domingo, 30 de junho de 2013

NOVAS QUESTÕES SOBRE A ORIGEM DO HOMEM AMERICANO


O povoamento do continente americano é um enigma a ser decifrado para a compreensão da evolução de nossa espécie, chamada pelos cientistas de Homo sapiens. Ao deixar a África, onde surgiu aproximadamente entre 200 mil e 100 mil anos, o homem primitivo deu início à sua dispersão territorial e colonizou novos continentes, adaptando-se a novas regiões de clima e recursos naturais variados. Num movimento cuja direção levou ao estreito de Bering, a porta de entrada das Américas, nossos ancestrais deixaram vestígios nos lugares por onde passaram e fixaram residência. Esses locais, conhecidos como sítios arqueológicos foram encontrados em maior número na Europa, Ásia e Oceania do que na América do Norte, Central e do Sul que também são mais recentes. Essa lacuna na história do desenvolvimento humano há muito tempo mobiliza arqueólogos, lingüistas, antropólogos físicos e sociais, biólogos e geólogos, que procuram conhecer a origem, as características e quando e como chegou à América a nossa espécie.

"Hoje, as perguntas que estão sendo feitas sobre o povoamento da América são: de onde vieram os primeiros colonizadores? Que rota seguiram? A migração foi contínua ou interrompida por lapsos de tempo? Quando ocorreu essa migração, ou quando ocorreram essas migrações?", explica Francisco Salzano, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), empenhado em desvendar as origens do homem americano por meio da análise genética de grupos indígenas. Para ele, existe o consenso entre os cientistas de que não existiram populações originadas no continente, pois aqui ainda não foram encontrados vestígios muito antigos de fósseis humanos. Além disso, a hipótese mais aceita é a de que a rota de entrada no continente passou pelo estreito de Bering. "Mesmo com relação a este último ponto, no entanto, há vozes discordantes. As discussões quanto à região original de migração envolvem ou a Mongólia ou a Sibéria, numa ou mais rotas de migração, que podem ter sido terrestres, interiores, costeiras ou marítimas", diz Salzano.

Um dos debates mais intensos sobre o surgimento do homem americano diz respeito ao tempo de sua chegada ao continente. Até meados do século passado, os achados arqueológicos que ofereciam dados mais antigos sobre a presença humana nas Américas derivavam de materiais encontrados no Novo México, EUA. Trata-se da cultura Clóvis, assim batizada com o mesmo nome do sítio arqueológico em que foram encontrados artefatos produzidos por pessoas que habitaram a região entre 10.500 e 11.400 anos atrás. Esse grupo era formado por caçadores de grandes animais, tais como mamutes e mastodontes, que eram abatidos por pontas de pedra lascada bastante afiadas, cuja técnica de produção permitia que fossem colocadas na ponta de um cabo.

Esses achados permitiram a construção do modelo teórico chamado "Clóvis-Primeiro", segundo o qual uma única leva de pessoas adentrou a América aproximadamente a 12 mil anos. Esse período correspondia a uma era geológica, o final do período Pleistoceno, em que, entre o Alasca e o estreito de Bering, formou-se um corredor de terra chamado Beríngia, graças ao rebaixamento do nível do mar, numa era glacial em que a água era retida em grande volume na forma de gelo. Além desse fato geológico, a teoria foi corroborada por outras descobertas em sítios arqueológicos nos Estados Unidos, onde os artefatos de pedra lascada encontrados eram bastante semelhantes aos da cultura Clóvis. Desse modo, passou-se a acreditar que dessa cultura descendiam os demais grupos humanos espalhados pelo continente, idéia defendida ferrenhamente pelos pesquisadores norte-americanos, que olham com ceticismo a produção científica sul-americana.

Mas a teoria de que a cultura Clóvis era a primeira e mais antiga da América, aos poucos, foi perdendo espaço diante das novas descobertas arqueológicas que atestaram uma presença humana mais remota em algumas regiões fora da América do Norte, tornando mais acirradas as discussões sobre a origem do homem em nosso continente. No final dos anos 90, trabalhos publicados por cientistas norte-americanos sobre escavações realizadas na América do Sul indicavam datas de ocupação de períodos contemporâneos aos de Clóvis.

No sítio de Monte Verde explorado pelo arqueólogo Tom Dillehay, ao sul do Chile, foram encontrados vestígios arqueológicos que sugerem uma presença humana há 12.300 anos. Os estudos da pesquisadora Anna Roosevelt sobre Pedra Pintada, sítio localizado na cidade de Monte Alegre, Pará, indicam a ocupação do homem na floresta amazônica por volta de 11.300 anos atrás. Os resultados obtidos nesse local levaram a pesquisadora apresentar um outro modelo teórico de explicação da ocupação da América, o qual foi chamado de "Clóvis em contexto". Segundo esse modelo, a cultura Clóvis não era a mais antiga ocupação no continente da qual derivam todas as demais populações americanas.

Achados em outros sítios arqueológicos espalhados pela América do Sul reforçam a teoria de uma ocupação pré-Clóvis do continente, no final do período Pleistoceno, anterior a 10 mil anos, e no início do Holoceno, nossa atual era geológica. Em Taima-Taima, sítio venezuelano, há indícios de presença humana que remontam a 15 mil anos. Na Argentina, nos sítios de Piedra Museo e Los Toldos, existem vestígios humanos de aproximadamente 13 mil anos. Os sítios de Tibitó, Colômbia, e os de Quebrada Jaguay e Pachamachay, no Peru, possuem datações antigas de até 11.800 anos. No Brasil, em Lapa do Boquête, Vale do Peruaçu, e em Lapa Vermelha e Santana do Riacho, Lagoa Santa, todos estes em Minas Gerais, e no Boqueirão da Pedra Furada, São Raimundo Nonato, Piauí, foram encontradas evidências remotas, anteriores a 10 mil anos.

Atualmente, reivindica-se ao sítio arqueológico do Boqueirão da Pedra Furada, os vestígios mais antigos deixados pelo homem nas Américas. Datações feitas a partir de carvões originados de fogueiras e pedras lascadas indicam uma ocupação humana que remonta a cerca de 60 mil anos. Porém, entre os arqueólogos, é discutido se realmente tais vestígios foram produzidos por homens ou se são resultado de algum tipo de ação natural. Para a arqueóloga Niéde Guidon, que escava a região desde os anos 80, não há dúvidas de interpretação a respeito da ação humana nesse contexto. "Colegas americanos da Texas A & M University, EUA, analisaram as peças líticas e, como nós, as consideram indubitavelmente feitas pelo homem. Para rebater a idéia de que o carvão podia vir de incêndios naturais, fizemos sondagens em todo o vale da Pedra Furada e o carvão somente existe dentro do sítio. Incêndios naturais deixam carvão para todos os lados", explica a pesquisadora.

Para Niéde Guidon, a partir dos vestígios do sítio de Pedra Furada, considerando dados da paleoclimatologia, da paleoparasitologia e da genética, seria possível propor uma teoria sobre a ocupação da América por grupos humanos diferentes, vindo de diferentes regiões, em diferentes épocas, ao longo dos últimos 100 mil anos. Mas, como ressalta a pesquisadora, sua proposta não é a de desvendar as origens do homem americano, mas sim descrever a história do homem na região do sudeste do Piauí.

"Todos partem do pressuposto de que estamos estudando a origem do homem americano. Nosso programa de pesquisa é outro. Iniciei as pesquisas partindo da hipótese de que, tratando-se de uma região de fronteira entre duas grandes formações brasileiras, o escudo pré-cambriano da depressão periférica do São Francisco e a bacia sedimentar Maranhão Piauí do período devoniano-permiano, haveria uma profusão de ecossistemas diferentes, o que aumentaria a quantidade e diversidade dos produtos naturais disponíveis. Esse fato poderia ser o gerador de condições favoráveis para o desenvolvimento de culturas diferentes e, principalmente, de grandes culturas nesta região. Estudamos também todo o processo de evolução climática e da paisagem, desde a chegada do homem até hoje. Essa hipótese se mostrou verdadeira e até hoje estamos descobrindo novos sítios, figuras rupestres que foram comparadas pelos técnicos da Unesco às pinturas das grutas francesas, sendo classificadas como obras primas da humanidade. A quantidade de sítios, de pinturas, gravuras, material lítico e cerâmico demonstra uma presença antiga e contínua. Portanto, se enganam aqueles que pensam que estamos pesquisando para descobrir o mais velho ocupante da América. Se os sítios mais antigos tivessem 9.000 anos continuaríamos com o mesmo programa", diz Guidon.

Achados arqueológicos pré-Clóvis, ou seja, mais antigos que 11.400 anos, também têm ajudado a embaralhar ainda mais outras duas peças do quebra-cabeça sobre a colonização primitiva da América que são: a origem do homem americano e o número de levas migratórias que o trouxeram para o continente. Na década de 80, a explicação mais aceita era fornecida pelo Modelo das Três Migrações, uma combinação de análises dentária, lingüística e de genética clássica. Segundo esse modelo, três populações originárias da Sibéria e do nordeste-asiático - ameríndios, na-denes e esquimós - adentraram respectivamente o território americano há 11 mil, 9 mil e 4 mil anos.

Porém, novos estudos em genética baseados na análise do DNA mitocondrial (mtDNA) e do cromossomo Y de populações indígenas americanas fornecem modelos alternativos sobre os grupos fundadores de novas culturas na América. Os pesquisadores Francisco Salzano (UFRGS) e Sandro Bonatto (PUCRS), baseados em resultados com mtDNA, sugerem uma entrada única no continente, por volta de 16 mil a 20 mil anos atrás. Mas Salzano explica que tais projeções sobre o tempo de presença do homem na América variam conforme a base de referência utilizada para estudos nesse sentido. Citando o exemplo da genética, o pesquisador diz que algumas pesquisas baseadas em análises do cromossomo Y, por exemplo, propõem números diferentes de migrações colonizadoras, uma ou mais, que ocorreram em épocas distintas.

Pesquisas em antropologia física, baseadas no estudo da morfologia craniana, também apresentam modelos distintos de ocupação da América, sugerindo a existência de quatro ondas migratórias ocorridas em períodos diferentes. Em artigo publicado na revista brasileira Scientific American, em agosto deste ano, os pesquisadores Walter Neves e Mark Hubbe, ambos da USP, defendem a idéia de que uma população distinta dos atuais índios americanos adentrou o continente através do estreito de Bering aproximadamente a 15 mil anos. Essa hipótese faz parte da teoria denominada "Modelo dos Dois Componentes Biológicos Principais", segundo a qual houve uma migração não mongolóide, que antecedeu a chegada dos ameríndios, na-denes e esquimós ao continente.

Essa teoria é sustentada pelo antropólogo físico Walter Neves desde meados dos anos oitenta, época em que ele analisou uma série de crânios encontrados no sítio Lapa Vermelha IV, região de Lagoa Santa, Minas Gerais, escavado por franceses e brasileiros sob a liderança da arqueóloga Annete Laming Emperaire, entre os anos de 1974 e 1976. A morfologia desses crânios apresenta traços característicos aos dos aborígines africanos e australianos, que são distintos dos traços característicos de povos com origem asiática, tais como chineses, japoneses e atuais indígenas americanos.

A idéia de que o território americano foi ocupado por populações de componentes biológicos distintos ganhou visibilidade com a publicação, em 1998, de um estudo feito por Neves a partir de um esqueleto encontrado na Lapa Vermelha, considerado um dos mais antigos encontrados na América. Com a idade entre 11 mil e 11.500 anos atrás, esse esqueleto pertencia a uma mulher jovem batizada pelos arqueólogos de Luzia. O estado de conservação de seu crânio permitiu a realização de uma reconstituição facial, cuja aparência revela traços semelhantes aos de africanos e australianos.

A origem primitiva do homem americano permanece um mistério para a ciência. Os pesquisadores que procuram desvendá-la, dispõem de escassas evidências e utilizam diferentes bases de referência metodológica (lingüística, arqueológica, antropológica, genética etc), que são difíceis de serem encaixadas num mesmo modelo teórico. De certa forma, as discussões giram em torno de quem possui os dados mais precisos e mais antigos sobre a presença humana em nosso continente. Além disso, os embates científicos parecem estar polarizados pelas velhas teorias de colonização e os novos vestígios arqueológicos encontrados na América do Sul.

Para Niéde Guidon, as teorias sobre a ocupação da América dos anos 50 eram baseadas na falta de dados. "Os dados foram surgindo, mas muitos ficaram aferrados a uma teoria sem bases. Os conhecimentos sobre a pré-história da Europa, da África, mudaram e muito. A cada ano temos novos recuos para o aparecimento do gênero Homo, para as relações genéticas entre Homo e os outros grandes primatas africanos. Somente a teoria americana sobre o povoamento da América não pode ser tocada. Em alguns artigos recentes, a submissão é tal que somente o que é feito pelos americanos pode ser considerado", comenta a arqueóloga.

O arqueólogo André Prous (UFMG), que participou da missão franco-brasileira para a escavação do sítio de Lapa Vermelha IV, onde foi encontrada a Luzia, acrescenta que a determinação de um período para a ocupação do homem na América depende da descoberta de sítios arqueológicos devidamente escavados e interpretados. Diz ele, "o dia em que tivermos sítios, se é que eles irão aparecer, mais antigos e em boas condições, já com vestígios inquestionáveis, com estratigrafias claras e datações precisas, teremos dados mais seguros sobre uma presença bastante primitiva do homem em determinada região. Para isso, é preciso multiplicar os números de pesquisas, procurar supostos sítios pleistocênicos com vestígios preservados etc. Teríamos que ter uma multiplicidade de estudos arqueológicos a esse respeito, pois as pesquisas acadêmicas sobre o tema são raras. Além disso, no final, devemos contar com boa dose de sorte para achar esses locais".

Texto de Alexandre Zarias

SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS BRASILEIROS

Conforme o último levantamento feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1998, existem 12.517 sítios arqueológicos em todo o território nacional. Hoje, acredita-se que esse número já tenha saltado para 20 mil. Entretanto, no quadro desse órgão federal, vinculado ao Ministério da Cultura e responsável por identificar, conservar, explorar e restaurar todos os sítios arqueológicos brasileiros, há apenas seis arqueólogos: quatro lotados no Rio de Janeiro, um em Brasília e outro em Santa Catarina.



A falta de estrutura e os impasses na operacionalização são, hoje, o maior obstáculo para a preservação dos sítios arqueológicos no país. Segundo o arqueólogo Rossano Lopes Bastos, consultor na área de arqueologia do IPHAN, do ponto de vista normativo e legal sobre a proteção e preservação dos sítios arqueológicos, o Brasil é um dos mais avançados em nível mundial. "Obtivemos avanços extraordinários. Durante a década de 80, o maior depredador era o próprio Estado, fazendo rodovias e hidrelétricas sem qualquer levantamento arqueológico. Há 20 anos, parar um empreendimento por conta de descoberta arqueológica era até um risco de integridade física", comenta o arqueólogo.

Bastos já foi coordenador de arqueologia do Departamento de Proteção do IPHAN. Ele mesmo afirma que esses avanços na legislação, como a Portaria 230, instituída em dezembro de 2002, estabelecendo a exigência de estudos criteriosos de impacto arqueológico nas três fases da licença ambiental (prévia, de instalação e de operacionalização), dificilmente poderão ser praticados com a atual número de profissionais do IPHAN. "Mas, o Instituto está passando por significativas mudanças na gestão e a expectativa é de melhora", diz.

Sob o benefício da Lei 3.924 (26/07/1961), todos os sítios são considerados bens patrimoniais da União e, supostamente, contam com proteção especial. O tombamento, entretanto, reforça essa proteção e impede a destruição ou descaracterização dos sítios arqueológicos de grande interesse para a preservação da memória coletiva.

Entre os 20 mil sítios arqueológicos do país somente seis são tombados: Sambaqui do Pindaí, em São Luís, no Maranhão; Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí; Inscrições Pré-Históricas do Rio Ingá, no município de Ingá, na Paraíba; Sambaqui da Barra do Rio Itapitangui, em Cananéia, São Paulo; Lapa da Cerca Grande, em Matozinhos, Minas Gerais; e a Ilha do Campeche, em Florianópolis, Santa Catarina.

Conforme afirma Rossano Bastos, em cada região, os sítios possuem características peculiares que dão "relevância" e "significado" arqueológico importantes em nível nacional ou até mundial. Essa importância é definida pela descoberta de materiais de ocorrência única ou que colaboram com o avanço das ciências arqueológicas. Portanto, a destruição dos sítios arqueológicos, em qualquer região, significa uma perda para a própria história do povo brasileiro e das Américas.

Em geral, as descobertas na região Centro-Oeste, Sudeste e Nordeste têm contribuído ao esclarecimento dos detalhes da história do povoamento do continente americano. Na região Sul, os sítios conservam conhecimentos dos recursos naturais marinhos brasileiros. Na Amazônia, manifestações simbólicas, como as inscrições rupestres e as cerâmicas policromadas, ganham destaque nas descobertas, que se concentram especialmente ao longo dos rios.

O arqueólogo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), André Prous, também destaca a falta de estrutura de fiscalização do IPHAN como uma dificuldade para garantir a preservação dos sítios arqueológicos. "Em Minas Gerais, o IPHAN não possui nenhum arqueólogo em seu quadro; existem somente arquitetos e historiadores. Quando há necessidade de vistoria na área arqueológica os pesquisadores da UFMG são chamados", comenta.

A região de Lapa Vermelha, no município de Lagoa Santa, a cerca de 40 quilômetros da capital de Minas Gerais, atualmente é considerada como um dos mais importantes sítios arqueológicos do continente americano. Lá foi encontrado o fóssil humano de cerca de onze mil anos conhecido como "Luzia", que aponta para novas teorias da evolução e ocupação do homem nas Américas.

Lapa Vermelha possui mais de uma centena de sítios arqueológicos registrados pelo IPHAN e potencial constante de novas descobertas. Mas, conforme explica Prous, alguns sítios arqueológicos da região já foram destruídos pelo turismo descontrolado; outros dependem da conscientização dos proprietários.

Fato semelhante acontece na região amazônica, especialmente no arquipélago do Marajó, no estado do Pará. "Lá, há anos famílias proprietárias de fazendas com sítios arqueológicos sobrevivem da retirada e venda de peças. Em alguns casos a situação é gritante", afirma a arqueóloga do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), Edithe Pereira. Para ela, os principais entraves para garantir a preservação dos sítios arqueológicos na Amazônia são a distância e a dificuldade de acesso para fiscalização.

Donos de fazenda têm coleções particulares ou fazem o contrabando das peças de cerâmica marajoara diretamente para clientes que chegam em aviões. Essas informações são empíricas. As atividades são absolutamente clandestinas. "Às vezes, ficamos sabendo de peças somente depois, por fotos", lamenta ela.

Além disso, os povos antigos da região do Marajó construíam tesos (elevações do terreno) para fugir das inundações, o que facilita a localização dos sítios por qualquer pessoa sem especialidade na área. "Muitas vezes, a destruição dos sítios arqueológicos acontece por puro desconhecimento da população em geral sobre a importância das peças e das informações elas contêm", comenta a arqueóloga.

No município de Monte Alegre, também no Pará, depois da divulgação, em nível mundial, da descoberta de inscrições rupestres de cerca de onze mil anos, o fluxo de turistas aumentou e a atividade vem acontecendo de forma totalmente descontrolada. "Muitas pinturas que estavam intactas há alguns anos, já estão riscadas, especialmente da Serra da Lua, que é o sítio mais importante da região", diz Pereira. O próprio governo do estado estaria estimulando o turismo em Monte Alegre sem manter uma política de preservação ou dar qualquer estrutura de suporte adequado para a atividade.

Os sítios arqueológicos de Monte Alegre estão dentro de um Parque Estadual, criado em novembro de 2001. Mas, até hoje, não foi publicado o edital para a elaboração do plano de manejo da área, ou seja, nenhuma medida de controle ou estudos detalhados foram realizados.

O patrimônio arqueológico amazônico também é ameaçado pelos grandes empreendimentos privados. Em 1992, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) detonou a Gruta do Gavião, na província mineral de Serra dos Carajás, também no Pará. A gruta tinha datação comprovada em cerca de oito mil anos. Estudos posteriores constataram a existência de mais onze grutas pré-históricas na área da empresa. Numa dessas, a Gruta do Piquiá, foram descobertos ossos humanos e de animais, sementes e artefatos de cerâmica, com datação de nove mil anos. Foi na Gruta do Piquiá, também, que foi registrada a primeira ocorrência de artefatos feitos em ferro lascado no Brasil.

Segundo o pesquisador do Museu Goeldi, Marcos Magalhães, as descobertas arqueológicas na Gruta do Piquiá e nos demais sítios da Serra dos Carajás podem ser considerados até mais importantes que as feitas pela arqueóloga norte-americana Ana Roosevelt - as inscrições rupestres de Monte Alegre. A Gruta do Piquiá está exatamente na área prevista para próxima exploração da empresa.

Em Manaus, uma obra de reurbanização na praça D. Pedro II, no centro histórico da cidade, foi suspensa por tempo indeterminado com a descoberta de um conjunto de urnas funerárias. Segundo Carlos Augusto da Silva, arqueólogo do Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e responsável pelos trabalhos na praça, o sítio de Manaus fica no entorno da orla do rio Negro, onde existe terra preta arqueológica (TPA). A fertilidade desse solo é motivo de disputa entre agricultores e sua exploração indiscriminada vem causando a destruição de algumas peças arqueológicas.

Para o arqueólogo da UFAM, o fato das peças recentemente descobertas estarem intactas é uma novidade na arqueologia, já que Manaus possui mais de 300 anos de história e o material está bem no centro da cidade. Povos indígenas do Amazonas têm protestado contra a exumação das urnas, exigindo respeito com os espíritos de seus antepassados e que os objetos fiquem no local onde foram encontrados. Mas, os arqueólogos da região dizem que o material deve ser retirado e levado a um museu para ser devidamente acondicionado.

Segundo Silva, o ideal seria fazer um laboratório de visitação pública e de pesquisa, no local onde foram encontradas as peças. Mas, para isso, também seria necessário transportar as peças para um museu, mesmo que temporariamente.

Os problemas enfrentados pela maioria dos sítios arqueológicos brasileiros não afetam os mais de 600 sítios que estão no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. Localizado em uma área de 130 mil hectares o Parque Nacional da Serra da Capivara é um exemplo de conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. Em 1991, foi consagrado patrimônio mundial pela UNESCO.

A ONG Fundação Museu do Homem Americano (FUNDAHM) incentiva o desenvolvimento de pesquisas e conta com um laboratório de arqueologia e um centro interdisciplinar para abrigo da documentação fotográfica e filmográfica.

A superintendente regional do Iphan no Ceará e Piauí, Diva Figueiredo, afirma que a Serra da Capivara é uma das áreas mais protegidas do Brasil, pois está sob a guarda do Iphan, Ministério do Meio Ambiente (MMA), Fundahm e do Ibama local, que tem poder de polícia. "Há muito tempo que não ocorrem problemas de depredação. Na década de 80, houve alguns, esporádicos", conta.

Apesar da Serra da Capivara ser considerada um modelo de preservação ambiental, Figueiredo destaca que novas dificuldades estão surgindo. "A ocupação desordenada do território para a prática da agricultura ameaça os sítios", alerta. Há ainda aqueles que criam animais de forma extensiva, extraem mel e, no período da estiagem, caçam no Parque para complementar a alimentação. Além disso, as queimadas realizadas no entorno contribuem para a perturbação de todo ecossistema.

Segundo a superintendente regional do IPHAN, as exigências de estudos de impactos ambientais freqüentemente não contemplam as questões arqueológicas, apesar da legislação exigir isso. Assim, no Piauí, o IPHAN, juntamente com o IBAMA e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, desenvolve um trabalho preventivo contra atividades e empreendimentos de impacto arqueológico, exigindo uma prospecção prévia e um estudo de impacto sobre esses riscos. "Com o apoio do Ministério Público Estadual temos conseguido fazer um trabalho preventivo importante", conta. De acordo com Diva Figueiredo, a prospecção arqueológica em paralelo ao estudo ambiental evitaria a destruição de muitos sítios.

Na região da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, segundo o espeleólogo (profissional que estuda as cavernas) José Guilherme Aires Lima, chefe do Centro Nacional de Estudos, Proteção e Manejo de Cavernas do IBAMA/MT, a grande maioria dos sítios arqueológicos não se beneficiam do Parque Nacional porque estão fora de seu território. "Na época da demarcação, já havia conhecimento da existência dos sítios, mas eles foram excluídos".

O espeleólogo afirma que, apesar de os sítios serem de difícil acesso, a falta de fiscalização incentiva a visitação dos turistas. Um dos mais conhecidos é a Lapa do Frei Canuto, um sítio de cerimonial que foi depredado com pixações.

Outro sítio que está fora do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães é a caverna Kamukuaká, às margens do rio Batuvi. Este é um sítio arqueológico vivo, que conta com os relatos dos descendentes indígenas para a interpretação dos materiais encontrados. Os índios Waurás estão confinados no Parque e, desde o ano passado, reivindicam o reconhecimento da área da caverna para o tombamento. Mas agora, segundo José Guilherme Lima, o sítio está sendo ameaçado pela autorização de cerca de 20 mil hectares de desmatamento para o plantio de algodão no entorno.


Texto de André Gardini e Sílvia Fujiyoshi

SÍTIO ARQUEOLÓGICO DE SANTA ELINA - MATO GROSSO


Mato Grosso possui milhares de Sítios Arqueológicos. Todos são importantíssimos, mas destacaremos aqui, um que se apresenta como dos mais importantes testemunhos da presença humana no continente americano. Trata-se do SÍTIO ARQUEOLÓGICO SANTA ELINA que, desde 1984, vem sendo pesquisado por arqueólogos da Universidade de São Paulo e do Museu Nacional de História Natural de Paris/França.

Santa Elina é o terceiro sítio arqueológico mais antigo das Américas, remontando a 27 mil anos AP (antes do presente). O primeiro é o Boqueirão da Pedra Furada, que fica no município de São Raimundo Nonato, no Piauí, datado em mais de 50 mil anos. Já o segundo é o sítio de Monte Verde, no Chile, datado em mais de 30 mil anos AP.

O sítio arqueológico de Santa Elina, fica localizado no município de Jangada, distante 82 quilômetros de Cuiabá, na fazenda do mesmo nome. Em um vale bastante agradável, coberto por vegetação típica de cerrado, onde os paleoíndios encontraram um abrigo sob-rocha bastante seguro para morar.

O abrigo possui uma inclinação que impediu durante milhares de anos que a chuva molhasse o local, permitindo que materiais delicados se conservassem até os dias atuais. É um lugar excepcional por ter preservado algumas folhas de palmeiras entrelaçadas, e alguns fios de fibras trançadas cuja datação se aproxima dos 6.000 anos AP. Outro achado importante são fragmentos de madeiras usadas como esteio, indicando, talvez, uma provável construção de habitação ou jiraus ou algo, semelhante a um "porta-objetos".

Foram encontrados instrumentos de pedras, um bastão com resto de pigmentos corantes de cor vermelha e ossos de diferentes animais, indicando uma abundante fauna – papagaios, periquitos, tucanos, corujas; mamíferos de grande porte, como veados lobos, antas, onça, jaguatirica, etc. – e fogueiras datadas em milhares de anos atrás.

Santa Elina é uma referência para estudar o povoamento inicial das Américas. Um dos raros locais da América onde o ser humano conviveu com espécimes da megafauna. A pesquisa é liderada pelo casal Águeda e Denis Vialou. Ele, do Museu Nacional de História Natural de Paris, e ela, arqueóloga da USP e do Museu Parisiense.

Na enorme parede de calcário, existem cerca de 1.000 pinturas, o que destaca Santa Elina, como um dos maiores sítios de arte rupestre brasileira. Em sua arte, os moradores daquele local fizeram emprego de três técnicas: pintura, desenho e picoteamento/martelamento da rocha. Usando cores vermelha, roxa e preta, pintaram figuras antropomórficas, monstruosas, abstratas ou de animais, como macacos, veados, pássaros. Algumas das pinturas sugerem que os homens daquela comunidade usavam brincos e os cabelos amarrados ao alto da cabeça.

Também foram encontrados vários blocos de pedras, dando a impressão de um arranjo proposital, algo como uma espécie de “piso” manchado de vermelho e preto mas que, infelizmente, não é possível saber para que serviam. Ali se preservou flores, frutos e folhas de palmeiras. Pedaços de carvão encontrados nas fogueiras, indicam que a vegetação da região era constituída de grandes árvores. Bem diferente da vegetação de cerrado hoje existente.

Poucos fragmentos cerâmicos foram encontrados, mas achou-se grande número de conchas, moluscos, peixes, e sapos. No nível correspondente a 2.000 anos atrás, encontrou-se uma espécie de sandália. A impressionante capacidade de preservação do local permitiu que pequenas cordas de fibras vegetais e cestos feitos de folha de palmeiras chegassem até nós, séculos depois.

Os instrumentos feitos em pedras foram enviados aos laboratórios, para se descobrir como eram feitos e de que forma fora utilizados. Tudo indica tratar-se de um grupo caçador/coletor que gostava de pescar nos riachos da região.

O que tem sido encontrado nesse local, tem provocado fortes polêmicas no meio científico. Fragmentos de vértebras de um animal já extinto, de quase 4 metros de altura, conhecido como "Glossotério", ou Preguiça Gigante, foram encontrados associados aos vestígios humanos. A informação é polêmica, deixando em polvorosa a comunidade científica. Sugerem a realização do mais antigo “churrasco” em território matogrossense. Um pedaço de placa óssea de dois centímetros, retirado da pele desse animal foi trabalhado por um artesão pré-histórico. Este achado é de suma importância, por registrar, no Brasil, a mais antiga prova de associação entre a megafauna e uma atividade humana; indica que os antigos habitantes do Mato Grosso, caçaram o glossotério e utilizaram seus ossos para representação artística.






sábado, 29 de junho de 2013

BOQUEIRÃO DA PEDRA FURADA - PIAUÍ


Em 1973, a equipe franco-brasileira do Piauí, sob minha direção, iniciava as pesquisas na região de São Raimundo Nonato, pequena cidade perdida no sertão, uma das mais pobres regiões do Brasil. Hoje, trinta anos depois, podemos iniciar um balanço de tudo o que foi feito e, principalmente, do que resta a fazer, sem dúvida trabalho para mais uma geração!

Meu interesse pela região havia sido despertado pelas pinturas rupestres que ornam as paredes de alguns abrigos rochosos. Notícias dessas pinturas me haviam sido transmitidas em 1963 e as fotografias que vi imediatamente chamaram minha atenção pois era algo completamente desconhecido. Procurei chegar à região nas férias de dezembro do mesmo ano, mas os rios haviam transbordado e derrubado pontes, o que me impediu de chegar ao destino. Em 1964 deixei o Brasil. Em 1970, já trabalhando na França, vim ao Brasil em uma missão de pesquisas e, ao término da mesma, decidi passar pelo Piauí para ver as pinturas. O que vi me fez decidir a batalhar para criar uma missão arqueológica com o objetivo único de estudar essa região.

A região sudeste do Piauí ocupa uma zona de fronteira entre duas grandes formações geológicas, o escudo cristalino do pré-cambriano e a bacia sedimentar Maranhão-Piauí, do Siluriano-Permiano. Esse foi o ponto básico sobre o qual apoiamos o nosso projeto de pesquisas: uma fronteira geológica se caracteriza pela diversidade de seus ecossistemas e pela abundância e diversidade dos produtos naturais. Nossa hipótese de base foi que essa diversidade e riqueza seriam motivos para facilitar o desenvolvimento cultural de povos que aí tenham se estabelecido, o que resultaria em uma população relativamente numerosa, com longa duração no tempo e com um padrão social que permitisse a evolução das tecnologias, tanto as de sobrevivência como as ligadas à vida espiritual. Anos depois, podemos afirmar que nossa hipótese de base foi demonstrada.

Nosso interesse inicial eram a arte rupestre, pinturas e gravuras. Logo na primeira missão de 1973, descobrimos 55 sítios, a maior parte com pinturas. Alguns eram aldeias em cujo solo abundavam cacos de cerâmica e objetos de pedra lascada e polida. Pensávamos, então, que esses sítios eram recentes pois, como todos os arqueólogos americanos, acreditávamos que a América havia sido povoada tardiamente e que a América do Sul havia sido a última parte da Terra a receber representantes do gênero Homo.

Nas primeiras missões nada mais fizemos do que documentar as pinturas rupestres e buscar dados sobre a região. Essa pesquisa bibliográfica demonstrou que nunca ninguém havia pesquisado naquela região e que nada se sabia sobre a mesma, nem sobre as bases físicas, nem sobre fauna e flora. Por esta razão, em 1978, transformamos nossa equipe de pesquisas, que passou a integrar especialistas de outras áreas, de modo a poder desenvolver um trabalho interdisciplinar que possibilitasse a definição do quadro atual, para que fosse possível fazer um estudo da evolução do clima e da paisagem. No mesmo ano realizamos as primeiras sondagens visando encontrar vestígios dos povos que haviam realizado as pinturas. Nesse mesmo ano solicitamos ao governo do Brasil a criação de um parque nacional de modo a criar as condições de proteção total para os sítios arqueológicos e para a natureza, então exuberante. Em junho de 1979, era criado o Parque Nacional Serra da Capivara.

Ao fio dos anos os trabalhos interdisciplinares foram progredindo, as pesquisas ampliando-se, muitos trabalhos de teses, de mestrado e de doutorado foram preparados na região, proporcionando assim uma quantidade de dados que nos permite traçar hoje um esboço da pré-história regional. Esse esboço irá sendo completado de modo a nos permitir, ao término dos trabalhos, contar a história desde a chegada dos primeiros grupos humanos até os dias atuais.

Nas épocas pré-históricas as condições ambientais eram muito diferentes. As escavações arqueológicas demonstraram que, até cerca de 9.000/8.000 anos atrás, existiam grandes rios e a região era coberta por florestas tropicais úmidas. Escavações realizadas no sítio Toca do Fundo do Baixão da Pedra Furada permitiram a descoberta de vestígios de origem européia (uma faca metálica) enterrada a 1,40 metros de profundidade, na margem de um antigo rio. Carvões encontrados em uma fogueira ao lado deram uma data carbono 14 (C-14) entre os anos de 1.640 e 1.730 de nossa era. Portanto, até essa data os rios corriam no vale da Pedra Furada. Uma vegetação abundante, perenifólia, assegurava a alimentação para a fauna, majoritariamente herbívora e de grande porte. Durante milênios, espécies da megafauna existiram na região e coabitaram com os grupos humanos que a povoavam. As espécies mais comuns da megafauna eram a preguiça gigante (Catonyx cuvieri e Eremotherium lundi), o tigre-de-dente-de-sabre (Smilodon populator), o mastodonte (Haplomastodon waringi), o tatu gigante (Glyptodon clavipes), as lhamas (Palaeolama major e Paleolama niedae) e cavalos (Hippidion bonaerensis e Hippidion sp.). Junto a esta fauna gigante, existiam também as espécies de médio e pequeno porte, que foram fontes de alimentação das populações que aí viviam.

Nesta região existem evidências de presença humana que remontam a 60.000 anos. O sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, escavado entre 1978 e 1988, forneceu a mais completa estratigrafia até hoje encontrada nas Américas (Parenti, 2002, Parenti et al, 1990, Guidon and Delibrias, 1986, Guidon et al., 1994). Hoje podemos afirmar que a entrada de Homo sapiens para o continente americano fez-se em vagas que, saindo de diferente lugares, seguiram diferentes caminhos e que as primeiras devem ter entrado na América entre 150.000 e 100.000 anos atrás. A razão nos faz supor que um continente como o americano, que vai do Pólo Norte ao Pólo Sul, deve ter sido ocupado a partir de diversos pontos de penetração, que incluem também a via marítima. Não devemos esquecer que o nível do mar variou durante as diferentes épocas, caracterizadas por avanços e recuos das glaciações e que, em certos momentos, chegou até a 150 metros abaixo do nível atual, o que significa que um maior número de ilhas afloravam e a plataforma continental era bem mais ampla.

Dispomos, para o sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, de 63 datações por C-14, realizadas em laboratórios da Europa, América e Austrália que permitiram o estabelecimento de uma coluna crono-estratigráfica sem inversões, que vai de 59.000 até 5.000 anos antes do presente (Parenti, 2002; Parenti et al., 1999; Santos et al., no prelo). Essas datações antigas levantaram objeções entre certos colegas americanos e a polêmica se instalou (Meltzer et al., 1994; Guidon et al., 1996). Objetavam esses colegas que as peças líticas podiam ser o resultado de lascamentos naturais, que os carvões eram o resultado de fogos naturais e que os fogões encontrados eram também formados por fenômenos naturais, diversos blocos caídos perto um do outro. Essas objeções foram destruídas por uma série de trabalhos feitos. Gisele Daltrini Felice (Felice, 2002) realizou uma série de sondagens, descendo a encosta do sítio, até o fundo do vale, subindo a encosta oposta até o paredão da cuesta. Se os carvões do sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada tivessem sido originados por incêndios naturais, a pesquisadora deveria ter encontrado as mesmas camadas de carvões nas encostas, ou no vale. Fora do sítio não foram encontradas camadas de carvões correspondentes às encontradas dentro do abrigo, o que elimina a possibilidade de fogos naturais. pois sabemos que o fogo sobe encostas e não é lógico pensar que ele se declarou unicamente dentro do abrigo que tem cerca de 70 metros de comprimento por 15 de largura. Análises ao microscópio de varredura, realizadas na Texas A & M University confirmam a origem antrópica dos lascamentos.

Os vestígios da cultura material descobertos indicam a existência de uma única primeira cultura, que atravessa os milênios inovando tecnicamente e fazendo escolhas entre os muitos recursos naturais disponíveis. Os instrumentos cortantes e pontiagudos, dos tipos facas, raspadores, perfuradores, são feitos em quartzo e quartzito. São peças líticas pouco trabalhadas, talhadas segundo as necessidades do momento, utilizadas e logo abandonadas. Os instrumentos são feitos de maneira a serem utilizados em funções gerais tais como cortar ou raspar sem que exista a procura da especialização. Os artefatos foram achados nos solos arqueológicos junto às estruturas de fogueiras. Dessas fogueiras foram extraídos os carvões de lenha que, submetidos a análises de C-14, forneceram as datações dos referidos solos arqueológicos e dos vestígios que neles foram encontrados. Enormes oficinas líticas, isto é locais onde os homens pré-históricos obtinham a matéria prima e a lascavam para fabricar ferramentas, foram descobertas, na região norte do Parque Nacional, em 2002. Eram locais junto a antigas quedas d'água, atualmente secas, nos quais afloram blocos de metaquartzito, rocha excelente para o lascamento. Em uma delas, milhares de vestígios líticos coalhavam o solo sobre uma superfície de cerca de 25.000 metros quadrados. A qualidade técnica das peças dessas oficinas é excelente, a mesma qualidade que é encontrada no paleolítico europeu ou na África. Serão realizadas escavações nesses locais buscando datar esses sítios.

A técnica de realização das ferramentas líticas também se transforma lenta mas marcadamente. Apesar de prosseguirem utilizando as matérias primas da indústria do Pleistoceno, passam a empregar também uma nova rocha, mais adequada ao lascamento: o sílex e a calcedônia, que devem procurar em certos locais específicos. O número e a diversidade dos tipos de ferramentas é maior. A manufatura dos instrumentos torna-se mais especializada e adequada às suas funções, esta procura da especificidade é uma das grandes diferenças com a tecnologia pleistocênica. São comuns os raspadores, facas, lascas retocadas, seixos lascados e percutores. Alguns artefatos apresentam marcas de intensa utilização permitindo observar o desgaste diferenciado. Neste período em que a tecnologia lítica se torna mais complexa e precisa, aparecem instrumentos novos, como as pontas de projétil. Junto à tecnologia cada vez mais requintada de lascamento aparecem técnicas de polimento em torno de 9.200 anos BP [Before present=antes do presente], datação de um machado de pedra polida descoberto nas escavações arqueológicas da Toca do Sítio do Meio. A utilização da argila para a realização de artefatos cerâmicos torna-se mais complexa. A utilização da argila, apenas secada ao sol, que devia caracterizar a tecnologia pleistocênica é substituída pelo emprego de procedimentos de queima, o que dá lugar ao aparecimento da cerâmica. A descoberta, na Toca do Sítio do Meio, de cacos de cerâmicas datados de 8.900 anos BP, situa cronologicamente essa técnica e envelhece o aparecimento da cerâmica no continente americano.

Muitos vestígios da cultura material do período mais antigo se desintegraram pela fragilidade de seu suporte. A cestaria, o trançado, tecnologias que devem ter existido, não suportaram os efeitos do tempo e da umidade. O mesmo aconteceu com os objetos feitos sobre matérias primas orgânicas.

Os abrigos sob rocha da serra não eram utilizados como lugares de habitação. Muitos deles tinham depressões rochosas onde acumulava-se água da chuva. Essas depressões são localmente denominadas caldeirões, sendo frequentadas para outros usos ou como pontos de caça, aproveitando a vinda de animais para beber. Como locais de moradia foram escolhidos outros espaços: locais mais abertos, na desembocadura de boqueirões, de vales largos, alto da chapada, perto de fontes de água, de rios ou córregos que eram abundantes nessa época úmida.

A mais importante característica cultural dos grupos étnicos desta região é ter desenvolvido um sistema de comunicação social através de um registro gráfico de caráter narrativo. No período pleistocênico, as populações já tinham atividades gráficas. Fragmentos de parede, com traços de pintura, foram achados caídos sobre solos arqueológicos. Neles as figuras desenhadas não são identificáveis, mas confirmam a prática dessa atividade. Sobre as paredes dos abrigos do Parque Nacional existe uma densa quantidade de pinturas rupestres realizadas durante milênios. As representações animais são muito diversificadas, sendo possível reconhecer espécies inexistentes hoje na região e outras totalmente extintas, como camelídeos e preguiças gigantes. Existem também reproduções de capivaras, veados galheiros, caranguejos, jacarés e certas espécies de peixes, hoje desaparecidas na área, extremamente árida para poder abrigá-las. Até agora já foram descobertos 550 sítios de arte rupestre, pinturas e gravuras, mais uma prova da antiguidade da presença humana na região e da prática rupestre.

Podemos seguir a evolução desta arte rupestre que, ao longo de cerca de 30.000 anos, mesmo mantendo os mesmos temas, mostra mudanças no que diz respeito às técnicas de desenho e pintura e na forma como dispunham as figuras sobre o suporte rochoso. Tivemos na região duas tradições, Nordeste e Agreste. A primeira apresenta um estilo inicial, Serra da Capivara, cuja característica é a eclosão do movimento, do dinamismo e da encenação esfuziante de alegria e ludismo. O estilo final, Serra Branca, se caracteriza pelos componentes ornamentais, as vestimentas e os cocares, que resulta em uma decoração gráfica muito particular que persiste e que contrasta com as características do estilo inicial. São adotadas formas de tipo retangular muito decoradas. Os grupos do estilo Serra Branca escolhem o caráter ornamental como seu traço de identificação étnica. Entre esses dois estilos podemos observar um processo evolutivo gradativo e lento, que forma o complexo Serra Talhada (Pessis, 1987, 1992, 1993, 1999).

Assim que as chuvas diminuíram, o clima atual começa a se instalar, a partir de 6.000 BP. A vegetação também diminui, as fontes de alimentação se tornam escassas e a megafauna desaparece totalmente da região, junto com as espécies dos ecossistemas úmidos. As transformações da vegetação e a extinção de uma parte da fauna não afetou a sobrevivência dos grupos humanos, que tinham como fonte de alimentação as espécies de médio e pequeno porte e que sobreviveram às transformações climáticas.

As escavações arqueológicas permitiram provar que os rios corriam na região até a chegada do colonizador que, cortando as florestas-galeria e queimando anualmente toda a região para cultivo da cana e a criação extensiva de gado, sendo o solo frágil e arenoso, provocou processos erosivos e o assoreamento dos vales. Até os primeiros anos da década de 80, parte da população que vivia fora dos povoados e cidades, ocupava abrigos, os mesmos que haviam sido pintados pelo homem pré-histórico. Aproveitavam a parede do fundo e o teto rochoso e construíam paredes de pau-a-pique na parte aberta, na frente. A fumaça de seus fogões e fornos de mandioca ou dos engenhos de açúcar destruíram muitas pinturas. Quando a equipe da Missão Franco-Brasileira iniciou os trabalhos na região os vales eram cobertos por florestas de angico, pau d'arco, aroeira e outras árvores de grande porte. Tudo foi cortado e queimado e hoje impera a caatinga arbustiva; processos erosivos imensos formaram vossorocas que avançam inexoravelmente, criando o deserto (Guidon et al., 2002). A cidade de São Raimundo Nonato era banhada pelo rio Piauí e, do alto da ponte, moradores pescavam. Cerca de 10 lagoas abrigavam garças, patos, toda sorte de fauna e flora aquáticas. Hoje todas foram aterradas, sofrendo o mesmo destino do rio Piauí, que não corre mais. De uma região verde, opulenta, habitada por um povo feliz e rico porque não passava fome e tinha tempo para criar uma civilização que nada deve a similares de todo o mundo, passamos a ser uma área em vias de desertificação, com a fauna e a flora exauridas, onde vive um povo que somente conhece a ignorância e a fome. Os pesquisadores e técnicos da equipe lutam hoje para que o imenso tesouro natural e cultural da região possa ser o motor para o desenvolvimento social e econômico. Assim, a arte rupestre pré-histórica e as maravilhas da natureza permitirão que o sudeste do Piauí volte a ser o que era até a chegada dos colonizadores: uma cultura de primeiro mundo!

Texto de Niéde Guidon
Fundação Museu do Homem Americano e Universidade Federal de Pernambuco