jaminawá desgarrado do grupo do Iaco desde 1987, por causa de um conflito interno. Desde a cisão têm sido conhecidos com o nome de Bashonawa. Os Bashonawa de Brasiléia, carentes de terras, vivem em uma situação precária sem roças nem fontes fixas de renda.

Nos rios Iaco e Purus há mais Jaminawá. No primeiro encontra-se o sítio Guajará, que conta com uma comunidade. A montante, a Terra Indígena Mamoadate congrega na aldeia Bétel pouco mais de cem Xixinawa. No rio Purus, existe o grupo de Paumari, em que se contam oitenta ou noventa indivíduos Kaxinawa e Xixinawa, e famílias nucleares dispersas e misturadas com "peruanos". Próximo à fronteira peruana do Purus, alguns deles têm se deslocado para Sepahua, no rio Urubamba, e estão vinculados a uma missão católica dominicana. Em território peruano existem ainda algumas comunidades Jaminawá no rio Purus e outras na área do alto Juruá, nos rios Mapuya e Huacapishtea. Os Jaminawá brasileiros têm vagas notícias a seu respeito. Outros grupos conhecidos como Jaminawa no Brasil, como os da aldeia Igarapé Preto, carecem de relação com os Jaminawá aqui descritos. Os Jaminawá costumam se instalar em estreita relação com outros povos indígenas: no Brasil, especialmente com os Manchineri, de língua da família arawak. Relações maritais são freqüentes entre ambos os grupos, mas não são consideradas matrimônios legítimos. Do mesmo modo, a visível mestiçagem com os "brancos" não tem dado lugar a uma categoria de "mestiço": a alteridade dos brancos é assimilada dentro do conjunto de alteridades que já organiza as relações entre os diversos grupos nawa.

Deve-se advertir o leitor da precariedade destes dados, por causa das freqüentes rearticulações dos grupos. Pouco depois do final da minha pesquisa de campo, em 1993, o assassinato de um Jaminawá em Brasiléia, pelas mãos de um Bashonawa residente nessa cidade, acabou provocando uma cisão no grupo do rio Acre. Dois grupos numerosos -- que freqüentavam a cidade de Rio Branco -- foram realocados nos anos seguintes em Santa Rosa -- no Alto Juruá -- e no rio Caeté; um contingente considerável tem-se instalado de modo mais ou menos permanente na capital. A população total de Jaminawá no Brasil é difícil de avaliar: os grupos aqui descritos devem reunir uma cifra aproximada de 500 indivíduos.

Os Jaminawá contam no Peru com uma população de 324 pessoas, segundo o censo de 1993. Na Bolívia, de acordo com o livro Amazonia Peruana (1997), são 630 indivíduos. Os contatos dos Jaminawá com os missionários têm sido esporádicos ou indiretos, primeiro com os missionários católicos dominicanos do Peru que se aventuravam nos seringais, depois com os missionários evangélicos da Missão Novas Tribos do Brasil, instalados junto aos Manchineri na Terra Indígena Mamoadate, no rio Iaco. Na Aldeia da Escola, na margem boliviana do rio Acre, tem lugar uma catequização mais sistemática. Até agora as missões não parecem ter tido grandes conseqüências quanto à cultura tradicional.

Nos últimos dez anos a presença dos Jaminawá em Rio Branco tem se intensificado, seja na Casa do Índio, seja em áreas de favela, seja em precários acampamentos no centro da cidade ou sob a ponte. As conseqüências são graves: desnutrição de crianças, sério risco de doenças sexualmente transmisíveis, conflitos que acabam na delegacia ou na cadeia, sem contar com o alto índice de alcoolismo que já vem do tempo do seringal e na cidade se vê agravado pela má alimentação. Essa atração letal pela cidade é a face escura da colaboração dos Jaminawá com as entidades indigenistas: o compromisso político tem levado com demasiada freqüência as lideranças Jaminawá para a cidade, privando a comunidade de um centro de referência e de uma instituição essencial para resolver os conflitos. A FUNAI, sem possibilidades de atacar a raíz do problema, tem reagido deslocando os sucessivos grupos dissidentes para outras áreas, algumas -- como Santa Rosa e Caeté -- muito distantes. Essa dispersão é muito negativa para a defesa dos direitos territoriais já adquiridos pelo grupo. Os Jaminawá estão vinculados à UNI-Acre desde a sua criação.

Os Jaminawá praticam uma agricultura de subsistência quase monopolizada pela macaxeira e a banana. Dispõem em geral de caça abundante; a pesca, ao menos na aldeia do rio Acre, é pobre durante boa parte do ano. Sua integração econômica no mundo branco é secundária e marginal; os salários e as aposentadorias obtidos do FUNRURAL, de projetos educativos ou desenvolvimentistas estão em geral comprometidos, a crédito, com comerciantes de Assis Brasil. Salários como diaristas, ou o produto da venda de banana, peixe ou caça, servem em geral para financiar as viagens e estadias em Assis Brasil e Rio Branco. Os empreendimentos de criação de bovino ou suíno ou de plantação de arroz são individuais e pouco significativos, assim como as atividades extrativas. A pressão dos brancos sobre os seus territórios -- em geral fronteiriços com áreas de preservação -- resume-se à ação individual de pescadores ou caçadores. A eventual pavimentação da ligação rodoviária Acre--Peru por Assis Brasil--Iñapari pode alterar essa situação.

As aldeias Jaminawá são um agregado de pequenos casarios, cada um dos quais pode reunir um "velho" com suas filhas e genros, ou dois "velhos" cunhados cujos filhos casam entre si, ou um grupo de irmãos com suas famílias. O conjunto das casas familiares, palafitas construídas sobre os barrancos do rio no estilo das casas seringueiras, equivale à maloca coletiva do tempo antigo, e é designado pelo nome daquela, peshewa. O chefe do grupo pode nuclear um assentamento maior, congregando à sua volta várias famílias e jovens solteiros; mas esta concentração costuma ser passageira.

Os Jaminawá se dividem em um número indeterminado de kaio, que seriam clãs de caráter "totêmico" e de linha paterna, e cujo conjunto em geral coincide com o dos etnônimos: Xixinawa, Yawanawa, Bashonawa, Xapanawa... No aspecto simbólico essa divisão parece um desdobramento do dualismo comum entre os grupos Pano: a tradição indica que as relações com os animais epônimos observam alguma das regras que definem a conduta com os consangüíneos. Mas não deve se exagerar a transcendência nem a objetividade dessas unidades "parentais": dependendo do contexto, um Jaminawá pode ser contabilizado em kaio diferentes. A residência pode também modificá-lo: um kaio predomina em cada aldeia e acaba funcionando essencialmente como etnônimo. Frequentemente segregadas em função de conflitos, as diversas aldeias acabam operando também como grupos exogâmicos: poderíamos dizer que as rixas acabam sendo uma condição prévia da aliança matrimonial.

Mais de perto -- quando se observa um pequeno grupo residencial, e sobretudo quando se interroga as mulheres -- o aspecto da sociedade Jaminawá é dualista: os habitantes de uma peshewa são classificados em duas metades (por exemplo, Xixinawa e Yawanawa), respectivamente consangüíneos ou afins do ponto de vista de um ego. Os "desagregados" Jaminawá expõem, assim, visões alternativas de uma mesma organização. Uma -- a que privilegia as "metades" -- depende de um ponto de vista local, "sociológico" e predominantemente feminino; a outra -- a que insiste na pluralidade de grupos -nawa -- é global, histórica e parte habitual de um discurso masculino.

O chefe Jaminawá pode ser designado pelos termos diyewo, tuxaua, patrão e liderança, quatro termos que resumem a história política Jaminawá deste século. Um diyewo é um rico, um cabeça de família poderoso, de quem dependem muitos jovens; alude a um tipo de chefia que ainda existe e que opera no âmbito do parentesco.

O tuxaua e o patrão nos lembram da época de vinculação dos Jaminawá a seringais e fazendas. O tuxaua era em geral um diyewo mais ou menos importante que estabelecia relações de clientela ou compadrio com um patrão branco, dentro do sistema de "aviamento" comum na Amazônia. O poder do tuxaua reside na sua habilidade para lidar com o mundo externo; e essa mesma habilidade pode convertê-lo em "patrão" aos olhos dos seus seguidores.

A "liderança" pertence à época em que os Jaminawá estabelecem alianças com brancos distantes, começando pela FUNAI e acabando com ONGs nacionais ou internacionais, que lhes possibilitam uma ampla autonomia dos patrões locais. Em certo sentido, e malgrado o discurso tradicionalista que a caracteriza, é esta versão da chefia a que mais se distancia do modelo do diyewo: trata-se de um homem mais jovem, cujo peso dentro do sistema de parentesco é baixo. A persistência no uso dos quatro termos indica que os quatro modelos de autoridade convivem nos dias de hoje, e as contradições entre eles talvez estejam na raiz da instabilidade Jaminawá. É importante assinalar que é o chefe quem "constrói" o grupo para além dos vínculos ativos de parentesco: sua fraqueza tem consequências estruturais.

Tudo parece indicar que o xamanismo Jaminawá tem sofrido mudanças recentes e profundas. Até trinta anos atrás via-se dominado pela figura do niumuã, consumidor de diversas substâncias psicotrópicas ou tóxicas, conhecedor de cantos poderosos, capaz de adivinhar o futuro das incursões guerreiras, de viajar e matar à distância. Os Jaminawá alegam que o niumuã não mais pode existir em tempo "de paz". O koshuiti, bebedor de ayahuasca e cantor, dono de uma arte curativa que maneja as mesmas artes e os mesmos símbolos, ocupa o seu lugar -- não sem uma grande carga de ambiguidade.

Os Jaminawá têm vários koshuiti, que estendem suas atividades para uma clientela branca. A "koshuitia" é adquirida através de um longo processo iniciatório, dedicado a aprender os segredos da ayahuasca e pontuado por uma série de provas extremamente dolorosas. É uma arte cada vez mais restrita, que a nova geração não está aprendendo.

A falta quase absoluta de manifestações plásticas - da pintura corporal à cerâmica -, sempre atribuída ao "esquecimento" da cultura tradicional, pode ser melhor entendida como uma vontade de omitir os signos que, aos olhos dos brancos, os caracterizariam como "índios". Em aldeias afastadas, como a do Iaco, são ainda praticadas.

Em troca, a arte oral e musical Yaminawa é muito rica. Além dos belos cantos xamânicos, conhecidos por poucos, homens e mulheres têm seus yamayama (chamados assim pelo bordão que une as estrofes), cantos líricos individuais de teor erótico e apaixonado, que descrevem os sentimentos do autor e as peripécias de sua vida. Eis alguns exemplos (versões livres, baseadas na tradução de Arialdo Correia):

Dorme, filha, cantarei a cantiga
que os nossos sempre cantaram;
para ver os mortos em sonhos;]
para ver o pai voltando da pesca.
Sou infeliz; cresci sem ver meu pai,
só vi estrangeiros.
Meu pai morreu, quero também morrer logo,
e acabarão minhas mágoas.
Mas não irei ao Céu.
Virarei o rosto para não ver o urubu
e ficarei mais embaixo,
lá onde os meus mortos moram.
(Nazaré, aprox. 35 anos)

Canto porque te amo; mas tu me amaste só quando era moça,
quando não havia casa e dormiamos no chão, quando ia embora e voltava nos teus braços chorando.
Mas não gosto de um homem que quer provar todas as mulheres...
...
Meninos devem casar
com uma mulher mais velha, que os faça adormecer;
quando cresçam, gostarão dela.
Infeliz de mim;
meu rosto já está velho, e os meninos não me desejam,
eu queria perguntar às mais novas
o que fazem para atraí-los...
(Luzia, aprox. 45 anos)

Gostava de ti, irmãzinha,
gostava de te ver deitada,
me alegrava tua voz.
Como gostava de ti, irmãzinha –
na hora do amor puxavas meu sexo,
e eu te deitava na madeira mole
da árvore caída: vamos fazer amor
como fazem dois estranhos.
Quando morrer quero
que me enterrem contigo.
(Clementino, aprox. 75 anos)

A narrativa tem um gênero dominante: o dos shedipawó, "histórias dos antigos". Há alguns excelentes narradores, que fazem do relato um espetáculo ritmado, com jogos de vozes e efeitos de som; mas as histórias são conhecidas por todos. As mulheres e mesmo as crianças gostam também de narrar, porém com um repertório em geral restrito a relatos de tema humorístico ou zoológico. Os shedipawó Jaminawá poderiam ser descritos como mitologia historificada: os mesmos acontecimentos que outros povos situam num início dos tempos ou atribuem a seres mais ou menos divinos aparecem em boca dos Jaminawá como aventuras de um antigo, um indivíduo dramático e concreto.

Os Jaminawá parecem pouco interessados na exegese: não há desse modo um discurso articulado a respeito deste ou de outros mundos - além das próprias narrações. Os shedipawo têm três cenários habituais: o fundo das águas, a mata fechada e o céu. O céu Jaminawá é sempre um lugar de decepção: os seres humanos se perdem a caminho dele, as tentativas de estabelecer contato com seus habitantes acabam em fracasso. A selva é o lugar da guerra e das metamorfoses: os seres trocam suas identidades, se devoram e casam entre si; sob cada forma visível há um "espírito" (nhusi, yoshi) capaz de transmigrações. O mundo das águas participa desse mesmo panorama, mas nele põem os Jaminawá o seu olhar mais esperançoso: lá estão as grandes cobras d’água, as Ronoá, que oferecem aos homens suas riquezas: o ferro, as mercadorias, a ayahuasca.

Baseado em texto de Graham Townsley e Oscar Calavia

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

SHENIPABU MIYUI... e a literatura indígena


A cultura indígena é parte integrante na formação do arcabouço cultural brasileiro; a despeito disso, porém, sua presença e sua inestimável contribuição no âmbito das artes não costumam ser devidamente apreciadas e, muitas, vezes, sequer percebidas. É nesse sentido que podemos afirmar que a riqueza cultural indígena precisa ser melhor compreendida a fim de que possa receber sua devida valorização. E isso vale inclusive para as manifestações de nossa literatura.

Com a proposta de pesquisa literária voltada para a produção indígena, esperamos contribuir para ampliar as perspectivas da literatura brasileira e para auxiliar a compreensão de um universo aparentemente tão distinto do nosso (uma vez que somos pautados pelo referencial ocidental europeu), mas que, no entanto, apresenta inegáveis e importantes pontos de intersecção conosco, inclusive no âmbito da produção literária. Trata-se de área com caráter inovador e carente de pesquisas acadêmicas, principalmente na Região Sudeste. O difícil acesso a um material pertinente e atualizado, a falta de eventos acadêmicos (simpósios, colóquios, congressos) que contemplem esse filão da literatura, a raridade de interlocutores, etc. compõem uma situação de descaso que justamente nos incentivou a refletir sobre essas questões.

Hoje, o próprio índio escreve sobre os índios (e também sobre os brancos) para que, principalmente, outros índios leiam. Podemos dizer que está em processo de configuração, no Brasil, uma literatura do índio para o índio. Atualmente, é a figura indígena que se apresenta como matriz criadora: o índio está se firmando enquanto sujeito de sua própria história. É seu olhar diante do mundo que se reflete naquilo que é contado e escrito. E, atualmente, a interferência do “branco” é cada vez menor e menos modificadora e até mesmo bem menos devastadora.

Toda essa área é muito ampla e merece novas perspectivas de estudos, sendo um horizonte que se abre diante das pesquisas acadêmicas. Conforme Almeida e Queiroz (2004, p. 195), “os escritores indígenas estão descobrindo o Brasil”. Cabe, então, a nós RE-descobrirmos os índios, os “autores da floresta”, sob um aspecto mais humano, mais democrático, mais literário.

Sendo assim, o presente trabalho tratará inicialmente do processo de configuração da literatura escrita de autoria indígena no Brasil, apresentando as principais características dessa literatura, bem como seus mais significativos representantes. Posteriormente, faremos uma reflexão acerca das narrativas indígenas de origem mítica – ou histórias de antigamente –, mostrando a importância dessas narrativas, que antes eram veiculadas apenas através da oralidade e hoje estão sendo escritas em forma de livros, possibilitando sua leitura como texto literário.

O conteúdo de nossa fala hoje não se apresenta como estudo concluído, com afirmações definitivas, mas antes como reflexões primeiras acerca de tema a ser desenvolvido aprofundadamente ao longo de nossa pesquisa de doutorado, que ainda se encontra em andamento.

O interesse pelo estudo das narrativas indígenas surgiu já durante a pesquisa de mestrado, resultando num trabalho de análise de contos populares de origem indígena, coletados por Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero e reunidos em Contos populares do Brasil (1883). Com os contos publicados por Romero, o universo da autoria indígena ao mesmo tempo se aproxima e se distancia de nós. A proximidade se dá pelo fato de Romero nos apresentar textos cuja origem está na cultura aborígine, refletindo, assim, aspectos de seus valores, costumes, visão de mundo. No entanto, as intervenções, adaptações, “correções” e adequações promovidas por Romero inevitavelmente anuviam ou mesmo apagam a autoria indígena primordial (operante durante a transmissão oral).

Atualmente, o séc. XXI delineia um novo cenário: de um lado, há ferramentas de análise mais sensíveis frente ao fator estético (em contraposição às perspectivas positivistas da época de Romero) e uma crescente conscientização e respeito pelas diferentes culturais, de outro, o progressivo surgimento de autores indígenas, que pavimentam a estrada entre culturas, línguas e criações estéticas. Sendo assim, na presente pesquisa, nossos estudos são voltados para narrativas não só de origem indígena, mas também de autoria indígena.

Temos nos dedicado a verificar como tem ocorrido o “fenômeno da escrita indígena” no Brasil e como essas produções escritas de autoria indígena têm se revestido de um caráter literário. Buscamos investigar como se iniciou o processo de escrita indígena, quais são as características dessa literatura e quais são seus principais representantes.

Em primeiro lugar, merecem destaque os direitos garantidos legalmente aos indígenas brasileiros essencialmente pela Constituição de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e pelo Plano Nacional da Educação, de 2001, que lhes asseguram um processo de ensino-aprendizagem diferenciado.

De acordo com Souza (2003), a constituição brasileira de 1988 reconheceu oficialmente a existência de línguas indígenas no Brasil e garantiu o direito à educação bilíngüe. Como consequência disso, a partir da década de 90, escolas indígenas diferenciadas começaram a ser criadas em nosso país. Com a criação dessas escolas, algumas personagens, antes inexistentes, iniciaram sua atuação no cenário educacional brasileiro. Professores indígenas passaram a ser formados e a lecionar nessas escolas para um público discente composto em sua grande maioria (quando não em sua totalidade) por indígenas. Dessa maneira, um material didático também diferenciado se fez necessário. Além de aprenderem ou aprimorarem o domínio da língua portuguesa escrita, muitas tribos indígenas, anteriormente ágrafas, intensificaram o processo de construção de sistemas alfabéticos escritos de suas próprias línguas de origem.

No Brasil, existem cerca de 2.765 escolas indígenas diferenciadas e cerca de 246 mil discentes índios matriculados – 22 mil alunos na educação infantil; 175 mil no ensino fundamental; 27 mil no ensino médio; 21 mil na Educação para Jovens e Adultos (EJA); um mil na educação profissional e 9 mil no ensino superior –, segundo informações do Censo Escolar 2010. Temos também, em nosso país, cerca de 12 mil professores indígenas, dos quais 2 mil são graduados e 3 mil estão em formação. São esses professores que assumiram primordialmente a confecção de seus próprios materiais didáticos, fazendo com que suas histórias, cantos, mitos e poesias passassem do âmbito da oralidade para o âmbito da escrita. Eles têm construído, a partir de suas práticas de trabalho, a literatura das suas comunidades: são os chamados “livros da floresta”, segundo a Profª Drª Maria Inês de Almeida, docente da UFMG, cujos estudos se voltam para a produção literária escrita de autoria indígena no Brasil, estudos esses fundamentais para o desenvolvimento de nossa pesquisa.

Naturalmente, vale ressaltar que, ao escreverem suas narrativas, os indígenas deixam de lado toda a complexidade do processo performativo de narrar oralmente, mas outras características da oralidade, como a repetição, a condensação dos enredos, as expressões que marcam o início e fim das histórias, a informalidade e coloquialidade da linguagem ainda são preservadas.

Antes, toda contribuição cultural indígena era coletada, selecionada, modificada e registrada pelos brancos; certamente, essa intermediação fazia com que muito da originalidade das narrativas fosse perdida. A figura do índio era vista apenas como personagem das histórias dos brancos ou os brancos se posicionavam como “donos”/ autores das histórias dos índios. O que tem acontecido nas últimas décadas é que os próprios indígenas têm assumido a voz narrativa, tornando-se sujeitos, autores/ criadores de seu legado cultural escrito que, por sua vez, é a expressão de seu legado mítico.

As produções indígenas são escritas tanto em suas línguas de origem quanto em língua portuguesa. Há livros que utilizam apenas a língua indígena; outros, apenas o português; outros ainda que apresentam as narrativas na língua indígena e traduzidas para o português, e, por fim, aqueles que apresentam duas versões (e não traduções) das histórias, uma na língua indígena e outra em língua portuguesa, como é o caso da obra que compõe o corpus de nossa pesquisa. O que podemos verificar nesse processo é que a língua do branco, utilizada anteriormente como instrumento de dominação e manipulação de saberes, passa agora para o domínio escrito do índio. O que antes era uma “arma” contra passa agora a ser uma “arma” favorável ao indígena, uma ferramenta que possibilita sua expressão imaginativa, comunicativa e também um instrumento político para a divulgação e valorização de sua cultura, seus costumes e seus direitos.

A pesquisa centrada na literatura escrita de autoria indígena em certa medida ainda é “terreno virgem”, o que se deve ao fato de essa literatura ainda ser vista basicamente como matéria de estudos antropológicos, mas não de estudos literários. A nossa proposta de análise considera a matéria estética desses textos – universo composto de expressão de idéias, de criatividade verbal e elaboração da composição narrativa.

Os indígenas dividem suas narrativas em dois grandes grupos: as histórias de hoje e as histórias de antigamente. As histórias de hoje são narrativas históricas, geralmente de autoria individual, que tratam de fatos e acontecimentos situados no presente atual, como por exemplo, a luta pela demarcação de territórios. Já as histórias de antigamente são narrativas originadas da oralidade performática e mítica, geralmente de autoria coletiva, que tratam de fatos e acontecimentos situados no “tempo de antigamente”, também chamado de presente anterior ou tempo mítico, segundo informações de Souza (s.d., on-line).

Na produção de obras indígenas de autoria individual, destacam-se os escritores: Daniel Munduruku, Álvaro Tukano, Graça Graúna, Ailton Krenak, Eliane Potiguara,Cássio Potiguara, Olívio Jekupé, Yagrarê Yamã, Darlene Taukane, Naine Terena, Edson Brito (kayapó), dentre muitos outros. Na produção de obras de autoria coletiva, podemos citar os povos: guarani, maxakali, yanomami, kiriri, desana-ware, satare-mawe, kaxinawá.

As comunidades indígenas consideram a escrita de seus mitos muito importante (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 233). Tem acontecido, em várias aldeias brasileiras, uma interação diferenciada entre os mais velhos (considerados mais sábios) e os mais novos, que são os verdadeiros protagonistas desse novo processo educacional e literário. Os mais velhos se dispõem a narrar aos coletores as histórias “verdadeiras” de seus povos, as histórias de um tempo antigo, remoto, de um tempo em que a escrita não existia para dizer que havia histórias falsas. Os coletores, por sua vez, respeitam todo o contexto cultural no qual as narrativas estão inseridas e escrevem/registram aquilo que ouvem. Configura-se um processo bem complexo de fixação das expressões literárias orais para uma expressão literária escrita, que será editada, publicada e utilizada na formação escolar das crianças da aldeia ou então que será destinada também ao público leitor branco, mesmo que seja em menor escala.

A forma mais simples, e talvez a mais clara, de definir o mito é como a representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou recreativa (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 233).

Podemos perceber que, ao escreverem e publicarem seus mitos, os índios concretizam o universo de sua cultura, seus costumes, suas crenças. O que acontece nos dias de hoje não é um simples processo editorial e literário, mas sim o assumir, por parte dos índios, um novo posicionamento na História e na literatura, um posicionamento mais ativo, coletivo e até mesmo político. Através da escrita de seus mitos, os índios colocam-se como os verdadeiros autores de sua História, segundo Almeida e Queiroz (2004).

Podemos dizer que a literatura indígena vinha passando por um processo de folclorização, com o intuito de ocultá-la. O uso dos mitos indígenas nas escolas, por exemplo, trazia as entidades míticas desespiritualizadas. Apenas a escrita desses mitos, que possibilita que eles sejam lidos como literatura, reespiritualiza as entidades míticas, na medida em que recompõe graficamente suas formas rituais (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 205).

É nessa linha que se dá a publicação de Shenipabu Miyui, que constitui o corpus de minha pesquisa. Uma obra de autoria coletiva dos índios Kaxinawá, composta por 12 narrativas de origem mítica e organizada pelo professor indígena Joaquim Mana Kaxinawá.
Shenipabu Miyui, ou História dos Antigos, é o resultado de uma pioneira pesquisa realizada durante seis anos por um grupo de professores Kaxinawá sobre parte da história oral do seu povo autodenominado Huni Kui, ou “Gente Verdadeira”. Foi primeiramente gravado por esses jovens pesquisadores junto aos velhos, mestres da tradição, em Terras indígenas do Brasil e Peru. E depois foi transcrito e escrito por eles em língua Kaxinawá, Hãtxa Kui, ou “língua verdadeira”, uma das nove línguas da família lingüística Pano existentes no Acre, e em português (KAXINAWÁ, 2008, p. 9).

Os kaxinawá compõem hoje a população indígena Pano mais numerosa do Acre, com cerca de 5000 índios. Destes, 1500 estão distribuídos por nove aldeias no Alto Rio Purus e seu afluente, o Rio Curanja, no Peru. Outros 3500 vivem em onze territórios indígenas localizados no Brasil, ao longo do Rio Purus e de afluentes do Rio Juruá.

O povo indígena Kaxinawá entrou em contato com o “homem branco” no final do século passado, quando foram incorporados como mão-de-obra dos seringais. Tentando compreender as relações econômicas com os patrões, os índios seringueiros passaram a se interessar pela escrita (alfabética e numérica), já que, até então, constituíam uma sociedade de tradição predominantemente oral. A dominação do sistema escrito dos brancos serviu para que a cooperativa dos trabalhadores indígenas tentasse garantir a legitimidade dos seus direitos.

Em 1983 foi criada a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/ AC), uma das primeiras organizações não-governamentais de apoio à questão indígena no país. Essa organização foi responsável pelo início do programa de formação de professores indígenas na região. Através do projeto “Uma Experiência de Autoria” com o I Curso de Formação de Monitores e Agentes de Saúde Indígenas, teve início o primeiro processo de formação profissional de jovens indígenas no Acre, não só com o povo Kaxinawá, mas também com os outros grupos Pano.
Deste trabalho educacional com a formação de professores indígenas resultou o livro Shenipabu Miyui, além de muitos outros, escritos pelos professores indígenas Kaxinawá sozinhos, ou com outros professores de outras etnias do Estado, para seu uso e difusão em suas escolas e em outras escolas brasileiras (KAXINAWÁ, 2008, p. 15).

Para a elaboração do livro Shenipabu Miyui, um dos professores dos primeiros anos do projeto de formação profissional viajou para as aldeias Kaxinawá peruanas, coletando as narrativas dos antigos e gravando-as em fitas K-7. Ao voltar para o Brasil, apresentou o material coletado aos outros professores Kaxinawá do projeto. A partir daí, todo o grupo passou a trabalhar em conjunto na confecção do livro, coordenados pelo professor Joaquim Mana. Uma segunda parte do processo consistiu em coletar mais versões das narrativas, agora dos mestres antigos das aldeias brasileiras.

Várias versões foram ouvidas e foi necessário realizar comparações, análises, escolhas até chegarem ao grupo de doze narrativas de antigamente, que compõem a obra.

Inicialmente, os Kaxinawá optaram por publicar o livro apenas com as versões das histórias escritas na língua indígena Hãtxa Kui, sem colocá-lo em contato com a língua portuguesa. Entretanto, após várias discussões, compreenderam que deveriam dar a oportunidade a outros leitores, de outras etnias, de conhecerem as histórias Kaxinawá. Assim, iniciou-se mais um processo, o de coletar entre os mestres da tradição, que dominassem a língua dos brancos, versões das narrativas selecionadas para o livro, mas agora em português. Portanto, Shenipabu Miyui é uma obra bilíngüe, porém não se trata de traduções dos mitos Kaxinawá, mas sim de versões em língua portuguesa. São apenas as versões em português que formam o corpus de trabalho de nossa pesquisa.

A primeira edição do livro, em 1995, aconteceu por meio do projeto da CPI/AC, com o apoio financeiro da Unicef e da Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas do Ministério de Educação e Desportos. A tiragem foi de 3000 exemplares, visando à difusão principalmente entre os próprios Kaxinawá. Diz Joaquim Mana:
Só agora nos últimos anos é que estamos com os direitos de ter uma comunicação através da escrita na nossa língua própria. Sendo um processo novo para os índios e para os assessores, encontramos várias interrogações no ar. Como se fôssemos andorinhas voando para pegar as moscas de sua alimentação numa tarde de temporal de chuva. Mas o túnel do futuro mostra que somos capazes de realizar os sonhos que sempre tivemos como povos diferentes, valorizados dentro de nós mesmos e espiritualmente (KAXINAWÁ, 2008, p. 5).

Em 2000, a Universidade Federal de Minas Gerais realizou a segunda edição do livro e incluiu a obra na lista de leituras exigidas para o Vestibular 2001 da instituição. Acreditamos que medidas como essa são extremamente significativas, pois representam um estímulo para a valorização da cultura indígena – que integra o leque cultural brasileiro – e para o enriquecimento da literatura brasileira contemporânea.

Em Shenipabu Miyui, os kaxinawá escrevem seus mitos, apresentando-os como narrativas que explicam o mundo, os seres, os valores, integrando o real/cotidiano com o suprareal, mágico, fabuloso, divino. Há, nos textos, a representação da visão integradora de mundo dos índios kaxinawá, que amplia a realidade, apresentando, por exemplo, personagens de caráter híbrido, ou seja, a linha que separa homem e natureza é muito tênue e as metamorfoses são constantes, sendo corrente a transformação de um ser em outro. Esse hibridismo que se manifesta sob forma das características físicas dos seres vivos e inanimados também se reflete em suas peculiaridades interiores, éticas e morais. No momento das histórias de antigamente, tudo ainda estava sendo criado e os seres não têm uma forma definida, podendo se metamorfosear constantemente, de acordo com Souza (s.d., on-line).

Por fim, outra característica importante da escrita indígena é seu grande apelo visual. Praticamente todas as histórias são ilustradas com desenhos feitos pelos próprios índios, estabelecendo um significativo diálogo entre os textos verbais e não-verbais, processo denominado por Souza (s.d., on-line) de narrativas multimodais. As produções narrativas escritas dos Kaxinawá são freqüentemente acompanhadas de dois tipos de desenhos: kenê e dami. Os desenhos kenê compõem um conjunto altamente codificado de traçados geométricos; são desenhos geralmente em preto e branco que podem aparecer sozinhos (em um dos cantos ou no final da página na qual está escrita uma narrativa) ou junto com os desenhos dami. Os traços kenê possuem um significado mítico, pois representam metonimicamente a pele da anaconda-Yube, uma figura central da mitologia Kaxinawá, responsável por trazer a cultura, a sabedoria e o conhecimento a esse povo. A reprodução das formas geométricas que cobrem pele do anfíbio tem caráter mimético, acompanhando o desenho que integra o tecido “vivo”. Souza (s.d., on-line) diz também que esses grafismos kenê seriam usados como marcadores de veracidade, funcionando assim como fatores de legitimação das histórias contadas pelos Kaxinawá.

Já os desenhos dami, são desenhos figurativos, coloridos ou não, que acompanham as histórias, sugerindo uma cena narrativa. Eles podem representar animais, objetos, seres humanos ou sobrenaturais e não há, nesse tipo de desenho, preocupação com perspectiva ou com a reprodução fiel (imitativa), pois misturam, em um mesmo plano, personagens e espaços de naturezas diferentes. Em Shenipabu Miyui, esses textos não-verbais dialogam com os textos verbais e intensificam a representação da visão integradora de mundo indígena.

Diz Almeida sobre as narrativas Kaxinawá:
As doze histórias de Shenipabu Miyui formam, portanto, um conjunto, um livro, em cujo interior as narrativas ilustradas com desenhos mantêm um padrão narrativo, um nível coerente de legibilidade, uma sistemática textual, própria da organização livresca. Os temas são variados, os desenhos são figurações da variedade de situações e personagens, mas o fato de serem elaboradas e organizadas em conjunto, com a intenção de configurarem um livro, coloca-as definitivamente no âmbito da cultura letrada, na perspectiva do mundo editorial contemporâneo. Mesmo que o dado fundamental desta literatura seja sua inserção na tradição oral kaxinawá, a sua presença em livro desloca-a para o campo da história da literatura brasileira, mesmo porque seus textos tiveram seu momento de criação em língua portuguesa. O bilingüismo explícito dos autores kaxinawá, por estar escrito nas páginas do livro, garante o começo da história da literatura kaxinawá, ainda que esta se insira na brasileira (ALMEIDA, 1999, p.137).

A riqueza literária e pedagógica das narrativas indígenas escritas é imensa e merece um novo olhar acadêmico. Na contemporaneidade, a literatura escrita indígena alia-se à tradição oral para expressar toda a riqueza estética e milenar contida no legado mítico de cada comunidade. Termino citando novamente a professora Maria Inês de Almeida que diz que:
Contar o mito é batalhar pela sobrevivência do próprio povo. Superior à História, o sentido do mito existe na utilização repetitiva por grupos sociais que fundam sua unidade através de ritos que reencenam, de maneira intangível, o acontecimento da origem (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 251).
Escrevendo seus mitos, os índios assumem justamente sua dimensão estética, entendida como vontade de fazer obra de arte (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 254).

Texto de Érika Bergamasco Guessei

O início do livro e as três primeiras narrativas estão disponíveis no site:
http://pt.scribd.com/doc/36166735/Shenipabu-Miyui-Historia-dos-antigos-Incompleto

terça-feira, 10 de setembro de 2013

A "CIVILIZAÇÃO" DOS ÍNDIOS



O Tratado de Limites de Madri, em 1750, desencadeou uma série de ações do governo luso em relação a seu Reino. Até o Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, sucederam-se fatos importantes que transformaram as feições de uma parcela do Reino português: o território do Brasil. Como se sabe, esses limites cronológicos compreenderam o reinado de D. José I e a ação de seu Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino, o discutidíssimo Sebastião José de Carvalho e Melo, o Conde de Oeiras, depois Marquês de Pombal. Este procurou desenvolver um programa de reorganização econômica, social, administrativa, judicial e, sobretudo, política de Portugal e suas conquistas. Foi Pombal quem estendeu essas ações para fixar as fronteiras brasileiras e manter a unidade do Vice-Reino.

Assim, pode-se citar, entre muitas outras ações, o levantamento cartográfico e formação de comissões de limites, criação do Tribunal da Relação no Rio de Janeiro, organização de capitanias subalternas ao Grão-Pará e Maranhão, sediando o governo em Belém, criação da Capitania de São José do Rio Negro (Amazonas) com resgate de índios, incorporação, por sequestro ou compra, de outras capitanias, criação da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, criação da Companhia de Pesca da Baleia, abertura de caminhos para o comércio, expulsão dos jesuítas, recriação da Aula de Engenharia do Pará, mudança da capital para o Rio de Janeiro com a elevação do Brasil a Vice-Reino, recenseamentos, visando o conhecimento real de habitantes e quantidade de homens válidos ao Serviço Real, criação de comarcas e ouvidorias, bem como de tropas regulares, auxiliares de milícia e reestruturação das ordenanças com a extinção da Companhia de Privilegiados da Nobreza, construção de fortalezas, melhoria de técnica agrícola - como uso de estrume e arado -, importação de negros para a região Norte e proibição de sua saída. Para solidificar tudo isso criou vilas e povoações.

Uma Carta, de 26 de janeiro de 1765, contendo as Instruções do então Conde de Oeiras, dirigida ao Vice-Rei de Estado do Brasil, Conde da Cunha, esclarecia uma das finalidades da política urbanizadora lusa. Por ela, a criação de vilas nas fazendas jesuíticas e aldeias dos índios, quanto em outros lugares que fossem tidos como próprios para essas fundações, a liberdade dos índios e o desenvolvimento do comércio entre eles, seria o melhor meio de resistir aos jesuítas cuja maior força e riqueza, na América, tinha sido o domínio completo da civilização dos mesmos índios. Por isso, D. José I ordenava que se estabelecessem “povoações civis” de índios livres. Instalados em núcleos urbanos, os índios deixariam de se mostrar como inimigos dos portugueses e dos espanhóis e não “assaltariam” os caminhos, as cidades, vilas e aldeias das duas nações. Na realidade os portugueses estavam perdendo território para os espanhóis, em especial nas regiões que, até a sua expulsão, estavam sob o domínio dos jesuítas.

Ao libertar os índios - Leis de 6 e 7 de junho de 1755 e Alvará de 8 de maio de 1758 -, a Metrópole ordenou a elevação de antigas aldeias e fazendas, as maiores a vilas e as menores a aldeias, lugares ou povoações, entregando sua administração aos índios com o intuito de, na prática, civilizá-los, educá-los, obrigá-los a falar a língua portuguesa. A intenção era fixa-los e integrá-los na sociedade dos brancos num núcleo urbano, para povoa-lo e, com isso, defender o território. Visava-se fortificar a Monarquia, libertando os índios. Essa liberdade, no entanto, baseava-se nas teorias de Jean-Jacques Rousseau, sobre a origem e fundamento da desigualdade entre os homens, de acordo com a dissertação apresentada por ele na Academia de Dijon, em 1755.

A liberdade dos índios, portanto, ainda era fictícia, pois eles estavam sujeitos ao Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão, estabelecido em 1758 (DIRETÓRIO, 1984, p. 85-126), que aplicava, entre os nativos, a prática corrente em alguns lugares da Europa, e de Portugal, estabelecida pelas Ordenações, pela qual os filhos órfãos de pais mecânicos, ou pais vivos dementes, deviam se dedicar aos ofícios mecânicos ou trabalhar a soldada. “O mesmo parece justo que se observe com os filhos de índios ainda que tenham pays vivos, porque por dementes e pródigos se reputam governados por Directores como seus tutores”.

Através desse documento foi dada a Lei de liberdade de comércio e de bens individuais aos índios, prometendo vantagens e prêmios para os brancos que casassem com índias. Foi proibido chamar a seus filhos de caboclos, além de igualá-los em tudo, teoricamente, aos outros vassalos brancos. Até que os indígenas fossem capazes de se inserir na sociedade civilizada, deviam ter um Diretor, em cada aldeia ou povoação, eleito na comunidade, com funções mais de orientação e instrução do que de administração. Bondade e brandura foram insistentemente recomendadas no trato com os índios.

O principal interesse se centrou nas regiões Norte e Sul, onde a questão de limites era mais frágil. Para o Norte foi mandado, como Ministro Plenipotenciário, para execução do tratado de demarcação de limites, iniciada a partir de 1754, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio-irmão de Pombal que, desde logo, começou a informar a Metrópole sobre os pormenores da verdadeira situação em que se encontrava a região duzentos e cinqüenta anos depois do descobrimento do Brasil.

Com a implantação desse projeto, na realidade, a Metrópole seguia as sugestões de Mendonça Furtado que mostrara, através de cartas desde 1752, vontade de realizá-lo. Uma resposta do Conde de Oeiras a seu irmão, em carta de 14 de março de 1755, dizia que Sua Majestade resolvera “reduzir as Aldeyas, e Fazendas a Villas, e Povoações Civis” e tomara “a mesma Rezolução a Respeito da liberdade dos Índios na conformidade de certa Doutrina de Solorzano”, permanecendo ainda, “em segredo esse negócio” até que próprio Mendonça Furtado se recolhesse ao Pará depois da viagem pela região amazônica.

Para cada uma das regiões do Brasil foram enviadas instruções para a criação das vilas e reorganização da administração, bem como homens de pulso forte para garantir o projeto, quer para o cargo de Governador e Capitão General, como o Morgado de Mateus em São Paulo, quanto para Ouvidores, Juizes de Fora, etc. Essas instruções, a depender da região, repetia alguns capítulos do Diretório do Grão-Pará e Maranhão e, em outras, tinham determinações específicas a serem observadas. Dentre essas instruções é interessante destacar a documentação relativa à capitania de Pernambuco, pois contêm, em anexo, uma Cartilha, que se transcreve mais adiante. Em todas as instruções havia a recomendação quanto à obrigatoriedade do uso da língua portuguesa nos novos núcleos.

Essas instruções, de 1759, rezavam no item:

(fl. 3v) “Sempre foi maxima inalteravel entre as Nasçoens, que conquistarão novos dominios introduzir logo nos povos novamente Conquistados o seu proprio Idioma por ser indisputavel hum dos meyos mais efficazes para os apartar das rusticas barbaridades de seus antigos costumes, e ter mostrado a experiencia, que ao mesmo passo, que se introduz nelle o uso da lingoa do Principe, que os domina, selhes radica tambem o afecto, veneração, e obediencia; observando pois todas as Nasçoens polidas do orbe este prudente, e solido systema, nesta conquista sepracticou tanto pelo contrario, que só cuidarão os primeyros conquistadores de estabelecer nella o uso da lingoa a que chamão geral, invenção verdadeiramente diabólica para que privados os Indios de todos os meyos, que os podião civilizar, permanecesem na rustica, e barbara sugeição em que até agora seconservão”.

No item 7:
“Para desterrar este perniciozo abuzo, serâ hum dos principaes cuidados dos Directores estabelecer nas suas respectivas v[il]as ou lugares uso da lingoa portugueza, não consentindo de modo algum, que os meninos, e meninaz, que pertencerem as (fl. 4) escollas, e todos aquelles indios, que forem capazes de instrucção nesta materia, uzem da lingoa propria das suas Naçoens, ou da chamada geral; mas unicamente da portugueza na forma que S. Mag[estad]e tem recommendado em repetidas ordens, que até agora se não observarão com total ruyna espiritual e temporal do Estado”.

No item 8:
“E como esta determinação hê a baze fundamental, haverâ em todas as villas, ou lugares duas escolas publicas, huá para rapazes, e outra para raparigas, nas quaes se insignarâ a douctrina christaá, ler, escrever, e contar na forma que sepratica em todas as das Naçoens civilizadas ensignandosse nas raparigas, alem da doutrina cristaã, a ler, escrever, fiar, fazer renda, costuras, e todos os mais menisterios proprios daquelle sexo”.

No item 9:
“Para subsistencia das sobreditas escollas haverâ hum mestre, e huã mestra, que devem ser pessoas dotadas de bons costumes prudencia, (fl. 4v) e capacidade, de sorte, que possão desempenhar as obrigaçoens dos seus empregos, as quaes se destinarâ o emolumento de meyo tustão por mês de cada descipulo, e meyo alqueire de farinha por anno na occazião da colheyta, pago pelos pays dos mesmos indios, ou pelas pessoas em cujo poder viverem concorrendo cada hum com a porção, que lhecompetir em dinheyro, ou effeitos, o que prezentemente se regula em attenção a grande mizeria e pobreza a que seachão reduzidos: no cazo porem de não haver nas villas, ou lugares pessoa alguá que possa ser mestra de meninas poderão estas ate a idade de nove annos ser instruidas na dos meninos, na qual se lhes ensignarâ o que a estes deyxo referido para que juntamente com as infaliveis verdades da nossa sagrada religião adquirirão com mayor felicidade o uso da lingoa portugueza”.

No item 12:
(fl. 6) “A classe dos mesmos abuzos não sepode duvidar, que pertença tambem o inalteravel costume, que sepracticava em todas as aldeas de não haver hum Só indio, que tivesse apelido, e de uzarem quaze todos de diferentes nomes dos que se lhespuzerão no baptismo, destinguindosse entre sy pelo de feras com que se denominão com escandalo geral no desprezo com que abração estes, e deixão aquelles de que verdadeyramente devem usar, e como de os terem, e conservarem sem apelido, sesegue haverem nas povoações muitas pessoas do mesmo nome sem qualidade que os destinga, de que se oregina confuzão, e falta de conhecimento necessario ao uso das gentes; terão grande cuidado os directorez de os fazer tractar debaixo dos que receberão no baptismo, dandolhes os apelidos pertencentes as familias portuguezas por ser moralmente certo, que todos os de (que) uzão os brancos, e mais pessoas que se achão civilizadas os procurão por meyos licitos, e virtuozos, para viverem e se tratarem a sua imitação”.

Outras instruções recomendavam, ainda, que todos os nomes das vilas criadas fossem de origem portuguesa.

Anexo a essas instruções encontra-se o modelo do (fl. 44) ‘Termo, que fazem os Directores para Satisfazerem as obrigaçoenz, que se lheencarregão.

"As (sic).......(em branco) dias do mez de.........(em branco) do anno de mil setecentos sincoenta e nove na secretaria deste governo em prezença do Ill[ustríssimo] e Exc[elentissi]mo S[e]n[ho]r Luiz Diogo Lobo da Sylva Governador e Capitam General destas Capitannias aonde veyo I. e F. nomiado o primeiro para Director da Nova V[il]a de tal, e o segundo para M[estr]e da eschóla da mesma aonde pelo d[it]o Governador lhe foi dado o Directorio, porque os devião regular, e cartilha para a instrucção dos meninos, encarregandolhez, que bem e verdadeiramente (fl. 44v) mente procuracem com toda a inteyreza cada hum na parte que lhetoca seguir em tudo o refferido Directorio, e cartilha gradualmente segundo a natureza doz habitadores a que sederegião as refferidas instrucçoenz o permetissem fosse conducente a civilizaloz como sepertende, para o que lheslembrava Ser percizo obrigalloz quanto fosse justo pelos meyos da brandura, e suavidade, a fim de que ajudados com a sua doutrina vencão as trevas da ignorancia em que seachão embolvidos, (sic) para com o conhecimento da razão, e do beneficio, que Se lhes seguia venhão com facelidade a não lheser custozo os justos meyos, que selhe offerecião para a sua mayor utilidade temporal, e espiritual, e que ellez Director, o mestre tem a mayor gloria, e devem trabalhar com osseu exemplo a conseguila na certeza de ser o meyo mais efficaz para senão afastarem da nova regularidade, que pelos seuz empregos ficão na obrigação de lhes propôr; e de como assim o prometerão executar, e de não tirar dos ditos habitadores directa, ou indirectamente couza alguá, alem do que pelo mencionado Directorio lhe hé premetido, que só receberão emq[uan]to S[ua] Mag[estad]e Fidelissima houver por bem a sua observancia, e concorrer quanto couber a fazer (fl. 45) interter entre ellez as leys do podôr, e honestidade embaraçando toda a liberdade, que possa ser de maó exempLo a conservação desta tão esencial virtude seobrigarão na parte, que lhes hé licita, e permetida, como a tudo o mais que fica refferido, o que tudo jurão não faltar de observar na forma expressada, de que mandey fazer este termo, que os mesmos asignarão para a todo o tempo constar onde necessario for”.

Outro documento contém a citada Cartilha que se reproduz na seção documentos da Revista HISTEDBR on-line. É uma cartilha simplificada, destinada a facilitar o ensino aos índios, não esquecendo as instruções da doutrina cristã, misturadas em meio às regras gramaticais. Obedecendo instruções, adotava-se o “livro de Andrade”, isto é, de Manoel de Andrade Figueiredo (1722, 156p), escrita em 1718 e publicada, depois das devidas licenças, em 1722. A Cartilha foi feita por um padre francês, cujo nome não é declarado, mandada elaborar pelo Governador de Pernambuco.

Por ela tem-se idéia de como era o ensino ministrado aos meninos índios, bem como as noções da doutrina cristã. Essa cartilha serve, não só para esse conhecimento, quanto é excelente documento para estudos lingüísticos.

Ao contrário do que se possa pensar a alfabetização dos índios foi colocada em prática, existindo vários relatos, especialmente dos Ouvidores, dando notícias das condições em que se encontravam os meninos e meninas, tanto aqueles que frequentavam as aulas, quanto os que trabalhavam como oficiais mecânicos.

É certo que houve a instalação tardia das Aulas Régias, entretanto, as notícias havidas de diversas regiões do Brasil davam conta de que a tarefa de instruir os meninos e meninas estava se cumprindo, não da forma programada, mas de maneira, muitas vezes, improvisada, devido as circunstâncias de cada vila, povoação, aldeia ou lugar.

O segundo ouvidor de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, no processo de civilizar os índios, tirava-os ainda pequenos de seus pais para afastá-los do que chamava “quase congenitos vicios” e para que esquecessem a língua materna. Em 1771 dizia: “ha escola em que aprendem a ler e escrever 80 meninos e por acaso não há mestre oficial de oficio mecanico que deixe de ter algum por aprendiz e dos maiores os mais rusticos a soldada”.

Em outros relatos desse ano e do ano seguinte, o referido Ouvidor torna a falar no processo civilizatório, ressaltando os resultados positivos que vinha obtendo. Em 1773 escrevia que os mais velhos usavam ainda da língua bárbara, “reprimindo-lha no publico o temor do castigo, mas praticando-a sempre no particular e maiormente com os filhos, que tem na sua companhia, porque dos que lhes tirei para a dos mestres e amos, tanto mais pequenos, tanto mais se veem esquecidos dela”. E continuava: “Serão perto de 400 os que atualmente existem de um e outro sexo distribuidos a oficios e soldada pelas casas dos mesmos brancos”. No ano seguinte comunicava que grande parte dos índios já andava de calção, morava em casas cobertas de telhas e providas de móveis como a dos brancos, e que alguns dos que se tinham iniciado no aprendizado de ofícios mecânicos chegavam já a “trabalhar por fora independentes dos mestres”. Existem no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, conjuntos de pequenas folhas de papéis, com exercícios caligráficos de índios alunos do Amazonas e de São Paulo, junto com finos fios de algodão e amostras de rendas.

Em outros núcleos, por vezes, especialmente na região amazônica, foram forçados a se reunir índios de etnias diversas e que, em consequência, falavam dialetos diferentes. Em alguns casos, a língua portuguesa serviu para unificar esses povoadores. O mais frequente, no entanto, nesse caso, foi a presença de um intérprete – o língua – que podia ser de origem a mais diversa possível: índio fugido ou civilizado, negro fugido, soldado, letrado, etc., etc.

Texto de Maria Helena Ochi Flexor