domingo, 24 de fevereiro de 2013

GARANTIA JUDICIAL DOS DIREITOS DOS ÍNDIOS

1. O índio, titular de direitos
Os índios são seres humanos e quando nascidos no território brasileiro são cidadãos brasileiros. Essas afirmações apenas registram o mais do que óbvio. No entanto, o tratamento que vem sendo dado aos índios brasileiros, as agressões às suas pessoas e comunidades, as invasões mais ostensivas e atrevidas de suas terras, as ofensas freqüentes, toleradas ou mesmo apoiadas por autoridades públicas, atingindo a dignidade humana do índio e outros de seus direitos fundamentais, tudo isso mostra a necessidade de um despertar de consciências.

Do ponto de vista jurídico, é absolutamente necessário que as autoridades competentes para os assuntos relacionados com os direitos dos índios e de suas comunidades exerçam, efetivamente, suas atribuições legais, pois além das ações arbitrárias os índios estão sendo vítimas de omissões das autoridades. Exemplo disso é o que ocorre com a demarcação das terras indígenas, prevista em disposições textual da Constituição de 1988. Com efeito, nos termos expressos e claros do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foi estabelecido o seguinte: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. No entanto, passados mais de dez anos da promulgação da Constituição ainda não se fez a demarcação de quase a metade das terras indígenas, o que tem contribuído para encorajar as invasões dessas terras e a prática de violências contra os índios, que freqüentemente são tratados como criminosos quando reagem em defesa de suas terras e de suas comunidades.

2. Direitos constitucionais dos índios
A ostensiva agressão aos índios e às comunidades indígenas, atingindo a pessoa, a cultura e as riquezas existentes em seus territórios, começou com a chegada dos europeus ao Brasil no final do século quinze, encontrando pouca resistência até muito recentemente. Além dessas agressões, acrescentou-se com grande ênfase, nas últimas décadas, a invasão dos territórios indígenas para usurpação das riquezas nelas existentes. Nas últimas décadas, com a supervalorização do desenvolvimento econômico, houve governos brasileiros que incentivaram a invasão de áreas indígenas sob pretexto desenvolvimentista, alegando que a entrega das terras a grandes grupos econômicos proporcionaria muito maior benefício ao povo brasileiro do que se elas permanecessem ocupadas pelos índios. Tem sido tentada, também, a imposição de parcerias para exploração econômica de terras indígenas, o que, eventualmente, poderá ser benéfico para as comunidades indígenas, mas deve ser decidido pelas próprias comunidades, sem coação e com o apoio necessário para que se verifique se, realmente, haverá benefício ou prejuízo para os índios, num momento imediato e a longo prazo. Um fato recente, de extraordinária importância, que não pode ser ignorado por ninguém, sobretudo pelas autoridades públicas e pelos operadores do direito, é que a Constituição brasileira de 1988 consagrou, de modo expresso e enfático, os direitos dos índios, que não dependem mais da boa vontade dos outros para serem respeitados. São direitos, constantes de normas constitucionais, que nenhuma pessoa ou empresa, nenhum governo, legislador, juiz ou tribunal pode ignorar ou contrariar. Diz a Constituição, no artigo 231, que são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, acrescentando ainda que compete à União demarcar essas terras e fazer respeitar todos os seus bens. Os parágrafos 1º e 2º desse mesmo artigo são muito claros e incisivos na afirmação de que os índios têm o direito de ocupar e usar com exclusividade essas terras e todas as riquezas nelas existentes. Assim, pois, nem o presidente da República nem qualquer outra autoridade pode obrigar o índio a desenvolver certo tipo de exploração, a permitir que um terceiro use suas terras, a ter um parceiro ou a compartilhar o uso da terra das riquezas nelas existentes, sob pretexto algum ou a qualquer título.

Quanto à destinação das terras dos índios, a Constituição deixa bem claro que só a comunidade indígena ocupante tradicional da terra é quem pode decidir, livre de qualquer imposição, direta ou indireta. Com efeito, na própria caracterização da terra indígena, constante do parágrafo 1o. do artigo 231, está contida essa garantia, quando se estabelece que as terras serão utilizadas para vários fins, incluindo as atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários à reprodução física e cultural da comunidade indígena, “segundo seus usos, costumes e tradições”. Assim, pois, sobre a extensão dos direitos das comunidades indígenas e a inconstitucionalidade de qualquer interferência externa para expulsar o índio e substituí-lo na ocupação das terras, bem como para reduzir a extensão da ocupação indígena ou, ainda, para direcionar, mediante coação ostensiva ou disfarçada, o aproveitamento econômico das áreas e de suas riquezas, não é preciso dizer mais.

Com relação aos tremendos prejuízos que resultam para os índios e suas comunidades, dessas invasões ilegais, existe já uma enorme quantidade de dados, resultantes, sobretudo, de trabalhos feitos com grande dedicação e competência por pesquisadores qualificados, especialmente antropólogos. Mantidos em suas terras, podendo preservar suas culturas, que incluem, entre outras coisas, hábitos alimentares e técnicas para a obtenção de alimentos, os índios irão, gradativamente, conhecendo a cultura circundante e aprendendo a conviver com ela. Expulsar o índio da terra que ele tradicionalmente ocupa, e da qual tira os elementos indispensáveis à sua sobrevivência, e forçá-lo a conviver com os vícios e a violência dos padrões capitalistas de convivência é condená-lo à degradação física, psíquica e moral, apressando sua morte.

O reconhecimento de que essa tragédia seria inevitável, a par do compromisso humanista de grande número de constituintes, inspirou a expressa e clara afirmação dos direitos dos índios na Constituição brasileira de 1988. A ênfase nesses direitos, com a força de normas constitucionais, é um fator novo e poderoso na proteção da pessoa do índio e das comunidades indígenas. Mas é indispensável que esses direitos sejam eficientemente protegidos, defendidos e restaurados sempre que sofrerem ameaça ou efetiva agressão, o que demanda o uso de meios adequados, que operem com eficácia na sociedade circundante.

3. A proteção judicial dos direitos indígenas
A proteção dos índios brasileiros e de seus direitos sempre foi bastante precária, ficando na dependência da boa vontade de pessoas e entidades, sem que houvesse meios legais que pudessem ser usados com a mesma eficiência com que se protegiam direitos de outros habitantes do território brasileiro. A legislação colonial oscilou entre uma vaga proteção à liberdade dos índios, prevista em alguns textos legais mas sem qualquer garantia de efetivação na prática, e a imposição de medidas violentas, incluindo desde a expressa declaração de guerra aos índios e a autorização para escravizá-los até o aldeamento compulsório para “catequese e civilização”. A proclamação da independência brasileira pouco adiantou aos índios, continuando a existir a ambigüidade legislativa, favorável às invasões das terras indígenas e às violências contra a pessoa do índio e suas comunidades.

A perspectiva republicana de tratamento dos índios como seres humanos e de reconhecimento legal de seus direitos foi frustrada pelo silêncio da Constituição brasileira de 1891 quanto aos índios e suas terras. O primeiro avanço formal significativo, em termos de proteção oficial aos índios, ocorreu com a instituição do Serviço de Proteção ao Índio - SPI, pelo decreto número 8072, de 20 de junho de 1910, confirmado e ampliado pela lei número 5484, de 27 de junho de 1928. Na realidade, porém, os meios para a efetiva proteção sempre foram muito precários e apesar do esforço de algumas figuras notáveis do Direito, como Inglez de Souza e Clóvis Bevilacqua, a efetiva proteção ficou restrita à esfera administrativa, dependendo das iniciativas, do esforço e da dedicação de funcionários especialmente sensíveis às injustiças praticadas contra os índios, como foi o caso do general Rondon.

A partir de 1967 começam a ocorrer mudanças para melhor, pois a nova Constituição brasileira, de 24 de janeiro desse ano, apesar de suas limitações por ter sido feita durante o regime militar, assegurou aos índios a posse permanente das terras por eles ocupadas e o usufruto exclusivo das utilidades e riquezas nelas existentes. Nesse mesmo ano foi estabelecida, por decreto, a instituição da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, que substituiu o SPI, tendo atribuições bem mais amplas. Poucos anos depois, em 19 de dezembro de 1973, foi editada a lei número 6001, dispondo sobre o Estatuto do Índio. Além de estabelecer com clareza e minúcia as normas relativas aos direitos dos índios sobre as terras por eles ocupadas o Estatuto contém, também, algumas regras importantes sobre a defesa dos direitos dos índios e das comunidades indígenas.

Pelo artigo 35 do Estatuto ficou estabelecido que cabe ao órgão federal de assistência ao índio a defesa judicial ou extrajudicial dos direitos dos silvícolas e das comunidades indígenas. No artigo 36 está prevista a obrigação do governo da União de dar proteção à posse indígena, ou por via administrativa ou através do Ministério Público, se houver necessidade de medidas judiciais. Ficou também estabelecido o litisconsórcio necessário da União, nas ações propostas pela FUNAI ou contra ela. Finalmente, pelo artigo 37, deu-se legitimidade aos grupos tribais e às comunidades indígenas para estarem em juízo em defesa de seus direitos, cabendo-lhes, nesse caso, a assistência do Ministério Público ou da FUNAI.

O que se tem verificado, na prática, é que a FUNAI tem contado com recursos muito inferiores às suas necessidades, sendo, por isso, muito precária sua assistência aos índios. E pelo fato de estar prevista a assistência da FUNAI, órgão especializado, houve pequena participação do Ministério Público, até o advento da Constituição de 1988. A par disso, havia um vício insuperável: a FUNAI, que deveria garantir os direitos dos índios, entre os quais o direito à terra e às riquezas nela existentes, impedindo a invasão por empresas e outras pessoas ou entidades interessadas na exploração econômica, estava ligada ao Ministério do Interior, que atuava em sentido oposto, buscando, em primeiro lugar, o desenvolvimento econômico, considerando a ocupação indígena um obstáculo. Um fato muito importante, que teve início no final da década de sessenta e que ganhou intensidade com o passar do tempo, foi o despertar da consciência de grande número de brasileiros para as exigências da dignidade humana e da justiça. Nessa perspectiva ocorreu o crescimento substancial da presença de advogados na defesa dos direitos dos índios. Até então quem realizava esse trabalho eram, basicamente, os antropólogos, com pequena assistência de profissionais de outras áreas, denunciando violências e procurando apoio político para sua causa.

Houve, então, a entrada dos operadores do direito, podendo-se mencionar, apenas a título exemplificativo, a participação de advogados nos trabalhos de várias entidades que já trabalhavam em favor do índio, como o Conselho Indigenista Missionário - CIMI, a Comissão Pró-Índio de São Paulo, o Centro de Trabalho Indigenista e inúmeras outras, em diferentes pontos do Brasil. Visando dar ênfase aos aspectos jurídicos foi criado, em 1988, o Núcleo de Direitos Indígenas, com sede em Brasília, tendo entre seus fundadores advogados, antropólogos e também índios. Um fator novo na história brasileira e de extraordinária importância é a existência de índios advogados, capazes de apreender o significado e a extensão dos direitos de suas comunidades e de participar ativamente de sua defesa.

Finalmente, com a Constituição de 1988 houve um extraordinário avanço na defesa dos direitos dos índios e de suas comunidades. Alguns teóricos, especialmente juristas formados numa concepção tradicionalista e conservadora, ainda consideram a questão indígena essencialmente política, pois entendem que tratar os índios e as comunidades indígenas como entidades autônomas é uma anomalia, devendo-se cuidar de sua rápida integração na sociedade brasileira e de enquadrá-los no sistema legal comum a todos os brasileiros. Para esses teóricos é absurdo “jurisdicizar” a questão indígena, que para eles é apenas uma questão política e sociológica.

Essa posição, essencialmente preconceituosa, ignora o fato de que os índios têm direitos próprios afirmados e garantidos pela Constituição, além de terem todos os direitos comuns aos brasileiros. A Constituição de 1988 consagrou, com bastante ênfase, os direitos dos índios e das comunidades indígenas, inclusive o direito à identidade cultural e o direito à ocupação permanente da terra e à exclusividade no uso de seus recursos e na exploração de suas riquezas. Do ponto de vista da garantia desses direitos dois pontos merecem especial referência. Um deles foi a atribuição de competência à Justiça Federal para as questões que envolvam direitos de índios.Isso foi importante porque em vários Estados brasileiros, sobretudo onde há maior número de áreas indígenas, era muito forte a influência das elites econômicas e políticas locais sobre o Poder Judiciário, o que tornava muito difícil obter sucesso na defesa de direitos dos índios contra os interesses daquelas elites. Embora seja visível essa influência também em alguns juízes federais, no conjunto a mudança de competência tem-se mostrado muito benéfica para os índios.

4. O Supremo Tribunal Federal e os direitos dos índios
Como foi dito acima, a Constituição brasileira de 1988 avançou consideravelmente na afirmação dos direitos dos índios e das comunidades indígenas e na definição dos instrumentos jurídicos de garantia desses direitos, estabelecendo os meios de acesso ao Judiciário para efetivação desses direitos, quando ofendidos ou negados. Um ponto muito positivo dessas inovações foi a atribuição de competência ao Ministério Público para a defesa dos direitos dos índios e das comunidades indígenas, já tendo ocorrido vários casos em que a atuação firme e independente do Ministério Público foi de fundamental importância para a proteção desses direitos.

Entretanto, muito provavelmente por influência das oligarquias regionais e de poderosas forças político-econômicas, até agora a proteção judicial dos direitos dos índios tem sido muito precária nas regiões em que os interesses daquelas entidades entrou em choque com os direitos constitucionais dos índios. Terras sabidamente indígenas têm sido invadidas por agentes do setor de mineração ou da agropecuária e a tentativa de resistência dos índios a essas violações de seus direitos tem sido apresentada, com a colaboração de alguns órgãos da imprensa, como atos de rebeldia praticados por criminosos. E houve diversos casos em que os índios sofreram agressões físicas e acabaram presos, como se os invasores fossem honestos e pacíficos empreendedores e trabalhadores, vítimas da selvageria dos índios. E até agora não vinha sendo dada a devida proteção judicial aos direitos dos índios.

Agora, por decisões magistrais do Supremo Tribunal Federal, acaba de ter início uma nova fase no tratamento judicial das questões relativas aos direitos dos índios, o que, certamente, terá influência no desempenho das autoridades judiciárias federais e estaduais das regiões em que é maior a presença indígena e, conseqüentemente, são mais freqüentes e violentas as afrontas aos direitos que a Constituição, expressa e claramente, assegura aos índios. Duas decisões recentes, sobre questões que envolviam violências contra os índios, suas pessoas e seus direitos, nos Estados de Roraima e da Bahia, foram objeto de firmes e vigorosas decisões do Supremo Tribunal Federal, que assim desempenhou, em benefícios dos índios, sua função primordial de guarda da Constituição. É oportuno e conveniente ressaltar os pontos básicos dessas decisões, verdadeiramente históricas.

a) Demarcação da reserva Raposa Serra do Sol
Com base num voto magistral do Ministro Carlos Ayres de Britto, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão que ficará na história como um dos momentos de mais alta inspiração ética e jurídica da Suprema Corte brasileira. Decidindo num processo em que invasores de áreas notória e tradicionalmente pelos índios Yanomami manifestaram a pretensão de anular a demarcação da área Raposa Serra do Sol, vizinha do Estado de Roraima, a Suprema Corte decidiu pela manutenção da demarcação em área contínua, o que corresponde à garantia constitucional, pois o artigo 231 da Constituição, segundo o qual aos índios são reconhecidos “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Os invasores das terras indígenas pretendiam que só fossem reconhecidas como áreas indígenas as pequenas porções de terras em que os índios têm suas residências. Assim, negavam a realidade e ofendiam a Constituição, pois tradicionalmente, para sua sobrevivência e sua vida comunitária os índios ocupam não só os lugares em que estão situadas as aldeias em que residem, mas também as áreas circundantes, de onde retiram os alimentos e tudo o mais de que necessitam para sobreviver, de acordo com suas necessidades, habilidades e costumes.

Quem tem conhecimento dos costumes indígenas daquela região e não procura negar a realidade para defender interesses próprios ou de grupos políticos ou econômicos sabe que os índios vivem e trabalham com suas famílias, inclusive fazendo plantações e criando gado, respeitando a natureza e esperando das autoridades brasileiras o apoio necessário para satisfação de suas necessidades básicas e garantia de seus direitos. Além disso, não há qualquer dúvida de que os índios têm consciência de seus direitos e são guardiões das terras que a Constituição lhes atribui, não admitindo sua invasão por pessoas mal intencionadas, sejam brasileiros ou estrangeiros, pedindo e esperando que a Polícia Federal e o Exército da Amazônia lhes dêem o apoio necessário no caso de alguém afrontar seus direitos constitucionais. Só por ignorância, preconceito ou má fé alguém poderá negar essas realidades.

No caso da referida decisão do Supremo Tribunal, baseada em substancioso, claro, preciso e muito bem fundamentado voto do Relator, Ministro Carlos Britto, a Suprema Corte manteve a demarcação em área contínua da reserva Raposa Serra do Sol, deixando bem claro que os invasores de qualquer parte dessa área estão cometendo ilegalidades e sabiam disso quando invadiram a área, devendo retirar-se imediatamente. Assim, a questão foi definitivamente decidida, mas mesmo depois disso os defensores dos interesses econômicos e políticos que se opõem aos direitos dos índios e querem exterminá-los física e socialmente, utilizando os arrozeiros, que são os invasores mais visíveis, como ponta de lança de suas investidas, ainda ameaçam turvar o que é claríssimo, mostrando pouco ou nenhum respeito pela Constituição e pelo Supremo Tribunal Federal. Nessa empreitada infeliz chegam ao ridículo quando procuram simular teses jurídicas que invalidariam os votos dos Ministros da Suprema Corte. Assim, alega-se que o reconhecimento da reserva indígena afronta o direito constitucional de ir e vir de todos os brasileiros. Nessa linha, seria coerente afirmar que o direito de propriedade privada, urbana e rural, afronta o direito de ir e vir. Seria interessante alguém procurar entrar na casa do advogado que sustentar essa esdrúxula tese, sem sua permissão, alegando o direito de ir e vir.

Alega-se também, numa demonstração de ignorância ou má fé, que a decisão do Supremo Tribunal vai fazer o Estado de Roraima perder uma parte substancial de seu território. Quem conhece a Constituição brasileira, e tem alguma noção de como ela foi elaborada, sabe que a mesma Assembléia Constituinte, que em 1988 criou o Estado de Roraima, decidiu que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios pertenceriam, como pertencem, ao patrimônio da União. Assim, Roraima não poderá perder o que nunca teve. Pretensos argumentos jurídicos, escandalosamente falsos e maliciosos, contra os votos proferidos pelo Ministros do Supremo Tribunal Federal não podem ser levados a sério, pois a proteção judicial, que é definitiva e não comporta a reabertura da discussão, deu efetividade aos direitos constitucionais dos índios.

Numa decisão histórica o Supremo Tribunal Federal cumpriu sua função precípua, que é a guarda da Constituição. E por meio dessa decisão efetivou a garantia dos direitos que a Constituição confere aos índios. No dia 2 deste mês a Suprema Corte chegou à decisão final num processo iniciado em 1982, há 30 anos, portanto, e cujo julgamento tivera início em setembro de 2008. Trata-se de um caso de extrema relevância social, pondo fim a uma situação de ilegalidade, injustiça e violência, em que eram interessados imediatos os índios Pataxó-hã-hã-hãe, ocupantes tradicionais de terras no Estado da Bahia. Na realidade, a decisão agora tomada pelo Supremo Tribunal Federal será benéfica a todos os índios brasileiros, muitos deles vítimas de poderosos invasores de suas terras, que além de terem a superioridade econômica beneficiam-se também da cumplicidade e proteção de políticos que atuam no âmbito nacional, bem como de autoridades estaduais.

Essa decisão do Supremo Tribunal Federal contém peculiaridades de extrema relevância, sob vários aspectos, a começar pela demonstração de que a Suprema Corte, agora sob a Presidência do eminente Ministro Carlos Ayres de Brito, deverá ser mais sensível aos casos em que, além de estar em questão a efetividade da Constituição como norma jurídica superior da ordem jurídica brasileira, existem situações gravemente conflituosas, que exigem solução rápida, baseada nas disposições constitucionais e legais, para que cessem violências, armadas e situacionais, que vitimam titulares de direitos sem força para protegê-los, como vem acontecendo com os índios brasileiros. Ressalte-se que esse caso, agora julgado, não constava da pauta previamente preparada para aquela sessão do Supremo Tribunal, mas o Presidente da Suprema Corte levou em conta a situação de extrema conflituosidade existente no local -o que, certamente, será superado a partir da decisão judicial terminativa do conflito jurídico- e incluiu na pauta essa matéria. A par disso, é também louvável a atitude da eminente Ministra Carmen Lúcia, que deveria proferir o voto seguinte, continuando o julgamento, e reconhecendo a extraordinária importância do caso deu-lhe preferência, proferindo um voto verdadeiramente magistral, no qual ressalta que o reconhecimento dos direitos dos índios tinha sólida base nos fatos e era uma exigência de justiça, conforme à Constituição.

b) Restituição dos direitos constitucionais da comunidade Pataxó
Pondo fim a uma fraudulenta doação de terras indígenas, feita há muito tempo pelo governo do Estado da Bahia, o Supremo Tribunal Federal proferiu outra decisão histórica. O caso agora julgado em decisão final, reconhecendo os direitos da comunidade Pataxó, localizada no Estado da Bahia, encerrou uma agressão antiga. Tudo teve início com a invasão de terras indígenas por fazendeiros, apoiados por oligarquias políticas locais, que consideraram fácil e muito conveniente ampliar o seu patrimônio imobiliário invadindo terras indígenas. E assim fizeram.

Existe aí um ponto de fundamental importância que deve ser ressaltado: esses invasores de terras nada pagaram por elas, simplesmente apossaram-se delas, não podendo, portanto, alegar que sofreram um prejuízo econômico com o reconhecimento dos direitos dos índios. Houve casos em que o governo do Estado da Bahia fez a doação das terras indígenas aos que desejavam apossar-se delas, devendo-se ressaltar aqui outro ponto fundamental: o Estado da Bahia não era proprietário daquelas terras nem tinha qualquer direito sobre elas, não tendo, portanto, qualquer valor jurídico o ato de doação.

Conforme dispõe expressamente a Constituição, no artigo 231, são reconhecidos aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, estabelecendo-se, no parágrafo 2º, que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Por disposição do artigo 20, inciso XI, da Constituição, “são bens da União “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. E pelo parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição ficou estabelecido, com clareza, objetividade e bastante ênfase, que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo”, ou seja, as terras indígenas. Assim, portanto, não são juridicamente válidas as doações, as vendas e compras ou qualquer outra espécie de ajuste tendo por objeto áreas indígenas. A decisão agora tomada pelo Supremo Tribunal Federal deu seguimento à votação iniciada em 2008, quanto o então Ministro da Suprema Corte, Eros Grau, num voto muito bem fundamentado reconheceu e afirmou os direitos dos Pataxó-hã-hã-hãe sobre as terras do Estado da Bahia que, conforme ficou comprovado por laudo circunstanciado, são tradicionalmente ocupadas por esses índios. E assim os Ministros do Supremo Tribunal Federal exerceram sua função precípua e deram cumprimento às determinações constitucionais. O único voto divergente, do ilustre Ministro Marco Aurélio, foi extremamente infeliz do ponto de vista jurídico-constitucional, ao contrário de outros votos do mesmo insigne Ministro. Com efeito, o Ministro Marco Aurélio baseou toda a sua argumentação na Constituição de 1967, contrariando a totalidade da doutrina constitucional que dá absoluta superioridade aos preceitos de uma nova Constituição, que no caso do Brasil é a de 1988, ora vigente, tornando sem efeito as disposições das Constituições anteriores que com ela conflitem. Assim, disse o preclaro Ministro que a Constituição de 1967 só protegia as terras habitadas pelos índios, o que foi colocado no texto constitucional maliciosamente, sob a égide de um governo ditatorial, para tirar dos índios a maior parte de seus territórios, só lhes deixando as pequenas áreas das habitações, como se os grupos indígenas pudessem sobreviver usando apenas o que estivesse dentro de suas casas.

Influenciado por fatores não-jurídicos, o ilustre Ministro ignorou o que dispõe expressamente o artigo 231 da Constituição atualmente vigente, segundo o qual são assegurados aos índios os direitos sobre “as terras que tradicionalmente ocupam”, com a extensão expressamente fixada no parágrafo 1º desse artigo, segundo o qual “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Essa é a norma constitucional vigente, não tendo qualquer cabimento pretender aplicar agora a Constituição de 1967, há muito revogada. Para que se perceba o absurdo dessa pretensão, basta lembrar a situação dos proprietários de escravos após o advento da Constituição republicana de 1891. Seria arrematado absurdo jurídico pretender que tinham o direito de exigir que os negros comprados por eles continuassem a servir como escravos, porque tinham feito a compra na vigência da Constituição de 1824.

5. Proteção judicial dos direitos dos índios
Em conclusão, essas decisões recentes, lúcidas e bem fundamentadas, do Supremo Tribunal Federal, além de sua extraordinária importância por determinar o fim de situações gravemente conflituosas, pois não havendo como alegar dúvidas jurídicas quanto às áreas indígenas os invasores desses que pretenderem impor-se com violência, valendo-se de sua superioridade de força, serão tratados, pura e simplesmente, como criminosos. Tais decisões será também de grande importância para desencorajar outros aventureiros que pretendam obter ganho fácil invadindo terras indígenas, servindo também de advertência aos ocupantes de cargos de governo ou detentores de mandato político que até agora buscaram tirar proveito apoiando violências inconstitucionais contra os direitos das comunidades indígenas. Os vencedores imediatos foram os índios, mas numa visão mais ampla quem venceu foi o povo brasileiro, que viu reafirmada, pela mais alta Corte do País, a supremacia da Constituição, com a garantia de sua efetividade.
 
Com toda a certeza, a partir de agora os índios brasileiros poderão contar, em qualquer parte da federação brasileira, com a garantia judicial de seus direitos, pois as decisões do Supremo Tribunal Federal, muito bem fundamentadas, eliminaram a possibilidade de alegação de dúvidas a respeito da natureza e da extensão dos direitos das comunidades indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. E com a efetiva proteção do Poder Judiciário os índios brasileiros estarão realmente integrados na sociedade brasileira, gozando dos direitos que lhes são assegurados pela Constituição.

Texto de Dalmo de Abreu Dallari

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

LEI DA MÃE TERRA


O presidente boliviano, Evo Morales, encerrou no último dia 15 de janeiro um importante ciclo de luta contra o latifúndio no país, quando promulgou a LEI DA MÃE TERRA E DESENVOLVIMENTO INTEGRAL PARA O BEM VIVER. Com ela, o Estado pretende equilibrar a posse da terra e garantir direitos à natureza, visando em última instância que as pessoas possam viver bem, com qualidade e em harmonia com a terra. "Temos que trabalhar para viver bem e garantir o que necessitamos. Não mais que isso", afirmou o presidente, para o qual o consumo desenfreado capitalista é um dos grandes responsáveis pela destruição do planeta.

Quando Evo Morales assumiu o governo em 2006 a Bolívia praticamente não tinha uma lei que garantisse a legalidade das terras comunais, assim como crescia o latifúndio na região oriental, inclusive garantido na famosa reforma de 1953, a qual permitia que uma única propriedade pudesse ter até 50 mil hectares. Não foi sem razão que partiu de Santa Cruz de La Sierra a primeira grande onda de protesto contra o governo de Morales, ainda em 2008, quando a Bolívia chegou quase a uma convulsão social patrocinada pelos fazendeiros da região. Eles não queriam a aprovação, na Constituição, do limite de até 5 mil hectares propriedade. Naqueles dias houve um plebiscito sobre o tema e mais de 80% do país votou favorável a diminuição do tamanho da propriedade. Era uma primeira queda de braço vencida.

Agora, essa nova legislação, nascida do debate permanente com a organizações sociais, garante a proteção da Mãe Terra, assim como recupera e fortalece os saberes locais e conhecimentos ancestrais. O capítulo I trata dos objetivos e princípios. No artigo primeiro fica estabelecido que é dever do Estado Plurinacional e da sociedade garantir os direitos da Terra. No artigo segundo estão definidos os princípios que regem a lei: harmonia (a ação humana deve equilibrar-se com os ciclos e processo da terra), bem coletivo (os interesses sociais e coletivos são mais importantes que os interesses individuais), garantia de recuperação da terra (deve-se dar tempo para que a terra se recupere e se adapte às perturbações, regenerando-se sem mudar suas características), respeito, não mercantilização e interculturalidade.

O capítulo II dá conta da definição e do caráter da Mãe Terra. Estabelece que ela é um sistema vivente dinâmico formado pela comunidade invisível de todos os sistemas de vida e dos seres vivos inter-relacionados, interdependentes e complementares que compartilhar um destino comum. Define ainda que os sistemas de vida são as plantas, animais, micro organismos e outros seres onde inter atuam comunidades humanas com suas práticas produtivas e culturais com suas respectivas cosmovisões de nações, indígenas e afrodescendentes. Como caráter jurídico a Mãe Terra aparece como sujeito coletivo de interesse público e a população boliviana tem o dever de zelar pelos seus direitos.

No Capítulo III estão listados os direitos garantidos à Terra: o direito à vida, com a manutenção do seus sistema e dos processos naturais; o direitos à diversidade garantindo que nada seja alterado geneticamente ou modificado de maneira artificial; o direito à água, garantindo a preservação, a quantidade e a qualidade; direito ao ar limpo, ao equilíbrio, à restauração e a viver livre de contaminação. Aqui, nesse capítulo define-se claramente a proibição aos transgênicos e o combate à mineração que tanta destruição ambiental vem causando na América Latina.

O capítulo IV estabelece as obrigações do Estado e da sociedade e ali estão definidas a necessidade de desenvolvimento de políticas públicas para a proteção da natureza, para o consumo equilibrado, contra a mercantilização, pela soberania energética, pelo desenvolvimento de energia limpa. Também estabelece os deveres das pessoas no cuidado com a terra, na promoção da harmonia, na participação da construção das políticas, nas práticas e hábitos que se harmonizem com a proteção, na denúncia de tudo que atentar contra os direitos da terra. Finalmente, o artigo final (10) cria a Defensoria da Mãe Terra que tem por missão velar a vigiar pelo cumprimento da lei.

Mas, o que é considerado um avanço tremendo para a maioria da população não está sendo bem visto pelos grandes proprietários. Com a lei, que aparece de forma singela, fica comprometido todo um projeto que as grandes empresas transnacionais tem para o país, dono de riquezas minerais imensas. Como a elite boliviana tem ligação visceral com esse projeto que se projeta desde fora, a resposta promete ser forte. A Lei da Mãe Terra acaba se contrapondo à mineração, aos mega projetos energéticos, aos transgênicos e muitos de seus artigos necessitam leis complementares. Essa será uma nova batalha a ser travada.

O presidente da Associação Nacional de Produtores de Oleaginosas e Trigo, Demetrio Pérez, deu declarações nos jornais afirmando que proibir os transgênicos é colocar travas no desenvolvimento produtivo. E já avisou que no processo de discussão das leis complementares eles estarão atuando. Também o presidente da Confederação de Criadores de Gado da Bolívia, Mario Hurtado, acredita que a nova lei trará muitas incertezas para os proprietários e eles haverão de agir.

De qualquer forma, ainda que venham novas lutas, a Bolívia deu um passo importante em nível mundial ao reconhecer a condição "sagrada" da terra, recuperando elementos ancestrais da cultura andina que nunca deixaram de existir, embora estivessem escondidos sob o domínio colonial e depois nos sucessivos governos de marionetes.  A terra vista como "Pachamama", não na sua percepção folclórica ou anacrônica, mas como um sistema vivo, no qual o ser humano é só mais um elemento. Garantir o equilíbrio desse sistema passa a ser fundamental também para a sobrevivência da espécie.

A lei sobre o direito da Terra não está sozinha dentro do complexo sistema de "justiça climática" que está em voga hoje no país. Também existe a Lei da Revolução Produtiva (com amplo apoio ao pequeno e médio produtor), o processo de distribuição de sementes de qualidade, o seguro agrícola para ajudar em casos de desastres naturais e o Observatório Ambiental. Cada uma dessas iniciativas formam um sistema para garantir a segurança alimentar da população assim como a proteção da terra.

A questão ambiental, que o sistema capitalista tenta impor ao mundo como um problema causado sempre pelo "outro", se resolve assim mesmo. Cada microrregião do planeta pode cuidar  de si, garantindo a proteção à terra e tornando possível que a sociedade assuma o definitivo controle sobre seu ambiente, atuando de maneira protagônica no processo e não apenas como quem denuncia. Agora, na Bolívia, esse é o desafio. Cada pessoa tem o direito e o dever de atuar na proteção e na formulação das políticas.  E, além das leis que asseguram a proteção à Pachamama ainda poderão contar com o Fundo Plurinacional da Mãe Terra, formado de verbas públicas e privadas, para que seja possível administrar essa nova foram de interagir com a natureza.

Uma nova fase da luta pelo equilíbrio da vida começa agora na Bolívia. Não vai ser coisa fácil e precisa de tempo para se fortalecer e vingar.

Texto de Elaine Tavares