sábado, 27 de julho de 2013

AÓNIKENK, os aborígenes da Patagônia


Os AÓNIKENK, também chamados de TEHUELCHE ou PATAGÕES, viviam num território que ia desde o rio Santa Cruz, na atual Argentina, até o Estreito de Magalhães. Pensa-se que esta étnica chegou na área em torno de 12 mil anos a.C.; de acordo com alguns pesquisadores a palavra "Aonikenk" significa "povo do sul".

Os Aónikenk eram nômades, caçadores-coletores que se deslocaram das estepes da Patagônia em busca de animais para se alimentar. Depois que conheceram o cavalo, através dos europeus, tornaram-se grandes montadores, adotando-o como meio de transporte.

Diz-se que na primeira expedição de Fernão de Magalhães, em 1520, houve um encontro entre ele e um aborígene astral. Este teria sido um Aonikenk, que Antonio Pigafetta descreveu corpulento e de grande porte. Daí o nome seria também patagônios.

A estatura média dos Aónikenk era 1.80m. Homens e mulheres eram robustos, grandes, rosto grande, lábios grossos, nariz curto e largo, olhos pequenos e escuros. Eles tinham pele morena, cabelos pretos, lisos e longos até os ombros. Pintavam seus rostos com linhas vermelhas, pretas e amarelas, e cobriam o resto do corpo com uma mistura de gordura e terra. Além disso, às vezes faziam tatuagens no rosto e nos braços, com pequenos cortes na pele fina e colorindo cinza e terra.

As tribos Aónikenk eram compostas por várias famílias. A autoridade era exercida pelo homem mais velho, ao qual deviam obediência a mulher, seus filhos, seus genros e suas noras.

Ao chegar a idade de casar-se, meninas pintaram seus rostos com uma linha traçada a partir do centro do nariz para os ouvidos e de lá até ao queixo. Desta forma manifestaram o seu interesse em casamento. O pretendente "comprava" sua esposa oferecendo seu pai peles de guanaco, sacos de penas de avestruz ou uma certa quantidade de tempo de caça. O casamento era consumado quando o pai entregava a sua filha para o pretendente que lhe pagava o dote e este levava a noiva para seu novo lar. Dali em diante, Posteriormente, a mulher passava a fazer parte da família do marido.

A divisão sexual do trabalho era um tanto irregular: a principal função do homem era caçar e trazer comida para casa, enquanto a mulher cozinhava, cuidava das crianças, preparava as peles para vestuário, coletava a lenha, procurava água, armava, desarmava e carregava a casa.

A língua Aónikenk abunda em consoantes, sobretudo a letra “K”, como por exemplo:
Aiken: localização ou paradeiro
Kon-Aiken: lugar dos ventos
Kaj: capa
Kau: Toldo
Shotel-Aiken: lugar das flechas
Sus: roupa

Os nativos nikenk usavam pele de guanaco para confeccionar suas roupas, colocando o pelo para dentro e o couro para fora, sendo pintado com linhas em zig-zag nas cores vermelha, amarelho e preto. Os homens usavam grandes capas, chamadas kaj ou quillango, sem amarras; era apenas cruzada no peito, segurando com as mãos. As mulheres, por sua vez, se cobriam com um manto longo, que ajustavam sobre os ombros com um broche de metal, normalmente de prata; por debaixo, usavam um longo camisão sem mangas. Homens e mulheres se enfeitavam com anéis, alfinetes, colares e tiaras de prata, couro, conchas, ossos ou penas, e alguns homens perfuravam o nariz para colocar argolas. Como calçado, usavam botas ou sapatos de pele de guanaco ou raposa.

Por ser um povo nômade, as casas dos Aonikenk eram armações leves coberto de peles, fácil de montar e desmontar, chavadas kau. A entrada estava aberta e protegida do vento com um pedaço de pele que funcionava como porta. O interior era dividido por peles penduradas, criando assim vários espaços. A mulher escolhia o lugar de instalação da casa, ficando no mesmo local por várias semanas ou meses. Estas paradas eram chamados de aiken.

O principal alimento era a carne guanaco e de avestruz, assada sobre brasas. Dos avestruzes, além da carne, usavam a pele, as plumas, os ossos e os ovos. Depois que conheceram o cavalo, o incorporaram também à sua dieta. Quase não comiam peixe, legumes e frutas, qua que nas estepes da Patagônia não é fácil encontrar esses produtos e os Aonikenk não os consideravam essenciais. Sin embargo, fueron grandes consumidores de “yerba-mate” y tabaco. No entanto, eles eram grandes consumidores de erva-mate e tabaco.

Antes da chegada dos europeus, suas armas eram o arco e flecha, mas depois de conhecerem o cavalo, suas armas – assim como seus instrumentos de caça – mudaram. Usavam de preferência lanças, laços e boleaderas – que eram pequenos sacos de couro, do tamanho de um ovo, cheios de seixos ou pedras e amarrado a longas cordas. Cavalgando a grande velocidade, lançavam as. apontando para as pernas dos guanacos e emas. Também usavam essas armas contra o inimigo, em combate. Depois do contato com os colonizadores, conheceram os sabres, catanas e até mesmo armas de fogo.

Os Aonikenk foram hábeis artesãos de couro. Produziam selas, correias e laços, além de todos os tipos de equipamentos para o cavalo, incorporando ferramentas metálicas como cinzéis, limas e machados que conseguiram com os colonizadores.

Os Aonikenk eram, em geral, as pessoas alegres, que se divertiam celebrando festivais e cerimônias em que dançavam, bebiam e comiam até cair. Essas festas eram chamadas de camarucos. Uma das danças típicas era a "dança das avestruzes", interpretado apenas por homens, enquanto as mulheres acompanhavam cantando em volta de uma fogueira. Pintavam seus corpos brancos, se vestiam com uma tanga e na cabeça usando um cocar de penas de avestruz. No peito, se cruzava uma larga faixa com sinos, para marcar o ritmo da música.

Um dos instrumentos típicos, chamado kool, era um pequeno arco de madeira com cordas de crina de cavalo, tocado como se fosse um violino, usando um osso de guanaco ou de ema como haste. Ele jogou como um violino com guanaco osso ou ema. Este osso também podia ser tocado como uma flauta.

Para os Aónikenk, existiam seres superiores que governavam tudo o que acontecia na terra e no universo. existia tudo que rege Aonikenk que aconteceu na Terra e do universo. Um dos mais importantes foi a ELAL, criador da vida, dos animais e do mundo natural. Elal os protegia de GUALICHO, um ser malvado, que causa as desgraças que acontecem às pessoas e, por isso, a quem os Aonikenk temiam.

Acreditavam na vida após a morte, por isso, quando morriam, envolviam o defunto em uma camada de pele guanaco e o enterravam junto a seu cavalo, para acompanhá-lo em sua jornada para o outro mundo. Podiam sacrificar vários cavalos, enterrados separadamente, se a viagem fosse muito longa. Junto do falecido colocavam, também, seus pertences valiosos e comida para a viagem.

Os Aonikenk também sofreram o impacto da cultura europeia. No entanto, embora tenham incorporado com certa facilidade os novos hábitos, não resistiram às doenças contagiosas, como a varíola e a tuberculose. Com a criação da fronteira entre Chile e Argentina e a colonização daquele território pelos europeus, os Aonikenk perderam suas terras e não conseguiram continuar se movendo livremente através dos pampas. Finalmente, os descendentes de Aónikenk que existiam no Chile em meados do século XX, se casaram com colonos ou membros de outros grupos étnicos e, hoje, existe apenas a memória de alguns de seus costumes e o nome em alguns lugares, que evocam a língua.

Baseado em texto de Nuestro Tiempo.

MINUANO, povo pampeiro


Os Minuano chegaram a ser um grande povo de índios cavalheiros, tão respeitado e temido como os Charrua. Em princípios do século XVIII, ocupavam grandes áreas do sul, desde a Província Uruguaia nos confins da lagoas Mangueira e Mirim, no extremo meridional do Rio Grande do Sul.

Esses famosos ginetes acabaram habitando as regiões compreendidas entre os atuais municípios de Uruguaiana, Quarai, Santana de Livramento, Alegrete, Rosário do Sul e São Gabriel. Nesse último, eles tinham suas toldarias, junto ao cerro do Batovi e às margens do Rio Cacequi. Sua influencia na formação do gaúcho é incontestável. Deles, muitos hábitos e costumes são conservados na tradição campeira gaúcha.

Foram esses índios que mais se identificaram com os portugueses desde os primeiros contatos. Vítimas das pestes e das guerras de fronteira, ficaram reduzidos a toldarias encontradas na Serra do Caverá, nos campos do Jarau, em torno do Batovi e onde está hoje o distrito de Azevedo Sodré, município de São Gabriel.

Em 13 de março de 1787, uma terça-feira, o coronel José Saldanha encontrou-os nas cabeceiras do Cacequi. Descreveu-os: “No acampamento de 13 de março, fomos visitados pela primeira vez pelos índios minuanos. Eles têm as ventas do nariz e as maças do rosto intumescidas, como os demais. São corpulentos e bem feitos; as mulheres são quase todas de meia estatura; as demais feições são iguais às do americano. Seus cabelos são longos e eriçados. Cobrem-se pelas costas até os calcanhares, com os caiapis (capa) feito de couro descarnado e sovado. Usam-no com o carnal para fora, atados com um tento por cima do ombro, e rematado no pescoço. Vestem-se com uma tanga ou chiripá de pano de algodão e não dispensavam as boleadeiras que traziam presas à cintura. Alguns deles trazem os cabelos e a cabeça atados com um pequeno e sujo lenço (vincha)”.

As moradas dos índios eram chamadas de toldos e, quando em grupamento, de toldaria. A mulher era muito dedicada ao marido. Ela juntava lenha, fazia fogo, preparava o mate e o churrasco e encilhava o cavalo, quando tinha arreios, geralmente só usados por caciques. Félix de Azara, descrevendo esses índios, disse: “A mulher minuana, como a charrua, cata piolhos e pulgas com afeição e gosto, prendendo-os na ponta da língua, para depois mastigá-los e comê-los com prazer”.

José Saldanha afirma que foram eles que inventaram as boleadeiras e o laço, “instrumentos comuns e necessários aos campeiros que estes campos vadeiam (...). Com esses, apanham no campo várias éguas, potros bravios e também cavalos mansos”.

O peão e o homem do campo dos nossos dias têm muito em comum com certos usos e costumes próprios dos Minuano, o que pode nos levar a crer que esse tipo de ginete é verdadeiramente o protótipo do gaúcho rio-grandense. O uso da faca à cintura é bem característica dos Minuano: “A faca flamenga – escreveu Saldanha – com bainha de couro cru, sempre trazem entalada entre a tarja de algodão e a cintura pela parte das costas”. Cita também o poncho bichará, tecido de lã e listrado de várias cores. Outros hábitos bem acentuados que eles descendem estão bem vivos nos nossos costumes: acocorar-se à beira de casa, chupar em tragos longos e espaçados o chimarão, guardar o toco do cigarro atrás da orelha, cuspir com o cigarro no canto da boca, assar carne no espeto de pau, conduzir as boleadeiras atadas na cintura, o laço nos tentos dos arreios, o pala bichará no pescoço, gritar batendo com a mão na boca, usar a vincha na cabeça e beber cachaça no bico da garrafa, que se fizeram tão costumeiros. Os Minuano se assemelhavam muito aos Charrua em certos aspectos. Azara, que viveu entre eles, diz: “Se diferenciavam principalmente no idioma em todo diferente. São mais baixos, mais descarnados, tristes e sombrios e menos espirituais”.

Os índios Minuan, vulgo Minuano, eram cavaleiros, sabiam amansar bem os cavalos e, na paz como na guerra, sabiam utilizar-se deles perfeitamente: era indiferente andarem, ora montados, ora deitados nos dorsos dos cavalos e muitas vezes passavam a ocultar-se debaixo do animal. Facilmente surpreendiam o inimigo, que não os distinguia de simples manadas de animais cavalares pastando.

Os Minuano, sendo nômade, usavam casas ambulantes cuja coberta era de esteira de caraguatá ou de taboa e cada tribo ou toldo não passavam de 50 famílias, mais ou menos, juntando-se as tribos da mesma nação, em tempo de guerra, de modo a constituírem forças numerosas, que combatiam com flecha, lança, bolas e funda. Segundo a tradição, até os anos de 1830 a 1835, ainda existiam algum desses grupos nômades de Minuanos, vagando pelas campinas sul-rio-grandenses alimentando-se de carne de gado vacum, de cavalo, de veado e de outras caças, e de avestruz, de que também comiam os ovos. E nessas épocas, nas margens dos rios Cacequi e Ibicuí, viviam alguns toldos dos ditos índios Minuano.

Embora falassem língua diferente do guarani, nem por isso deixavam de sabê-lo, como os Tapes que, segundo a expressão do padre Teschauer, se “guaranizaram”. Tinham eles necessidade de saber o guarani, para entenderem-se com os padres jesuítas das Missões e com os guaranis destas, pois negociavam com eles penas de avestruz, peles e todos os produtos indígenas estimados na Europa, os quais eram exportados pelos ditos padres. Como o tupi no norte, o guarani no sul era a língua geral.

Os Minuano preferiam andar pelas campinas, a viver nos matos. Faziam as suas correrias na guerra e na caça, nos lugares mais descampados, e gostavam de parar nas alturas, nos cumes dos serros e das coxilhas, para dominarem esse mimoso tapete verde que forma os campos sul-rio-grandenses e os platinos, que são a continuação dos primeiros. No cimo das coxilhas e dos serros, os Minuano, montando nos seus cabayús, habilmente amansados, sentiam-se alegres, afrontando intempéries e parecendo desafiarem as iras do vento pampeiro e o rigor do frio causado pelo do nome dos últimos , isto é – o minuano. 

Observando as pessoas presentes àquele fato, digno de admiração do quanto é capaz o exercício que leva os selvagens no arremesso da dita arma, o general que lhe dirigirá a palavra, desde o princípio da cena, entusiasmou-se muitíssimo por esse fato e libertando-o, faz-lhe presentes de fumo e aguardente, gêneros estes pelos Charruas muito estimados.

Os Minuano, e em quase todas as nações indígenas, os homens não cortavam os cabelos, conservavam-nos compridos como os das mulheres e trançados. Usavam na cabeça um grande ñhanduá paraguá ou cocar de plumas de ñnandú (avestruz) e na cintura uma espécie de cinta das ditas plumas habilmente tramada na parte superior, caindo para a parte de baixo, até os joelhos. Com plumas menores, faziam umas espécies de perneiras, nas quais ficavam para a parte de cima as extremidades das mesmas plumas. Esse trajes eram, nas festas, ornados com penas de diversas cores. E além deles usavam também os caipis de couro de quadrúpedes bem sovados, ou amaciados e habilmente pintados, com que cobriam a parte superior do corpo.

Baseado em texto de João Cezimbra Jacques


sexta-feira, 26 de julho de 2013

NÃO SOMOS CHILENOS, SOMOS MAPUCHES!

Não somos chilenos, somos mapuches!”. Essa é uma das frases repetida por Matías Catrileo, uma das lideranças mapuches presente em inúmeros vídeos que circularam nacionalmente no Chile nos últimos tempos. O pano-de-fundo: o conflito entre as reivindicações mapuches e os interesses políticos e econômicos que objetivavam desarticulá-los, seja pela política de criminalização exercida por meio do Estado, seja, no limite, pela sua eliminação política e cultural.

As redes de televisão chilenas, em geral, acabaram por reduzir as imagens transmitidas a discursos binários e marcados pela força do estigma: os mapuches de um lado, sob o discurso da periculosidade, e a polícia do outro, sob a necessidade de melhor organizar-se para debelar os entes perigosos.

Matías Catrileo foi mais um a cair pela força dos Carabineros de Chile, a polícia nacional, nos últimos anos. De toda a forma, trata-se de uma frase potente: a sua força torna-se reveladora da essência do conflito que se instaurou no Chile entre o Estado (muitas vezes representando os interesses de empresas transnacionais) e a Nação Mapuche.

Este é um conflito que não se inicia com a independência nacional, em 1818, mas que, no entanto, se agudiza a partir daí gestando não apenas a redução territorial do povo mapuche, como também um processo brutal de criminalização – o movimento que separou o Chile de Espanha acabou por permitir que a elite emergente deixasse o país à mercê do imperialismo inglês. Mas foi sensivelmente desde a década de 1990 que a tecnocracia estatal articulou o legado colonial da perspectiva sobre os mapuches, os interesses dos filhos das elites que se pronunciavam após a independência e a política econômica que resultou na entrega progressiva ao neoliberalismo.

Apesar das nuances nesta conflitual relação dos mapuches com o Estado desde tempos mais distantes, é justamente nessa década, em meados de 1990, que a distinção mais abrupta do movimento mapuche vem à tona em resposta à opressão estatal: cresce fortemente a reivindicação pelo reconhecimento das especificidades socioculturais mapuches face ao restante da comunidade chilena. Se por um lado o domínio do Estado buscava atingir a sua totalidade, é justamente da tensão deste processo que o movimento mapuche emerge com discursos bem mais elaborados, utilizando-se da sua identidade.

A ligação entre identidade e terra é visceral na cosmovisão mapuche, no entendimento de si e da sua comunidade, do próprio wallmapu, o País Mapuche. Mapu significa terra, enquanto che significa pessoa. Há aqui uma ligação indissociável da identidade coletiva e individual com o meio: a pessoa, o que ela é (e representa), está intimamente ligado à terra. O mapuche é literalmente a “gente-da-terra”, ele complementa a terra – o seu território – e a terra o adorna reflexivamente de significados para que sua própria existência seja preenchida de sentido. O indivíduo nasce da sua relação com o meio, com a biodiversidade. O segredo desta ecologia assenta em três conceitos que se entrelaçam em espírito na relação humano-natureza: bem-estar, qualidade de vida e lei natural/auto-regulação da natureza.


A ecologia mapuche, como nos informa J., jovem liderança mapuche, resume-se ao entrelaçar dos conceitos de vida e terra: “as águas e árvores são meus irmãos, como você. Defender a [nossa] cultura está ligado à terra, ao nosso lugar, à nossa forma de ver o mundo”. Há um leque de inconformidades transversais à relação entre o povo mapuche e o povo chileno. Os valores socialmente atribuídos à construção da pessoa e presentes na sua relação com o meio são permeados de lógicas aparentemente inconciliáveis.

Enquanto o mapuche busca sua harmonia com o meio considerando a si próprio como sua parte dependente, os winkas (ocidentais; literalmente significa "novos incas") são providos pelas reminiscências do iluminismo, resultando na apreensão da natureza como algo inerte, pronto a ser explorada e domada pelas técnicas humanas de produção. J. acredita que esta incompreensão é fruto da separação entre o humano e a natureza nos winkas: “Nosso sistema… explica o [ser-]mapuche, mas não o winka… A natureza do [nosso] espírito é distinta, é feita de outra coisa e obedece a outra lógica. Somos mais espirituais, tudo está conectado; o winka vê a posse, divide as coisas e parece não estar conectado a elas”.

Logo, o movimento mapuche reclama não somente a reconstrução da sua identidade há muito desvalorizada e corroída pelo processo colonial, mas remete à vontade de criação de uma identidade coletiva que face ao projeto de Nação chileno passa a reafirmar-se pelo questionamento do outro estabelecido: da sociedade chilena e do próprio Estado.

Não sem razão, Bebber Ríos aponta para a década de 1990 como um marco referencial na modificação da luta mapuche, onde não apenas o território será reivindicado, mas a própria necessidade de se afirmar a sua autonomia, ou wallmapu tañi kizungünewün (autogobierno del País Mapuche), em relação ao Estado Chileno.

Esse reafirmar se expressa na busca da recuperação e na (re)sedimentação identitária da Nação Mapuche. Dessa forma, a década de noventa introduz novos desafios para a luta, pois “se empieza a plantear el tema de la autonomia política y territorial del pueblo mapuche, y la exigencia de ser reconocidos como un “otro” distinto del resto de la sociedad chilena, con derechos que surgen de su particularidad”.

Essa diferença de visão, onde a natureza possui o direito a ser respeitada, onde a relação homem-natureza dá-se em harmonia, colide com os interesses das grandes empresas extrativistas e florestais, que veem no território mapuche grandes acúmulos de reservas naturais e, em especial, o potencial de exploração dos seus rios, de fontes energéticas e das suas reservas madeireiras. É no resultado do processo de estigmatização da cosmovisão mapuches que reside a perfeita desculpa para o estabelecimento das atividades extrativistas das transnacionais: face à representação do atraso, impedimento à modernização, chegam novas técnicas industriais sinalizando o desenvolvimento econômico e social de regiões rurais e/ou menos urbanizadas no país, com falta de ofertas e recursos de manufaturas e de mão-de-obra. Deste processo ideológico deriva o apoio dos populares nas cidades espalhadas pelo wallmapu, os quais almejam beneficiar das promessas do desenvolvimento.

De fato, não apenas os mapuches, mas muitas outras comunidades indígenas na América Latina estão em territórios de interesse das empresas transnacionais, o que tem acirrado conflitos e posto em causa as garantias dos direitos dos povos originários. Sob esta perspectiva foi aprovada pela ONU, em setembro de 2007, a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas.

A percepção dos movimentos indígenas da necessidade de se buscar efetivação dos seus direitos e, acima de tudo, da autonomia dos seus territórios é patente. Um mês após a aprovação da Declaração pela ONU realizou-se, entre os dias 10 e 12 de outubro, o Encontro Mundial dos Povos Indígenas nas cidades de La Paz, Tiwanaku e Chimoré, na Bolívia. Dentre os objetivos estava o de se discutir a autonomia das terras indígenas como forma de proteção destas diante do modelo econômico global.

Esse encontro estabeleceu parâmetros de organização para os povos originários, e foi encerrado com a divulgação de uma Carta que estabelece 14 pontos comuns de reivindicação aos Estados Nacionais. Tal Carta apresenta clareza com relação ao atual estágio de gestão do capitalismo neoliberal e as consequências locais do seu modelo global, assim como complexifica esta questão aos antagonismos conceituais acerca da natureza e das diferentes formas de uso da terra entre a exploração em larga escala e o modo de vida dos povos originários:

Que a 515 años de opresión y dominación, aquí estamos, no han podido eliminarnos. Hemos enfrentado y resistido a las políticas de etnocidio, genocidio, colonización, destrucción y saqueo. La imposición de sistemas económicos como el capitalismo, caracterizado por el intervencionismo, las guerras y los desastres socio-ambientales, sistema que continúa amenazando nuestros modos de vida como pueblos.

Que como consecuencia de la política neoliberal de dominación de la naturaleza, de la búsqueda de ganancia fácil de la concentración del capital en pocas manos y la irracional explotación de los recursos naturales, nuestra Madre Tierra está herida de muerte, mientras los pueblos indígenas seguimos siendo desalojados de nuestros territorios. El planeta se está recalentando. Estamos viviendo un cambio climático sin precedentes, donde los desastres socioambientales son cada vez más fuertes y más frecuentes, donde todos sin excepción somos afectados y afectadas.

Que nos asecha una gran crisis energética, donde la Era del Petróleo está por concluir, sin que hayamos encontrado una energía alternativa limpia que la pueda sustituir en lãs cantidades necesarias para mantener a esa civilización occidental que nos ha hecho totalmente dependiente de los hidrocarburos.

Que esta situación pueda ser una amenaza que nos dejará expuestos al peligro que lãs políticas neoliberales e imperialistas desaten guerras por las últimas gotas del llamado oro negro y el oro azul, pero también pueda darnos la oportunidad de hacer de este nuevo milenio un milenio de la vida, un milenio del equilibrio y la complementariedad, sin tener que abusar de energías que destruyen a la Madre Tierra.

Que tanto los recursos naturales como las tierras y territorios que habitamos son nuestros por historia, por nacimiento, por derecho y por siempre, por lo que la libre determinación sobre éstos es fundamental para poder mantener nuestra vida, ciencias, sabidurías, espiritualidad, organización, medicinas y soberanía alimentaría.

Seria esse novo patamar de conscientização dos interesses que as transnacionais possuem sobre seus territórios um grande potencializador para o processo de repressão por parte do Estado?

O revisar da história permite-nos melhor compreender as permanências das linhas abissais no atual cenário da luta mapuche. É daí, talvez, que as marcas das políticas coloniais desvelem os fenômenos mais recentes do aguçado interesse de exploração destes territórios por setores do Estado e do Capital transnacional. Faz-se pertinente, portanto, questionar o que se esta a passar no Chile de agora, mas igualmente o quê do passado acabou por semear a conflituosa relação do projeto de Nação chileno e dos arcaísmos que essencializam a Nação Mapuche, resultando na legitimação de uma repressão estatal que parece não ter fim.

Baseado em texto de Fernanda Maria Vieira, J. Flávio Ferreira

segunda-feira, 8 de julho de 2013

SINAIS DE ESPERANÇA


Nos dias atuais, se pode notar por toda América Latina e Caribe, um grande movimento de ascensão das lutas indígenas. Tem chamado a atenção do mundo inteiro, nos últimos anos, o fortalecimento das mobilizações no Equador, onde o movimento indígena foi capaz de enfrentar o governo com greves nacionais que pararam o país. Duas províncias são governadas atualmente por lideranças do movimento indígena, como a Província de Chimborazo, e já se pode sentir algo como um modo indígena de governar, através das assembléias comunais e da ampla participação da população na reorganização de todos os setores da vida social. Lembro aqui também a vitória do movimento indígena na Bolívia, que depois de séculos de resistência, conseguiu eleger, democraticamente, Evo Morales, um líder oriundo do campesinato indígena e que começa a redirecionar as prioridades das políticas nacionais, imprimindo um sentido de esperança e renovação da vida das populações marginalizadas daquele país. A proposta de uma Assembléia Constituinte para reformar a Constituição do país se insere nesse amplo processo de mudanças democráticas.

O grande desafio posto a teólogas e teólogos cristãos que refletem a partir das dores de parto da terra (Romanos 8.22) é considerar os povos indígenas não como fornecedores de ilustrações nem como objetos de estudo, senão como produtores de um saber que a modernidade e o avanço tecnológico nos arrebatou e que cremos poder recuperar.

Há três aspectos a partir das teologias indígenas que estão em sintonia direta com as teologias ecológicas e que são importantes para o nosso debate:

a) Poder ecológico – Os povos indígenas estão conscientes de sua história, sua identidade e seus projetos de vida. Estes projetos são diferentes da maioria dos projetos nacionais no continente americano. Eles demandam reconhecimento e o direito a essa diferença, sem que isto redunde em sua marginalização nas sociedades nacionais. Eles percebem que a pluralidade religiosa, linguística e cultural na qual vivem é mais ecológica do que a monocultura implantada pelos conquistadores europeus e continuada pelo sistema dominante do capitalismo financeiro e neoliberal contemporâneo. Os povos indígenas comparam sua reserva de alteridade como um jardim de flores, cujo perfume eles desejam compartilhar com as sociedades não-indígenas.

Esta sensibilidade ecológica demanda mais que boas intenções. Demanda uma nova visão da vida e do sentido da vida humana neste mundo que recebemos de nossos ancestrais. O poder ecológico nos conecta com o novo futuro e com nosso passado histórico e é o grande desafio no presente.

b) Interdependência – Para os povos indígenas tudo está interrelacionado e só pode ser entendido dentro dessa relação. Por exemplo, para o povo Kuna, do Panamá, o que chamamos fraternidade é traduzido por “cosmo-sentimento” e os outros seres da natureza estão ligados às pessoas por laços familiares. Cada coisa está relacionada com a outra, de modo que onde um elemento termina, outro começa.

Tal interdependência ocorre entre as pessoas, entre as pessoas e seus povos, e entre as pessoas e a própria natureza. Não é por acaso que certos povos indígenas usam – para expressar esta complementaridade – expressões de magnificência para designar os seres sobrenaturais. No caso dos Guarani, por exemplo, eles dizem: “Nosso Digno Pai – Nossa Digna Mãe”, ou “Deus Mãe-Pai – Deus Avô-Avó”, ou ainda “Excelsos Verdadeiros Pais das Palavras – Excelsas Verdadeiras Mães das Palavras”.

O mesmo se passa com a interrelacionalidade humana. A referência para os seres humanos que os especifica é masculino e feminino. Assim, os povos indígenas contemporâneos são chamados de “descendentes de mulheres e homens sábios” ou “filhos e filhas da Terra” ou ainda “filhos e filhas da boa palavra”. Esta linguagem reflete algo das relações humanas da comunidade e das suas experiências sociais e religiosas.

c) A centralidade da terra – Terra é vida e por causa disso a Terra está no centro da atenção, da preocupação, da celebração e reflexão de todos os povos indígenas. Um líder do povo Kulina, com o qual eu trabalhei muitos anos atrás na região Amazônia do norte do Brasil disse certa vez:

O sol nasce,
o sol se põe.
Kulina vai ficando velho,
mas a terra não.

A terra é sagrada, ela não pode ser comprada nem vendida, ela só pode ser possuída coletivamente. A expressão “Mãe Terra” não indica apenas o solo debaixo dos pés, mas tudo o que existe e sustenta a existência.

Por exemplo, em diferentes povos indígenas não existe o conceito de propriedade. Quando eu trabalhei com os Kulina junto com minha esposa Lori Altmann, apoiamos decididamente a luta dos Kulina pela terra como garantia de um território coletivo, uma terra demarcada oficialmente que permitisse a sobrevivência futura desse povo. No diálogo com as lideranças indígenas descobrimos algo muito interessante: na verdade, esta luta era uma concessão indígena diante da invasão que sofreram e dos perigos que representavam para eles a convivência com os brasileiros não indígenas. Pois, do seu ponto de vista, era um absurdo demarcar uma terra como território exclusivo ao modo de uma propriedade. Perguntei certa vez por que e a resposta foi a seguinte: Kulina toma conta da terra onde seus antepassados viveram! Tomar conta é como administrar, cuidar, proteger, modificar, mas jamais transformar em objeto de lucro ou negócio. Não existe propriedade para os indígenas! Cada comunidade tem o direito de cuidar e transitar por um determinado território necessário à sua sobrevivência e reprodução social. Fora disso, a terra não pertence a ninguém nem poderia ser objeto de compra e venda, por exemplo. Não se acuse aos indígenas de esquerdismo, socialismo ou coisa parecida. É que para sua mentalidade a terra é um dom do Criador e de seus antepassados e assim deveria ser para sempre.

Hoje em dia, muitas comunidades indígenas foram desterradas de seus lugares de origem, vivem acampadas nas periferias das cidades ou espalhadas ao longo das estradas. Outras se encontram como fugitivas em sua própria terra, pois suas aldeias são invadidas por latifúndios, usinas hidrelétricas, oleodutos, estradas, linhas elétricas de alta tensão, etc. Por isto, a luta pela terra é uma necessidade urgente. Uma liderança Quechua, Ángel María Ibadango, do Equador, disse que a luta pela terra é defender a vida de comunidades ameaçadas de extinção, é dar forma à insatisfação de Deus diante dos inimigos da terra. Por isso nos eventos da teologia índia se vem criticando duramente as instituições e organismos neoliberais. De fato, ressuscitados das ruínas da história, os povos indígenas desafiam a teologia cristã monocultural e dominadora a depor as armas de sua soberba e a começar a escutar mais e mais, a manter um diálogo na busca por mútua compreensão, pois só existe um novo futuro para eles se pudermos viver juntos num só mundo.

Cabe aqui uma observação prévia. Os povos indígenas não são isentos de fragilidades e limitações como toda sociedade humana. Na linguagem da teologia cristã, eles também conhecem o pecado. Há todo tipo de problemas que encontramos em outras sociedades como a inveja, a raiva, o preconceito, o desprezo pelo outro, a avareza. A questão não é, portanto, considerar estes povos como se vivessem na mais pura inocência. Além disso, há o fato de que existem moralidades diferenciadas entre o que se considera justo e verdadeiro para os povos indígenas e para a sociedade ocidental. A palavra, por exemplo, é sagrada para os povos indígenas. Já a propriedade, não. O que desejo enfatizar aqui é a sua contribuição para formas alternativas de vida e de construção de sentido para a existência humana neste mundo ameaçado em que vivemos hoje.

Solidariedade, reciprocidade, comunitariedade e interdependência, estas palavras podem ser conectadas com a utopia indígena da terra sem males dos Guarani da América do Sul.. Há duas interpretações dessa utopia. A primeira, fruto do medo provocado pela destruição da terra devido à invasão colonialista, fez com que muitos grupos caminhassem até o interior do continente, bem longe do mar, até chegar o momento de ascender às regiões celestes através dos rituais e cantos e alcançar a terra plena, onde não haverá nem morte, nem dor. Mas esta interpretação precisa ser corrigida por outra, mais realista e de acordo com as lutas indígenas atuais.

Para os Mbyá-Guarani contemporâneos a terra sem males é uma terra boa e fértil, um lugar guardado e protegido, onde existem plantas e animais que formam o mundo original dos Guarani e onde até as próprias pessoas experimentam condições favoráveis para uma vida em plenitude. Esta terra produz não apenas o alimento necessário à vida, mas também inspiração para rezar e cantar. E para alcançar esta terra os Guarani caminham. São povos que estão a caminho em busca de uma terra sem males. Vivem numa grande região entre o oeste e leste brasileiro, o leste do Paraguai e o noroeste da Argentina. Sua luta é reconquistar espaços de vida, restos de terras tradicionais em que possam desenvolver seu modo de ser específico. Buscam lugares protegidos pela legislação para que não se tornem mão-de-obra escrava de empreendimentos agrícolas baseados na monocultura da soja ou da cana de açúcar. Nessa terra as comunidades poderão viver a solidariedade que se realiza por meio da reciprocidade, do dar, receber e retribuir típico em muitos povos. Na comunidade se poderá viver a plenitude da interdependência que garante não só a sobrevivência, mas fundamentalmente a alegria de viver.

Um canto Mbyá-Guarani expressa esta demanda indígena como segue:

A nossa terra
Devolvam, devolvam
Nossa terra que vocês tomaram
Para que nós continuemos vivendo.

Como o afirmou a teóloga Graciela Chamorro, a terra sem males não é apenas um lugar teológico para os Guarani, é também o fato de “estar a caminho”. “Quem não põe o pé no caminho não pode pretender a terra sem males”, afirmam os sábios deste povo.

Conclui Chamorro: “Quem está no caminho e mantém minimamente o modo de ser guarani enfrentará provas, inclusive alimentícias. Somente aqueles que, apesar das provas, permaneceram fiéis, somente aos que protagonizaram um bom caminho [...], será revelado o rumo que devem seguir para chegar à terra sem males”.

Texto de Roberto Zwetsch

segunda-feira, 1 de julho de 2013

COLONIZAÇÃO HUMANA DA AMÉRICA DO SUL

A questão da temporalidade da ocupação humana no Brasil é um dos problemas mais antigos da arqueologia brasileira. Desde os trabalhos pioneiros de Peter W. Lund, há mais de 150 anos atrás, questões como a cronologia das primeiras ocupações humanas, a contemporaneidade dessas ocupações com uma megafauna hoje extinta, e as origens biológicas das primeiras populações têm sido investigadas e debatidas nos meios acadêmicos. Ainda hoje, não há um consenso quanto a estas questões. Asserções quanto a uma ocupação datada de pelo menos 35.000 anos foram feitas para o sítio arqueológico Pedra Furada localizado na região de caatinga do nordeste brasileiro, no estado do Piauí. Controvérsias quanto à natureza humana de possíveis artefatos líticos, quanto à natureza das amostras de carvão datadas e a associação destas amostras com o material lítico, e quanto a problemas estratigráficos e tafonômicos – isto é, formação do sítio arqueológico – são questões ainda não resolvidas. Existe na realidade um problema intrínseco com o material arqueológico e o contexto em que este foi encontrado em Pedra Furada, de tal maneira que mesmo que fossem encontradas, no futuro, evidências indiscutíveis de uma ocupação humana na América há mais de 35.000 anos, ainda assim elas não iriam validar os achados de Pedra Furada.


Evidências bem documentadas da ocupação humana no Brasil datam do final do Pleistoceno, com as datações radiocarbônicas mais antigas atingindo cerca de 11.000 AP (antes do presente). Apesar de que mesmo essas datações necessitam de um melhor refinamento cronológico, elas têm tido uma maior aceitação nos últimos anos por parte da comunidade acadêmica internacional. Os principais sítios datados do Pleistoceno Terminal com ótimas evidências arqueológicas (cultura material indiscutível, associações estratigráficas bem claras, restos humanos etc), que têm sido objeto de estudos nas duas últimas décadas, estão localizados na Amazônia (sítio Caverna da Pedra Pintada), no Mato Grosso (sítio Santa Elina), em Goiás (vários sítios na região de Serranópolis), em Minas Gerais (sítios Lapa do Boquete, Lapa dos Bichos, Santana do Riacho, Lapa Vermelha), em Pernambuco (sítios Brejo de Madre de Deus-Abrigo 3 e Chão do Cabloco), e no Piauí (níveis superiores dos sítios Boqueirão da Pedra Furada e Sítio do Meio).

Apesar da importância e do apelo popular sobre a antiguidade da ocupação pré-histórica do Brasil, esta discussão tem que se dar dentro de um contexto paleoantropológico mais abrangente, no qual questões sobre evolução humana, tanto nos seus aspectos biológicos quanto culturais, sejam estudadas dentro da perspectiva evolutiva e histórica das grandes mudanças que ocorreram durante o período pós-glacial no mundo.

Durante o intervalo de tempo compreendido entre o final da última glaciação (cerca de 18.000 AP) e o começo do pós-glacial (antes do ótimo climático do Holoceno, cerca de 5.000) populações humanas colonizaram as Américas, a última região do planeta a ser ocupada pelo Homo sapiens (exceto a Antártica) e estavam habitando uma vasta variedade de sistemas ecológicos ao redor do mundo. Mais notadamente, durante o período entre 13.000 e 8.000 anos atrás, a história da humanidade presenciou mudanças econômicas extraordinárias, de uma economia forrageira universal em direção ao desenvolvimento e à difusão de estratégias de produção alimentar, ou seja, domesticação de plantas e animais.

Considerando a história evolutiva humana como sendo o tempo entre o último momento que nós compartilhamos um ancestral comum com os chipanzés, nossos parentes mais próximos da ordem dos primatas, e hoje; e se utilizamos este período de 6 milhões de anos como uma medida, o advento da produção alimentar é extremamente rápido. Se tornarmos 6 milhões de anos equivalentes a uma hora, o período de 5 mil anos (13.000-8.000 anos), quando as populações humanas começaram a domesticar plantas e animais, representa somente 3.0 segundos. Três segundos durante os quais grandes mudanças ocorreram na dieta humana, na tecnologia, no padrão de assentamento e na organização social. Estas mudanças, mais conhecidas como broad spectrum revolution, têm sido registradas em todos os continentes, e em diferentes contextos ecológicos.

Após o final do último Máximo Glacial, a cerca de 18.000 anos atrás, grandes áreas do planeta foram colonizadas por populações humanas pela primeira vez; o número de assentamentos humanos aumentou, a mobilidade das sociedades de caçadores-coletores reduziu, o processo inicial da domesticação de plantas e de animais teve início, mudanças significativas no modo de processar e armazenar alimentos ocorreram e organizações políticas e sociais ficaram mais complexas. Apesar de algumas destas mudanças terem sido generalizadas, elas tiveram uma temporalidade diferente e variações locais. Por exemplo, tem sido sugerido que no Oriente Médio e na Mesoamérica recursos alimentares provindos de plantas e de animais silvestres que apesar de estarem disponíveis anteriormente na natureza não eram muito exploradas, tornaram-se repentinamente importantes, se não dominantes, elementos da dieta local no final do Pleistoceno e no começo do Holoceno. Na Austrália e nas terras baixas da América do Sul as mudanças nas estratégias de subsistência em conjunto com o aparecimento de novas tecnologias e mudanças no padrão de assentamento ocorreram mais tardiamente, próximo ao Holoceno Médio, bem depois das primeiras evidências de mudanças similares em outras regiões, e não associadas às grandes mudanças climáticas do Pleistoceno Terminal.

É interessante notar que apesar da diversidade de sistemas adaptativos durante esse período, o modelo até recentemente mais aceito para a colonização das Américas era um modelo monolítico, baseado principalmente no registro arqueológico da América do Norte. Esta hipótese advogava que por volta de 12 mil anos atrás grupos de caçadores-coletores com uma economia de subsistência voltada para a caça de grandes animais (mamute, bisão, etc.) atravessaram o estreito de Bering, da Sibéria para o Alaska, e começaram a colonizar o continente americano. Estes grupos tinham uma tecnologia voltada para a produção de artefatos bifaciais que na América do Norte desenvolveu-se, entre outras, nas famosas pontas de lanças caneladas – pontas Clovis, Folsom e Dalton. Este modelo sugeria que deveríamos achar evidências parecidas no restante do continente, na América Central e na América do Sul. Ou seja, à medida que as primeiras populações humanas colonizaram o continente, de norte para sul, levaram consigo seus hábitos culturais: caça especializada em grandes animais e produção de pontas caneladas.

Nos últimos 10 anos esse modelo tem sido refutado em vários aspectos. Datações contemporâneas às primeiras ocupações da América do Norte têm sido geradas para vários sítios da América do Sul e até datações mais antigas, como é o caso de Monte Verde (cerca de 12.500 AP), no sul do Chile. Uma outra explicação, muito menos plausível e sem nenhuma evidência empírica, é que a colonização da América do Sul foi feita através do Pacífico.

Pesquisas recentes na América do Norte têm demonstrado que o modelo de caçadores especializados em megafauna não explica a variabilidade do registro arqueológico associado com as primeiras ocupações, e que uma economia de subsistência generalizada seria mais plausível. Na América Central e América do Sul são relativamente raras as evidências de caça de megafauna. À indústria bifacial presente em várias regiões da América Central e América do Sul não parecem estar associadas às pontas caneladas da América do Norte, como deveriam estar segundo aquele modelo.

No Brasil não há nenhuma evidência de que a megafauna foi explorada pelos grupos que aqui chegaram no final do Pleistoceno. O problema aqui pode residir em uma questão temporal. Ainda não sabemos ao certo se houve uma contemporaneidade entre megafauna extinta e populações humanas; apesar do crescente número de estudos paleontológicos entre nós, não temos a mínima idéia sobre a cronologia do aparecimento e da extinção de nenhuma das espécies de mamíferos do Brasil. No Brasil Central, onde os estudos de paleontologia brasileira se iniciaram há mais de 150 anos, até este ano só tínhamos uma datação, e esta indireta, para espécies extintas. Carvões associados a níveis estratigráficos, nos quais ossos e coprólitos de uma preguiça terrícola (Catonyx cuvieri) foram escavados, no sítio arqueológico de Lapa Vermelha IV, na região de Lagoa Santa, foram datados em 9.580±200 AP. Recentemente pesquisadores do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (LEEH/USP) obtiveram uma datação de 9.990±40 AP para os ossos de uma preguiça gigante da mesma espécie da de Lapa Vermelha IV encontrada no sítio paleontológico Cuvieri, também na região de Lagoa Santa. A ocupação humana mais antiga para a região é de cerca de 10 mil anos atrás. Portanto é possível que em Lagoa Santa as primeiras populações tenham chegado na região logo após a extinção da megafauna. Essas datações precisam ser confirmadas com uma série bem mais representativa do material paleontológico e arqueológico, assim como um estudo aprofundado quanto a questão de possíveis contaminações do material datado, pricipalmente ossos que são mais suscetíveis à contaminação.

Por outro lado, os vestígios arqueológicos datados do final do Pleistoceno e começo do Holoceno no Brasil Central e Amazônia sugerem um padrão de subsistência baseado em coleta de frutos e sementes complementada pela caça generalizada de animais de pequeno e médio porte. Estudos teóricos que utilizam-se da teoria de ecologia evolutiva, aliados a estudos empíricos (escavações, análise de coleções, etc), que estão sendo realizados por pesquisadores e estudantes do LEEH/USP, têm demonstrado uma grande diversidade cultural dos primeiros colonizadores do continente.

As pesquisas do LEEH/USP também têm demonstrado que o modelo tradicional de três migrações de populações geneticamente associadas às populações do norte da Ásia não explica a variabilidade biológica dos esqueletos encontrados em vários sítios arqueológicos da América do Sul datados do final do Pleistoceno e começo do Holoceno. Estudos baseados em crânios humanos da região de Lagoa Santa sugerem que as primeiras populações tiveram ancestrais comuns com populações pré-históricas da Austrália e não com os do norte da Ásia, como previa o modelo convencional.

O processo evolutivo e histórico da colonização do continente americano é bem mais complexo e difícil de se traçar, que em outras regiões do mundo. As pesquisas mais recentes indicam várias "populações-fundadoras" com origens diferentes, entrando no continente em diferentes períodos, trazendo diferentes hábitos, tecnologias e ideologias. As pesquisas que estão sendo realizadas no Brasil têm tido uma posição de destaque na produção deste conhecimento.

Texto de Renato Kipnis