1. O índio, titular
de direitos
Os índios são seres
humanos e quando nascidos no território brasileiro são cidadãos brasileiros.
Essas afirmações apenas registram o mais do que óbvio. No entanto, o tratamento
que vem sendo dado aos índios brasileiros, as agressões às suas pessoas e
comunidades, as invasões mais ostensivas e atrevidas de suas terras, as ofensas
freqüentes, toleradas ou mesmo apoiadas por autoridades públicas, atingindo a
dignidade humana do índio e outros de seus direitos fundamentais, tudo isso
mostra a necessidade de um despertar de consciências.
Do ponto de vista
jurídico, é absolutamente necessário que as autoridades competentes para os
assuntos relacionados com os direitos dos índios e de suas comunidades exerçam,
efetivamente, suas atribuições legais, pois além das ações arbitrárias os
índios estão sendo vítimas de omissões das autoridades. Exemplo disso é o que
ocorre com a demarcação das terras indígenas, prevista em disposições textual
da Constituição de 1988. Com efeito, nos termos expressos e claros do artigo 67
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foi estabelecido o
seguinte: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de
cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. No entanto, passados mais
de dez anos da promulgação da Constituição ainda não se fez a demarcação de
quase a metade das terras indígenas, o que tem contribuído para encorajar as invasões
dessas terras e a prática de violências contra os índios, que freqüentemente
são tratados como criminosos quando reagem em defesa de suas terras e de suas
comunidades.
2. Direitos
constitucionais dos índios
A ostensiva agressão
aos índios e às comunidades indígenas, atingindo a pessoa, a cultura e as riquezas
existentes em seus territórios, começou com a chegada dos europeus ao Brasil no
final do século quinze, encontrando pouca resistência até muito recentemente.
Além dessas agressões, acrescentou-se com grande ênfase, nas últimas décadas, a
invasão dos territórios indígenas para usurpação das riquezas nelas existentes.
Nas últimas décadas, com a supervalorização do desenvolvimento econômico, houve
governos brasileiros que incentivaram a invasão de áreas indígenas sob pretexto
desenvolvimentista, alegando que a entrega das terras a grandes grupos
econômicos proporcionaria muito maior benefício ao povo brasileiro do que se
elas permanecessem ocupadas pelos índios. Tem sido tentada, também, a imposição
de parcerias para exploração econômica de terras indígenas, o que,
eventualmente, poderá ser benéfico para as comunidades indígenas, mas deve ser
decidido pelas próprias comunidades, sem coação e com o apoio necessário para
que se verifique se, realmente, haverá benefício ou prejuízo para os índios, num
momento imediato e a longo prazo. Um fato recente, de extraordinária
importância, que não pode ser ignorado por ninguém, sobretudo pelas autoridades
públicas e pelos operadores do direito, é que a Constituição brasileira de 1988
consagrou, de modo expresso e enfático, os direitos dos índios, que não dependem
mais da boa vontade dos outros para serem respeitados. São direitos,
constantes de normas constitucionais, que nenhuma pessoa ou empresa, nenhum
governo, legislador, juiz ou tribunal pode ignorar ou contrariar. Diz a
Constituição, no artigo 231, que são reconhecidos aos índios os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, acrescentando ainda
que compete à União demarcar essas terras e fazer respeitar todos os seus bens.
Os parágrafos 1º e 2º desse mesmo artigo são muito claros e incisivos na
afirmação de que os índios têm o direito de ocupar e usar com exclusividade essas
terras e todas as riquezas nelas existentes. Assim, pois, nem o presidente da
República nem qualquer outra autoridade pode obrigar o índio a desenvolver
certo tipo de exploração, a permitir que um terceiro use suas terras, a ter um
parceiro ou a compartilhar o uso da terra das riquezas nelas existentes, sob
pretexto algum ou a qualquer título.
Quanto à destinação
das terras dos índios, a Constituição deixa bem claro que só a comunidade
indígena ocupante tradicional da terra é quem pode decidir, livre de qualquer imposição,
direta ou indireta. Com efeito, na própria caracterização da terra indígena,
constante do parágrafo 1o. do artigo 231, está contida essa garantia, quando se
estabelece que as terras serão utilizadas para vários fins, incluindo as
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários à reprodução física e cultural da comunidade indígena, “segundo seus
usos, costumes e tradições”. Assim, pois, sobre a extensão dos direitos das
comunidades indígenas e a inconstitucionalidade de qualquer interferência
externa para expulsar o índio e substituí-lo na ocupação das terras, bem como
para reduzir a extensão da ocupação indígena ou, ainda, para direcionar,
mediante coação ostensiva ou disfarçada, o aproveitamento econômico das áreas e
de suas riquezas, não é preciso dizer mais.
Com relação aos
tremendos prejuízos que resultam para os índios e suas comunidades, dessas
invasões ilegais, existe já uma enorme quantidade de dados, resultantes,
sobretudo, de trabalhos feitos com grande dedicação e competência por
pesquisadores qualificados, especialmente antropólogos. Mantidos em suas terras,
podendo preservar suas culturas, que incluem, entre outras coisas, hábitos
alimentares e técnicas para a obtenção de alimentos, os índios irão,
gradativamente, conhecendo a cultura circundante e aprendendo a conviver com
ela. Expulsar o índio da terra que ele tradicionalmente ocupa, e da qual tira
os elementos indispensáveis à sua sobrevivência, e forçá-lo a conviver com os
vícios e a violência dos padrões capitalistas de convivência é condená-lo à degradação
física, psíquica e moral, apressando sua morte.
O reconhecimento de
que essa tragédia seria inevitável, a par do compromisso humanista de grande
número de constituintes, inspirou a expressa e clara afirmação dos direitos dos
índios na Constituição brasileira de 1988. A ênfase nesses direitos, com a
força de normas constitucionais, é um fator novo e poderoso na proteção da
pessoa do índio e das comunidades indígenas. Mas é indispensável que esses
direitos sejam eficientemente protegidos, defendidos e restaurados sempre que
sofrerem ameaça ou efetiva agressão, o que demanda o uso de meios adequados,
que operem com eficácia na sociedade circundante.
3. A proteção
judicial dos direitos indígenas
A proteção dos índios
brasileiros e de seus direitos sempre foi bastante precária, ficando na
dependência da boa vontade de pessoas e entidades, sem que houvesse meios
legais que pudessem ser usados com a mesma eficiência com que se protegiam
direitos de outros habitantes do território brasileiro. A legislação colonial
oscilou entre uma vaga proteção à liberdade dos índios, prevista em alguns
textos legais mas sem qualquer garantia de efetivação na prática, e a imposição
de medidas violentas, incluindo desde a expressa declaração de guerra aos
índios e a autorização para escravizá-los até o aldeamento compulsório para
“catequese e civilização”. A proclamação da independência brasileira pouco
adiantou aos índios, continuando a existir a ambigüidade legislativa, favorável
às invasões das terras indígenas e às violências contra a pessoa do índio e
suas comunidades.
A perspectiva
republicana de tratamento dos índios como seres humanos e de reconhecimento
legal de seus direitos foi frustrada pelo silêncio da Constituição brasileira
de 1891 quanto aos índios e suas terras. O primeiro avanço formal
significativo, em termos de proteção oficial aos índios, ocorreu com a
instituição do Serviço de Proteção ao Índio - SPI, pelo decreto número 8072, de
20 de junho de 1910, confirmado e ampliado pela lei número 5484, de 27 de junho
de 1928. Na realidade, porém, os meios para a efetiva proteção sempre foram
muito precários e apesar do esforço de algumas figuras notáveis do Direito,
como Inglez de Souza e Clóvis Bevilacqua, a efetiva proteção ficou restrita à
esfera administrativa, dependendo das iniciativas, do esforço e da dedicação de
funcionários especialmente sensíveis às injustiças praticadas contra os índios,
como foi o caso do general Rondon.
A partir de 1967
começam a ocorrer mudanças para melhor, pois a nova Constituição brasileira, de
24 de janeiro desse ano, apesar de suas limitações por ter sido feita durante o
regime militar, assegurou aos índios a posse permanente das terras por eles
ocupadas e o usufruto exclusivo das utilidades e riquezas nelas existentes.
Nesse mesmo ano foi estabelecida, por decreto, a instituição da Fundação
Nacional do Índio - FUNAI, que substituiu o SPI, tendo atribuições bem mais
amplas. Poucos anos depois, em 19 de dezembro de 1973, foi editada a lei número
6001, dispondo sobre o Estatuto do Índio. Além de estabelecer com clareza e
minúcia as normas relativas aos direitos dos índios sobre as terras por eles
ocupadas o Estatuto contém, também, algumas regras importantes sobre a defesa
dos direitos dos índios e das comunidades indígenas.
Pelo artigo 35 do
Estatuto ficou estabelecido que cabe ao órgão federal de assistência ao índio a
defesa judicial ou extrajudicial dos direitos dos silvícolas e das comunidades indígenas.
No artigo 36 está prevista a obrigação do governo da União de dar proteção à
posse indígena, ou por via administrativa ou através do Ministério Público, se
houver necessidade de medidas judiciais. Ficou também estabelecido o
litisconsórcio necessário da União, nas ações propostas pela FUNAI ou contra
ela. Finalmente, pelo artigo 37, deu-se legitimidade aos grupos tribais e às comunidades
indígenas para estarem em juízo em defesa de seus direitos, cabendo-lhes, nesse
caso, a assistência do Ministério Público ou da FUNAI.
O que se tem
verificado, na prática, é que a FUNAI tem contado com recursos muito inferiores
às suas necessidades, sendo, por isso, muito precária sua assistência aos
índios. E pelo fato de estar prevista a assistência da FUNAI, órgão
especializado, houve pequena participação do Ministério Público, até o advento
da Constituição de 1988. A par disso, havia um vício insuperável: a FUNAI, que
deveria garantir os direitos dos índios, entre os quais o direito à terra e às
riquezas nela existentes, impedindo a invasão por empresas e outras pessoas ou
entidades interessadas na exploração econômica, estava ligada ao Ministério do
Interior, que atuava em sentido oposto, buscando, em primeiro lugar, o
desenvolvimento econômico, considerando a ocupação indígena um obstáculo. Um
fato muito importante, que teve início no final da década de sessenta e que ganhou
intensidade com o passar do tempo, foi o despertar da consciência de grande
número de brasileiros para as exigências da dignidade humana e da justiça.
Nessa perspectiva ocorreu o crescimento substancial da presença de advogados na
defesa dos direitos dos índios. Até então quem realizava esse trabalho eram,
basicamente, os antropólogos, com pequena assistência de profissionais de
outras áreas, denunciando violências e procurando apoio político para sua
causa.
Houve, então, a
entrada dos operadores do direito, podendo-se mencionar, apenas a título exemplificativo,
a participação de advogados nos trabalhos de várias entidades que já
trabalhavam em favor do índio, como o Conselho Indigenista Missionário - CIMI,
a Comissão Pró-Índio de São Paulo, o Centro de Trabalho Indigenista e inúmeras
outras, em diferentes pontos do Brasil. Visando dar ênfase aos aspectos
jurídicos foi criado, em 1988, o Núcleo de Direitos Indígenas, com sede em Brasília,
tendo entre seus fundadores advogados, antropólogos e também índios. Um fator
novo na história brasileira e de extraordinária importância é a existência de
índios advogados, capazes de apreender o significado e a extensão dos direitos
de suas comunidades e de participar ativamente de sua defesa.
Finalmente, com a
Constituição de 1988 houve um extraordinário avanço na defesa dos direitos dos
índios e de suas comunidades. Alguns teóricos, especialmente juristas formados numa
concepção tradicionalista e conservadora, ainda consideram a questão indígena essencialmente
política, pois entendem que tratar os índios e as comunidades indígenas como entidades
autônomas é uma anomalia, devendo-se cuidar de sua rápida integração na
sociedade brasileira e de enquadrá-los no sistema legal comum a todos os
brasileiros. Para esses teóricos é absurdo “jurisdicizar” a questão indígena,
que para eles é apenas uma questão política e sociológica.
Essa posição,
essencialmente preconceituosa, ignora o fato de que os índios têm direitos
próprios afirmados e garantidos pela Constituição, além de terem todos os direitos
comuns aos brasileiros. A Constituição de 1988 consagrou, com bastante ênfase,
os direitos dos índios e das comunidades indígenas, inclusive o direito à
identidade cultural e o direito à ocupação permanente da terra e à
exclusividade no uso de seus recursos e na exploração de suas riquezas. Do
ponto de vista da garantia desses direitos dois pontos merecem especial
referência. Um deles foi a atribuição de competência à Justiça Federal para as
questões que envolvam direitos de índios.Isso foi importante porque em vários
Estados brasileiros, sobretudo onde há maior número de áreas indígenas, era
muito forte a influência das elites econômicas e políticas locais sobre o Poder
Judiciário, o que tornava muito difícil obter sucesso na defesa de direitos dos
índios contra os interesses daquelas elites. Embora seja visível essa
influência também em alguns juízes federais, no conjunto a mudança de
competência tem-se mostrado muito benéfica para os índios.
4. O Supremo Tribunal
Federal e os direitos dos índios
Como foi dito acima,
a Constituição brasileira de 1988 avançou consideravelmente na afirmação dos
direitos dos índios e das comunidades indígenas e na definição dos instrumentos
jurídicos de garantia desses direitos, estabelecendo os meios de acesso ao
Judiciário para efetivação desses direitos, quando ofendidos ou negados. Um
ponto muito positivo dessas inovações foi a atribuição de competência ao
Ministério Público para a defesa dos direitos dos índios e das comunidades
indígenas, já tendo ocorrido vários casos em que a atuação firme e independente
do Ministério Público foi de fundamental importância para a proteção desses
direitos.
Entretanto, muito
provavelmente por influência das oligarquias regionais e de poderosas forças
político-econômicas, até agora a proteção judicial dos direitos dos índios tem
sido muito precária nas regiões em que os interesses daquelas entidades entrou
em choque com os direitos constitucionais dos índios. Terras sabidamente
indígenas têm sido invadidas por agentes do setor de mineração ou da
agropecuária e a tentativa de resistência dos índios a essas violações de seus direitos
tem sido apresentada, com a colaboração de alguns órgãos da imprensa, como atos
de rebeldia praticados por criminosos. E houve diversos casos em que os índios
sofreram agressões físicas e acabaram presos, como se os invasores fossem
honestos e pacíficos empreendedores e trabalhadores, vítimas da selvageria dos
índios. E até agora não vinha sendo dada a devida proteção judicial aos
direitos dos índios.
Agora, por decisões
magistrais do Supremo Tribunal Federal, acaba de ter início uma nova fase no
tratamento judicial das questões relativas aos direitos dos índios, o que,
certamente, terá influência no desempenho das autoridades judiciárias federais
e estaduais das regiões em que é maior a presença indígena e, conseqüentemente,
são mais freqüentes e violentas as afrontas aos direitos que a Constituição,
expressa e claramente, assegura aos índios. Duas decisões recentes, sobre
questões que envolviam violências contra os índios, suas pessoas e seus
direitos, nos Estados de Roraima e da Bahia, foram objeto de firmes e vigorosas
decisões do Supremo Tribunal Federal, que assim desempenhou, em benefícios dos
índios, sua função primordial de guarda da Constituição. É oportuno e
conveniente ressaltar os pontos básicos dessas decisões, verdadeiramente
históricas.
a) Demarcação da
reserva Raposa Serra do Sol
Com base num voto
magistral do Ministro Carlos Ayres de Britto, o Supremo Tribunal Federal
proferiu uma decisão que ficará na história como um dos momentos de mais alta
inspiração ética e jurídica da Suprema Corte brasileira. Decidindo num processo
em que invasores de áreas notória e tradicionalmente pelos índios Yanomami
manifestaram a pretensão de anular a demarcação da área Raposa Serra do Sol,
vizinha do Estado de Roraima, a Suprema Corte decidiu pela manutenção da
demarcação em área contínua, o que corresponde à garantia constitucional, pois o
artigo 231 da Constituição, segundo o qual aos índios são reconhecidos “os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Os invasores das
terras indígenas pretendiam que só fossem reconhecidas como áreas indígenas as
pequenas porções de terras em que os índios têm suas residências. Assim,
negavam a realidade e ofendiam a Constituição, pois tradicionalmente, para sua sobrevivência
e sua vida comunitária os índios ocupam não só os lugares em que estão situadas
as aldeias em que residem, mas também as áreas circundantes, de onde retiram os
alimentos e tudo o mais de que necessitam para sobreviver, de acordo com suas
necessidades, habilidades e costumes.
Quem tem conhecimento
dos costumes indígenas daquela região e não procura negar a realidade para
defender interesses próprios ou de grupos políticos ou econômicos sabe que os
índios vivem e trabalham com suas famílias, inclusive fazendo plantações e
criando gado, respeitando a natureza e esperando das autoridades brasileiras o
apoio necessário para satisfação de suas necessidades básicas e garantia de
seus direitos. Além disso, não há qualquer dúvida de que os índios têm consciência
de seus direitos e são guardiões das terras que a Constituição lhes atribui,
não admitindo sua invasão por pessoas mal intencionadas, sejam brasileiros ou
estrangeiros, pedindo e esperando que a Polícia Federal e o Exército da
Amazônia lhes dêem o apoio necessário no caso de alguém afrontar seus direitos
constitucionais. Só por ignorância, preconceito ou má fé alguém poderá negar
essas realidades.
No caso da referida
decisão do Supremo Tribunal, baseada em substancioso, claro, preciso e muito
bem fundamentado voto do Relator, Ministro Carlos Britto, a Suprema Corte manteve
a demarcação em área contínua da reserva Raposa Serra do Sol, deixando bem
claro que os invasores de qualquer parte dessa área estão cometendo
ilegalidades e sabiam disso quando invadiram a área, devendo retirar-se
imediatamente. Assim, a questão foi definitivamente decidida, mas mesmo depois
disso os defensores dos interesses econômicos e políticos que se opõem aos direitos
dos índios e querem exterminá-los física e socialmente, utilizando os
arrozeiros, que são os invasores mais visíveis, como ponta de lança de suas
investidas, ainda ameaçam turvar o que é claríssimo, mostrando pouco ou nenhum
respeito pela Constituição e pelo Supremo Tribunal Federal. Nessa empreitada
infeliz chegam ao ridículo quando procuram simular teses jurídicas que invalidariam
os votos dos Ministros da Suprema Corte. Assim, alega-se que o reconhecimento
da reserva indígena afronta o direito constitucional de ir e vir de todos os
brasileiros. Nessa linha, seria coerente afirmar que o direito de propriedade
privada, urbana e rural, afronta o direito de ir e vir. Seria interessante
alguém procurar entrar na casa do advogado que sustentar essa esdrúxula tese, sem
sua permissão, alegando o direito de ir e vir.
Alega-se também, numa
demonstração de ignorância ou má fé, que a decisão do Supremo Tribunal vai
fazer o Estado de Roraima perder uma parte substancial de seu território. Quem conhece
a Constituição brasileira, e tem alguma noção de como ela foi elaborada, sabe
que a mesma Assembléia Constituinte, que em 1988 criou o Estado de Roraima,
decidiu que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios pertenceriam, como
pertencem, ao patrimônio da União. Assim, Roraima não
poderá perder o que nunca teve. Pretensos argumentos jurídicos, escandalosamente
falsos e maliciosos, contra os votos proferidos pelo Ministros do Supremo Tribunal
Federal não podem ser levados a sério, pois a proteção judicial, que é
definitiva e não comporta a reabertura da discussão, deu efetividade aos
direitos constitucionais dos índios.
Numa decisão
histórica o Supremo Tribunal Federal cumpriu sua função precípua, que é a guarda
da Constituição. E por meio dessa decisão efetivou a garantia dos direitos que
a Constituição confere aos índios. No dia 2 deste mês a Suprema Corte chegou à
decisão final num processo iniciado em 1982, há 30 anos, portanto, e cujo
julgamento tivera início em setembro de 2008. Trata-se de um caso de extrema
relevância social, pondo fim a uma situação de ilegalidade, injustiça e violência,
em que eram interessados imediatos os índios Pataxó-hã-hã-hãe, ocupantes
tradicionais de terras no Estado da Bahia. Na realidade, a decisão agora tomada
pelo Supremo Tribunal Federal será benéfica a todos os índios brasileiros,
muitos deles vítimas de poderosos invasores de suas terras, que além de terem a
superioridade econômica beneficiam-se também da cumplicidade e proteção de
políticos que atuam no âmbito nacional, bem como de autoridades estaduais.
Essa decisão do
Supremo Tribunal Federal contém peculiaridades de extrema relevância, sob
vários aspectos, a começar pela demonstração de que a Suprema Corte, agora sob
a Presidência do eminente Ministro Carlos Ayres de Brito, deverá ser mais
sensível aos casos em que, além de estar em questão a efetividade da
Constituição como norma jurídica superior da ordem jurídica brasileira, existem
situações gravemente conflituosas, que exigem solução rápida, baseada nas
disposições constitucionais e legais, para que cessem violências, armadas e
situacionais, que vitimam titulares de direitos sem força para protegê-los,
como vem acontecendo com os índios brasileiros. Ressalte-se que esse caso,
agora julgado, não constava da pauta previamente preparada para aquela sessão
do Supremo Tribunal, mas o Presidente da Suprema Corte levou em conta a situação
de extrema conflituosidade existente no local -o que, certamente, será superado
a partir da decisão judicial terminativa do conflito jurídico- e incluiu na
pauta essa matéria. A par disso, é também louvável a atitude da eminente
Ministra Carmen Lúcia, que deveria proferir o voto seguinte, continuando o
julgamento, e reconhecendo a extraordinária importância do caso deu-lhe preferência,
proferindo um voto verdadeiramente magistral, no qual ressalta que o
reconhecimento dos direitos dos índios tinha sólida base nos fatos e era uma
exigência de justiça, conforme à Constituição.
b) Restituição dos
direitos constitucionais da comunidade Pataxó
Pondo fim a uma
fraudulenta doação de terras indígenas, feita há muito tempo pelo governo do
Estado da Bahia, o Supremo Tribunal Federal proferiu outra decisão histórica. O
caso agora julgado em decisão final, reconhecendo os direitos da comunidade
Pataxó, localizada no Estado da Bahia, encerrou uma agressão antiga. Tudo teve
início com a invasão de terras indígenas por fazendeiros, apoiados por
oligarquias políticas locais, que consideraram fácil e muito conveniente
ampliar o seu patrimônio imobiliário invadindo terras indígenas. E assim
fizeram.
Existe aí um ponto de
fundamental importância que deve ser ressaltado: esses invasores de terras nada
pagaram por elas, simplesmente apossaram-se delas, não podendo, portanto,
alegar que sofreram um prejuízo econômico com o reconhecimento dos direitos dos
índios. Houve casos em que o governo do Estado da Bahia fez a doação das terras
indígenas aos que desejavam apossar-se delas, devendo-se ressaltar aqui outro
ponto fundamental: o Estado da Bahia não era proprietário daquelas terras nem
tinha qualquer direito sobre elas, não tendo, portanto, qualquer valor jurídico
o ato de doação.
Conforme dispõe
expressamente a Constituição, no artigo 231, são reconhecidos aos índios “os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”,
estabelecendo-se, no parágrafo 2º, que “as terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto
exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Por
disposição do artigo 20, inciso XI, da Constituição, “são bens da União “as
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. E pelo parágrafo 6º do artigo
231 da Constituição ficou estabelecido, com clareza, objetividade e bastante
ênfase, que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos
que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere
este artigo”, ou seja, as terras indígenas. Assim, portanto, não são
juridicamente válidas as doações, as vendas e compras ou qualquer outra espécie
de ajuste tendo por objeto áreas indígenas. A decisão agora tomada pelo Supremo
Tribunal Federal deu seguimento à votação iniciada em 2008, quanto o então
Ministro da Suprema Corte, Eros Grau, num voto muito bem fundamentado
reconheceu e afirmou os direitos dos Pataxó-hã-hã-hãe sobre as terras do Estado
da Bahia que, conforme ficou comprovado por laudo circunstanciado, são
tradicionalmente ocupadas por esses índios. E assim os Ministros do Supremo
Tribunal Federal exerceram sua função precípua e deram cumprimento às
determinações constitucionais. O único voto divergente, do ilustre Ministro
Marco Aurélio, foi extremamente infeliz do ponto de vista
jurídico-constitucional, ao contrário de outros votos do mesmo insigne
Ministro. Com efeito, o Ministro Marco Aurélio baseou toda a sua argumentação
na Constituição de 1967, contrariando a totalidade da doutrina constitucional
que dá absoluta superioridade aos preceitos de uma nova Constituição, que no
caso do Brasil é a de 1988, ora vigente, tornando sem efeito as disposições das
Constituições anteriores que com ela conflitem. Assim, disse o preclaro
Ministro que a Constituição de 1967 só protegia as terras habitadas pelos
índios, o que foi colocado no texto constitucional maliciosamente, sob a égide de
um governo ditatorial, para tirar dos índios a maior parte de seus territórios,
só lhes deixando as pequenas áreas das habitações, como se os grupos indígenas
pudessem sobreviver usando apenas o que estivesse dentro de suas casas.
Influenciado por fatores
não-jurídicos, o ilustre Ministro ignorou o que dispõe expressamente o artigo
231 da Constituição atualmente vigente, segundo o qual são assegurados aos índios
os direitos sobre “as terras que tradicionalmente ocupam”, com a extensão
expressamente fixada no parágrafo 1º desse artigo, segundo o qual “são terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições”. Essa é a norma constitucional vigente, não tendo qualquer cabimento
pretender aplicar agora a Constituição de 1967, há muito revogada. Para que se
perceba o absurdo dessa pretensão, basta lembrar a situação dos proprietários
de escravos após o advento da Constituição republicana de 1891. Seria
arrematado absurdo jurídico pretender que tinham o direito de exigir que os
negros comprados por eles continuassem a servir como escravos, porque tinham
feito a compra na vigência da Constituição de 1824.
5. Proteção judicial
dos direitos dos índios
Em conclusão, essas
decisões recentes, lúcidas e bem fundamentadas, do Supremo Tribunal Federal,
além de sua extraordinária importância por determinar o fim de situações
gravemente conflituosas, pois não havendo como alegar dúvidas jurídicas quanto
às áreas indígenas os invasores desses que pretenderem impor-se com violência,
valendo-se de sua superioridade de força, serão tratados, pura e simplesmente,
como criminosos. Tais decisões será também de grande importância para
desencorajar outros aventureiros que pretendam obter ganho fácil invadindo
terras indígenas, servindo também de advertência aos ocupantes de cargos de
governo ou detentores de mandato político que até agora buscaram tirar proveito
apoiando violências inconstitucionais contra os direitos das comunidades
indígenas. Os vencedores imediatos foram os índios, mas numa visão mais ampla
quem venceu foi o povo brasileiro, que viu reafirmada, pela mais alta Corte do
País, a supremacia da Constituição, com a garantia de sua efetividade.
Com toda a certeza, a partir de agora os índios brasileiros poderão contar, em qualquer parte da federação brasileira, com a garantia judicial de seus direitos, pois as decisões do Supremo Tribunal Federal, muito bem fundamentadas, eliminaram a possibilidade de alegação de dúvidas a respeito da natureza e da extensão dos direitos das comunidades indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. E com a efetiva proteção do Poder Judiciário os índios brasileiros estarão realmente integrados na sociedade brasileira, gozando dos direitos que lhes são assegurados pela Constituição.
Texto de Dalmo de
Abreu Dallari