Ninguém sabe ao certo quando e como o primeiro homem imigrou para a América. Não se sabe se veio de uma sociedade já madura ou se era selvagem. Não é certo ter vindo dos cumes da Ásia através da estreita ponde de gelo que uniu a Mongólia ao continente americano, ou ter atravessado mares em oscilantes embarcações, portador de um escudo cultural. A questão é velha. Mas uma das hipóteses mais defendidas é a de que o homem das Américas teve seu princípio cultural em solo americano.
Os primeiros americanos viviam à beira de águas geladas ou em frorestas tropicais, em planícies ou cavernas, em florestas ou desertos e estepes. Uns habitavam regiões com temperaturas amenas; outros, lugares insalubres. Mas apesar de separados por ambientes tão distintos, deram origem a um novo ser: o HOMO AMERICANUS.
Por volta de 5.000 a.C., este "americano" não se diferenciava muito do homem de outras regiões da Terra, do ponto de vista evolutivo. O habitante do vale do Nilo se dedicava ao cultivo de espigas miúdas e da cevada, estabelecendo a base agrícola que seria o alicerce da posterior cultura egípcia. Mas o "americano" escolheu as plantas silvestres, que futuramente seriam seu milho, sua batata, tomates, feijão e abóbora, sobre as quais igualmente edificaria sua cultura.
Quando a cultura babilônica já havia desaparecido e os egípcios já tinham ultrapassado o ápice cultural de sua civilização, as grandes migrações da América chegaram ao fim. Grandes áreas do continente estavam ocupadas pelo homem. Surgiram núcelos culturais condicionados geograficamente: nas regiões árticas viviam os esquimós, com rostos chatos e corpos redondos. Nas baixadas norte-americanas, os habitantes altos e esguios organizavam sua vida em torno da biologia do animal vagante. Mais ao sul, onde o sol acaricia o homem por longas horas do dia, os indígenas cultivavam suas plantas e erguiam primitivas moradias sob a proteção de rochas. No extremo sul do continente, os gigantes da Terra do Fogo, corpos envolto em couro guanaco, caminhavam sobre a gelada tundra. Entre esses monstros geográficos, América do Norte e América do Sul, estende-se o chão que serviu de palco para algumas das grandes culturas da América Latina: América Central e México, com montanhas recortadas e vulcões incandescentes.
A sociedade tribal apoia-se nas bases de um estreito parentesco. A unidade fundamental era a parentela; estas originaram a tribo, unida não pela região habitada em comum, mas pelos laços de sangue. Da mesma maneira, unia-os a religião: o animismo, crença segundo a qual tudo no mundo possui "alma", tudo é vivo, sensível e com vontade própria. Deuses, bons ou maldosos, devem ser pacificados e a arte, quando desenvolvida, era dedicada a esta teologia. Cada tribo tinha um nome totêmico. As etapas desta herança cultural sucediam-se, até que a cultura de determinada tribo tornou-se patrimônio comum das demais.
Não houve posterior influência cultural, nem por parte da Europa, nem da Ásia. A América criou um mundo próprio, nascido do âmago do seu ser.
Os séculos sucederam-se no encadeamento do tempo sem fim. Os grandes reinos indígenas já não existem. Permanecem os resquícios de suas cintilantes culturas, vultosa quantidade de pedrinhas, que os arqueólogos tentam jutnar para reconstruir o colorido mosaico de passados quadros de vida. Para isso, prestam-lhe imprescindível ajuda as lendas, mitos e tradições orais que através dos séculos chegaram até nós.
De grande valor são os relatórios dos cronistas espanhóis, que contribuíram amplamente para que o chão do novo mundo revelasse seus segredos. Teria Evans procurado Creta, se não tivesse conhecido a lenda do Minotauro? Seria que Schliemann teria se proposto encontrar Tróia se não tivesse tão familiarizado com o conteúdo da Ilíada? Mas, no velho mundo, ao contrário das Américas, a possibilidade de interpretação dos achados arqueológicos e sua montagem por intermédio de analogias com História, poesia ou alguam tradição oral ou escrita, foi bem mais praticável. Pois antes que algum arqueólogo tivesse, pela primeira vez, colocado a pá em seu chão, antes mesmo do nascimento da ciência da Arqueologia, sua história já tinha mais de 5.000 anos e era largamente conhecida.
Na América, os conquistadores não tinham interesse por relações históricas. Mesmo que tivessem encarado as construções e objetos que encontravam com outros olhos, não teriam encontrado resposta para sua procedência. Nada sabiam sobre os povos que encontraram e não tinham condições de estabelecer alguma datação.
O desconhecimento de lendas e sagas dificulta a reconstituição da civilização de um povo. Por isso, a arqueologia nas Américas começou com a coleta da "história" dos povos indígenas, ou seja, os textos dos cronistas que juntaram o que restou dos velhos cânticos indígenas, das lendas e mitos, indicações sobre direito e administração, organização e culto. Muito tempo passou até que a ciência conseguisse pesquisar este material reunido com tanto esforço, até possuir uma visão mais ou menos clara da história indígena.
De modo geral, as religiões das sociedades tribais arcaicas da América do Sul caracterizam-se pela tendência par ao culto de espíritos da natureza, ou seja, personificação de objetos ou fenômenos naturais, ou ainda de espíritos tutelares, progenitores e protetores das diferentes espécies animais e vegetais. Nas sociedades com base cinegética, o culto é ligado às estrelas e às constelações e se prolonga nas culturas agrícolas menos arcaicas: cerimônias propiciatórias, danças animais, rituais de caça. O culto dos espiritos vegetais é acompanhado de ritual ligado à fertilidade humana, ao jogo de bola, à caça de cabeça, ao canibalismo ritual.
Os hábitos funerários (pedaços de jade na boca dos defuntos, oferendas nos túmulos, pintura vermelha dos cadáveres, etc) indicam preocupações metafísicas ou mágicas. Entretanto, tais ritos não parecem corresponder, de modo geral, a um verdadeiro culto dos mortos, mas ao desejo de os vivos apaziguarem os defuntos, impedirem sua volta e facilitarem sua viagem para o além.
Nas religiões arcaicas, as representações materiais dos deuses são raras. Não existem templos; ídolos de madeira, pedra ou argila não são frequentes. Os objetos sagrados consistem em postes grosseiros, figurinhas de pedra, maracás, instrumentos de vento (que reproduzem as vozes divinas) e algumas máscaras.
O mediador entre o homem e o além é o xamã, verdadeiro centro da vida religiosa, cujo poder origina-se no contato direto com o sobrenatural. Com o início do cerimonialismo afirma-se o fenômeno religioso "stricto sensu", isto é, passa-se do universo mágico da multiplicidade para o esforço da síntese, que caracteriza a especulação metafísica. Finalmente, com as culturas Chavin e Olmeca, a religião torna-se mais complexa, poderosa e expancionista, apesar de manifestaões mais arcaicas continuarem em algumas áreas sem traços notáveis de cerimonialismo formal.
No período de 300 a.C a 600 d.C., a desagregação das grandes culturas unificadoras resulta numa fragmentação religiosa. Entretanto, na Mesoamérica, em virtude da frequencia e intensidade dos contatos, da preeminência de poucas teocracias (Teotihuacan e Maia) e de certa orientação comum, constitui-se um corpo religioso oriundo do amálgama de diversas tradições que são, aliás, provenientes de tronco único. Na Mesoamérica deu-se o contrário das regiões andinas, onde vicissitudes políticas, falta de documentos e outros testemunhos tornam as indicações bastante fragmentárias. Os resquícios arqueológicos, o complexo escrita-numeração-calendário e as tradições dos cronistas (houve tradição initerrupta até a época colonial), garantiram um conhecimento bastante razoável sobre crenças e mitos.
De um modo geral, o culto do felino nas Américas fornece certo ponto focal, apesar de não existir grande unidade.
Tanto na Mesoamérica central como setentrional, ainda hoje é amplamente difundida a crença do parceiro animal. Uma cerâmica do velho Peru traduz nitidamente este conceito do "outro eu": é a figura de um homem que tem suas mãos unidas como em solene prece; atrás dele, vê-se um jaguar, cujas patas estão apoiadas sobre os ombros do homem; a cabeça afeiçoa-se à do homem e parece que as duas pertencem a um só corpo. É um gesto de carinho e proteção, uma excelente interpretação da íntima união do homem com seu "alter ego" animal.
O respectivo espírito protetor do homem é quase sempre o de um animal
imponente e poderoso, isto é, o temível felino, como o puma ou o jaguar.
Não raras vezes, são animais míticos, sobretudo os que apresentam clara
relação com o céu noturno: lua e estrelas.A união do homem com seu
espírito animal protetor é tão íntima que em caso de ferimento ou morte
de um dos parceiros, acontece o mesmo com o outro.
Estudos
e anotações feitas entre nativos da Guatemala, Honduras e regiões
andinas, revelam, no entanto, que o conceito hoje existente não mais
corresponde à forma original. Apenas em algumas regiões isoladas da
América do Sul, como Araucários e Mataco, no Gran Chaco, o xamanismo
ainda é encontrado em sua forma primitiva. A
posse do animal "alter ego" entre indígenas da Mesoamérica é,
provavelmente, uma deturpação secundária da antiga crença, que sofreu
profundas mutações. Os fenômenos outrora limitados à esfera espiritual
foram rudimentarizados para o real.
A forma de aquisição do animal parceiro, que perdeu todas as propriedades mágicas, já demonstra isto: quando nasce uma criança, são espalhadas cinzas, farinha ou areia e o animal que deixar seu rastro será o "outro eu" da criança. Entre os indígenas de Honduras, a avó materna apresenta, segundo sua escolha, um animal à criança, que fica com ele como seu "outro eu". As vezes, o "outro eu" é o primeiro animal que aparecer junto da criança recém-nascida. Ou ainda: um xamã indica um determinado animal como espírito protetor, segundo os sinais do calendário.
Nos tempos antigos, a posse do "outro eu" era provavelmente reservada apenas a alguams pessoas especiais, como líderes e sacerdotes da tribo.
Em 1575, Thevet escreve em sua Cosmographie Universelle: "Por causa das devastações que provoca, o jagar é temido pelos índios do Sul do Brasil. Quando capturam um desses animais, matam-no e levam-no para a aldeia. As mulheres enfeitam seu corpo com penas, colocam aros em suas patas, choram e lamentam: 'Não deixeis que a vingança caia sobre nossos filhos, porque tu foste capturado e morto pela tua própria ignorância. Não fomos nós que te enganamos, foste tu mesmo. Nossos homens colocaram a armadilha para apanha apenas animais comestíveis. Nucna quiseram te capturar'."
Esta velha narração se refere aos índigenas Tupinambá e corresponde, em seu contexto, ao que nos foi transmitido por Koslowsky sobre os índios Bororo: "Quando o índio caça um jaguar, é feita, durante a noite, uma dança ritual: as mulheres, sob forte emoção, lamentam e choram, evocam a alma do animal para implorar por misericórdia. Se a alma do jaguar não for apaziguada, causará a morte do caçador. Durante a dança ritual, o índio que matou o jaguar assume o papel do animal enfurecido em busca de vingança. O xamã e alguns outro síndios mais velhos tentam apazigua-lo com cânticos monótonos. Dançam ao redor do caçador, com o rosto virado pala ele e com matracas nas mãos. Cânticos e danças são repetidos durante horas contínuas, num ritmo monótono e exaustivo, até que os participantes são vencidos pelo cansaço. Segundo a crença, só então a alma do jaguar está conciliada, não havendo mais nada a temer".
Os Bororo, porém, seguem ainda outroritual em torno do jaguar: homens e mulheres dançam em fileiras. O representante do jaguar é enfeitado com a pele do animal, pintada por dentro com desenhos geométricos em vermelho e negro. Usa uma máscara coroada por penas de pássaros de várias espécies e guarnecida com os dentes do animal. Seu rosto é pintado com urucu. Segundo a crença, a alma do animal morto se apodera do corpo do homem que o representa e manifesta-se através dos saltos e movimentos frenéticos deste. Um cercado de folhas de palmeira, sem cobertura, serve de vestuário para o dançarino. às mulheres é proibida a entrada; provavelmente, o ritual observado para vestir o dançarino é tabu para elas.
A posição do indígena diante do jaguar é, até nossos dias, de respeito e medo. Encara-o não como um animal comum, mas como poderoso e temível espírito.
Após a conquista do México, o monge Bernardino de Sahagun descreve bem a forma como os indígenas encaram o jaguar: "sibarítico, preguiçoso, com forças sobrenaturais e inteligência humana". Segundo a crença, o jaguar hipnotiza suas vítimas com um soluço cujo ar enfraquece o coração da vítima através do pavor. Escreve Bernardino: "o índio que encontra um jaguar na floresta, sabe que pode atirar apenas quatro flechas. O animal apanha-as no ar, quebra-as com os dentes. Se o índio errar pela quarta vez, está perdido: o jaguar espreguiça-se, bufa maldosamente e em seguida, com um enorme salto, decide a sorte do índio indefeso".
Bartolomeu de Las Casas conta que os índios de Vera Paz, na Guatemala, caem de joelhos ao encontrar um jaguar na floresta. Começam a confessar seus pecados e, por conseguintes, são devorados.
O culto ao jaguar, vivo em todo o Sul do México e América Central, assumiu, após a conquista, a forma de sociedades político-religiosas denominadas NAHUALISTAS. Segundo Bernardino, os nahualistas eram corajosos e acostumados a matar. Cobriam o corpo com partes da pele do jaguar, isto é, testa, peito, cauda, patas e dentes, para se tornarem poderosos, valentes e temíveis.
A palavra asteca NAUALLI pode ser traduzida como ALGO OCULTO, SECRETO, o que provavelmente deu origem à sua múltipla interpretação como máscara, disfarce ou transformação. Com as migrações astecas, a palavra chegou até a Guatemala e à América do Sul, onde parece ter-se fundido com os existentes conceitos do outro eu. Hispanizada, a palavra naualli tornouse NAGUAL, de onde deriva a denominação "nagualismo" para o conceito de "alter ego" indígena, sendo o próprio animal protetor denominado "nagual".
Nos velhos tempos, o jaguar era um deus da terra, símbolo do interior da terra e da noite, da escuridão. Acreditava-se que o jaguar engolia o sol, causando eclipses. Era o deus das cavernas, do obscuro interior das montanhas. Nessa qualidade foi venerado em todo o sul do México, sobretudo em Tehuantepec. Os maias de Chiapas, chamavam-no UOTAN, isto é, "coração" ou "inteiror"; para os indígenas mexicanos era TEPEYOLLOTI, isto é, "coração das montanhas". O jaguar, coração da terra, tinha um santuário em uma grande caberna em Monopoxtiac, pequena ilha nas lagoas de Tehuantepc, coberta por florestas, além de outros grandes santuários em cavernas, todos de grande importância.
Padre Burgos narra a história de um estranho ídolo encontrado na caverna de Achitlán: "Existe, entre ouros altares, também um para um ídolo que chama de 'CORAÇÃO DA TERRA', e que goza de grande veneração. É feito de material extremamente valioso, ou seja, uma esmeralda (jade verde claro, provavelmente) do tamanho de um grande pimentão, sobre o qual está representado, artisticamente, um pequeno pássaro e uma serpente em posição de luta. A pedra é tão transparente que do seu interior parecelançar um feixe de luz".
A veneração que os índígenas tinham para com a divindade jaguar é tão profunda e enraizada que os reis dos zapotecas, mesmo após sua conversão para o cristianismo, continuaram a oferecer-lhe sacrifícios.
Texto de Elizabeth Loibl