quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ESCOLA DE BRANCO: devoradora da identidade indígena

Essa é uma tradição oral andina recolhida pelo antropólogo peruano Alejandro Ortiz Rescanière, em julho de 1971, narrada por um velho índio, Don Isidro Huamani, natural da região de Andamarca, em Ayacucho, Peru:

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Deus Todo-Poderoso teve dois filhos – Inka e Sucristo.

Inka, o mais velho casou-se com Mama Pacha – A Mãe Terra e com ela teve dois lindos filhos. Sucristo, já jovem e forte, quando soube ficou com muita raiva, ciúme e inveja do irmão. A Lua lhe aconselhou e deixou cair um papel escrito. Sucristo assustou seu irmão Inka com o papel, poi
s ele não entendia nada e fugiu com medo.

Sucristo pediu ajuda ao puma para aprisionar o Inka. Os pumas aprisionaram o Inka no deserto de Lima que morreu de fome. Então Sucristo espancou a Mama Pacha e feriu-a de morte cortando-lhe o pescoço. Depois mandou construir suas igrejas, onde mora.

Quem ficou alegre com a morte do Inka foi Ñaupa Machu, que vivia numa montanha chamada escola, mas que ficava escondido na época do Inka.

Os dois filhos de Inka passaram procurando os pais e Ñaupa Machu os chamou para entrar na escola que ele iria contar onde estava o Inka e a Mama Pacha. Os meninos contentes foram, mas Ñaupa Machu queria mesmo era devorá-los e para confundí-los disse que Mama Pacha não gostava mais do Inka, pois ele vivia agora com Sucristo como dois ir
mãozinhos. Mostrou a escritura a eles e disse para lerem que estava tudo lá escrito. Os meninos desconfiados ficaram com medo e fugiram.

Desde essa época, todas as crianças são obrigadas a ir á escola. Mas, como os dois filhos do Inka e da Mama Pacha, quase todas elas não gostam da escola, fogem dela.

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A versão em português é uma tradução e adaptação de Freire (2001) a partir de uma versão em espanhol, traduzida do quéchua pelo próprio antropólogo que o recolheu.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O SOFRIMENTO DOS WAIMIRI-ATROARI

O acidente geográfico mais importante ao norte de Manaus é o rio Urubu – antigo Bururu. Ali tem um pequeno afluente chamado Igarapé Sangai. Em época de vazante, nota-se várias inscrições rupestres, de formatos os mais extravagantes. Não constitui novidade a existência desses petróglifos na região. Cada garatuja, normalmente é ligada a uma superstição correspondente. É por esse motivo que o trânsito de pessoas e de embarcações por ali é reduzido, especialmente de noite. Mas há uma pedra no Sangai que impressiona mais que as outras. Ela representa um enorme olho humano, bem aberto, que parece controlar viajantes e intrusos. Parece uma sentinela ameaçadora. Os caboclos que são obrigados a passar por ali chegam quase a estado de pânico; abaixam a cabeça e ficam encolhidos, hirtos, até que a canoa deixe para trás o beiradão.

Os riscos esculpidos são grossos e esbranquiçados, contrastando com o cinza-chumbo da pedra. Destaca-se de longe. Estão intactos, bem visíveis, cobertos de musgo, atestando que ninguém teve a ousadia de macular ou desfigurar o misterioso olho-vigia.

Pesquisas da documentação do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, revela que ali foi palco da maior matança de índios que já houve na Amazônia. No século XVII, Pedro da Costa Favella passou pelo local, incendiando 300 aldeias e trucidando mais de 700 silvícolas de ambos os sexos e de diferentes idades.

O comandante Favella, com fúria que lhe toldava a alma, levou quase ao extermínio os Caboquena, os Guanevana, os Bururu e, mais para o norte, os Waimiri e os Atroari. A floresta se agitou em tropelias nunca dantes imaginadas. De um lado o trocano (tronco oco usado como “telégrafo” na selva) ressoava um gemido oco de horror e, de outro, os arcabuzes portugueses ribombavam um estampido homicida. As noites tranqüilas da selva equatorial ficaram iluminadas, mostrando a gengiva escarlate das barrancas. Tudo era destruição – a Morte!

Há um remanso soturno onde foram jogados, só de uma vez, mais de 300 cadáveres de “bárbaros pagãos”, castigados severamente pelo crime de serem os legítimos donos da terra. Gente de pele bronzeada só sobrevive à medida que pudesse fugir. Velhos, mulheres e crianças eram caçados como bichos. As águas do rio Urubu, de negras que eram, tornaram-se rubras e mal-cheirosas. As terras ficaram ensopadas de sangue. Cerca de 400 jovens foram acorrentados e arrastados para as masmorras de Belém ou do Maranhão. Tudo era válido para o branco: violentar a mulher e martirizar o varão daquela “maldita raça tapuia”.

Não demorou muito, por ali só restou a dor e a miséria. Os Waimiri e os Atroari, grupamentos outrora prósperos e felizes, chegaram quase ao extermínio. Só restou a maior de todas as dores: aquela expressa pelo silêncio.

Foi então que dois pequenos grupos de índios remanescentes – um Waimiri, outro Atroari – resolveram se unir. Juntaram-se para tentar uma quase impossível sobrevivência. Depois da carnificina ter levado os brancos à exaustão, eles foram embora.

Uma meia dúzia de selvagens, desmoralizados, aos poucos foram reconstruindo as suas malocas, as suas canoas e firmando a tradição ancestral. Depois, selaram um pacto. Fizeram um juramento solene, ao lado daquela ameaçadora inscrição do Sangai: mil vezes prefeririam a morte a confraternizar com o branco! Surgiu a crença de que, a partir de então, aquele olho escancarado, esculpido na pedra, se tornou o símbolo da vingança e o fiscal implacável do fiel cumprimento do compromisso assumido.

À noite, o olhão abandona a pedra, que dizem ficar inteiramente lisa; como um cometa luminoso, desloca-se por todos os confins do sertão, estando sempre presente onde existir um Waimirin-Atroari. Se encontrar algum índio em colóquio com o branco, a qualquer pretexto, o olho chama PAVELA, um monstro coberto de couro de onça e dotado de grandes olhos incandescentes.

Pavela, o “Demônio”, o “Espírito do Mal”, não se importa com o branco; só castiga o índio, deixando-o derreado a golpes de borduna. Pavela, na onomatopéia simplista do índio, é a evocação da alma assassina de Pedro da Costa Favella. De geração em geração, vem se mantendo a crença de que Pavela, até hoje, não perdoou índio algum que tenha cometido a imprudência de se aproximar do branco – o inimigo jurado.

Assim, perdura o ódio secular ao caríua (branco). É a vingança à ação das tropas de resgate que tanto mal causaram aos índios e tanto macularam as suas tradições. O juramento de Sangai e o mito de Pavela transitaram por todas as gerações de índios, até nossos dias.

As agressões do branco não ficaram apenas naquelas malfadadas expedições de resgate do passado colonial. Em 1856, ocorreu um outro grande massacre contra os Wailmiri-Atroari, do qual se tem registro. Manoel Pereira de Vasconcelos, comandando 50 homens, percorreu a região eliminando dezenas de índios e incendiando todas as malocas que encontrou.

Em 1874, o tenente honorário Antônio de Oliveira Horta, comandante do destacamento policial de Vila de Moura, numa sanguinária expedição punitiva eliminou mais de 200 índios.

Em 1905 ocorreu outro cruel massacre. O grupo do capitão da Polícia Militar do Amazonas, Júlio Olympio da Rocha Catingueira, a mando do Governador Constantino Nery, percorreu o Jauaperi, deixando 283 cadáveres espalhados pelos barrancos, e conduzindo para Manaus, como prisioneiros-troféus, 18 índios. Estas pobres criaturas foram alvo da curiosidade pública, enquanto o capitão Catingueira era ovacionado como herói. Os 18 índios ficaram presos no então quartel de Infantaria da Policia Militar do Amazonas. Foram obrigados a se uniformizar como soldados e submetidos a ordem unida. Dos 18 prisioneiros, 6 morreram logo de desespero, doenças e maus tratos. Felizmente, o Coronel Euclides Nazaré, condoído com a sorte dos 12 remanescentes, levou-os consigo até a Vila de Moura e, de lá, num gesto humano que dignificou, o seu nome para a posteridade, mandou soltá-los no Jauaperi.

Em 1949, 72 índios Waimiri-Atroari foram barbaramente trucidados por caçadores de jacaré, que tiveram o cinismo de declarar à imprensa que matar até 10 índios para cada exemplar de sáurio abatido era ainda “negócio”...

Com esta curta amostragem de um verdadeiro rosário de sofrimento e humilhação, os Waimiri-Atroari sustentavam, cada vez mais, o seu juramento de ódio ao branco e o de morrer em defesa de seu território.

Em época mais recente, a insistente cupidez do branco pelas suas terras, a pilhagem de madeira, de castanha e do pau-rosa; o avanço célere da estrada, atravessando a sua Reserva e dizimando a sua caça de subsistência; a indiscrição dos “pássaros de ferro” (aviões e helicópteros); o barulho ensurdecedor de motores e máquinas, dia e noite, levando de arrasto terra, árvores e pedras; a chegada estrepitosa de poderosas empresas mineradoras, de olho nas incomparáveis jazidas já identificadas na região, tudo isso, punha-os em permanente estado de desassossego. Eles temiam que o “civilizado” estivesse fechando o cerco de seu território, encurralando o seu povo e aperfeiçoando os instrumentos de tortura e de rapina referidos pela tradição. Daí o seu estado de desespero e a sua disposição permanente de guerra total. É claro que sempre levavam a pior.

Assim, tudo contribuiu para dificultar o trabalho das equipes de desmatamento e terraplanagem da BR-174. Em nenhuma época da história e em qualquer outro lugar de nosso território, houve similar fricção entre bancos e índios. Nunca o estabelecimento do contato foi tão precipitado e jamais o preço da conquista foi tão caro em vidas humanas, em sangue e em lágrimas.

Texto de Altino Berthier Brasil, em 1968

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Os Waimiri-Atroari, durante muito tempo, estiveram presentes no imaginário do povo brasileiro como um povo guerreiro, que enfrentava e matava a todos que tentavam entrar em seu território. Essa imagem contribuiu para que autoridades governamentais transferissem a incumbência das obras da rodovia BR 174 (Manaus-Boa Vista) ao Exército Brasileiro, que utilizou de forças militares repressivas para conter os indígenas. Esse enfrentamento culminou na quase extinção do povo kinja (autodenominação waimiri-atroari). A interferência em suas terras ainda foi agravada devido a instalação de uma empresa mineradora e o alagamento de parte de seu território pela construção de uma hidrelétrica. Mas os Waimiri Atroari enfrentaram a situação, negociaram com os brancos e hoje têm assegurados os limites de sua terra, o vigor de sua cultura e o crescimento de sua gente.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

SONHOS E NOMES

Há algum tempo atrás, o guarani Luís Werá me confidenciou que havia sonhado com a alma de seu filho: a alma havia aparecido em um sonho e sussurrado que seu nome também seria Werá. Segundo Luís, isto é um bom sinal, por que este nome é um nome "forte", indicando que o meninozinho chegará sem problemas até a fase adulta, sendo imune a doenças e feitiços. Entretanto, ele ainda aguardava com indisfarçada ansiedade a confirmação final do rezador, pois somente ele, o nhanderu’i, poderia referendar ou não o nome que seu filho lhe contou em sonho. Afinal, cabe a ele, o rezador da comunidade, profeta da palavra, a derradeira confirmação, que também lhe viria em forma de revelação.

Na concepção Guarani, o que determina o nome é justamente a região de onde vem a alma da criança, não sendo jamais uma decisão arbitrária dos pais.
É a partir do "lugar de onde vem a alma" é que o nome será constituído. E, ao saber sua origem, que sempre é dada pelo próprio filho ou filha através de sonhos, os pais também saberão suas qualidades e características individuais. Cada região possui determinados aspectos, assim como seus moradores. A origem do nome permite prever um pouco do futuro desta criança que ainda sequer nasceu, bem como seus gostos, jeito de ser e possíveis caminhos a serem percorridos. O nome é, portanto, parte integrante da pessoa e se diz ery mo’ã a (aquele que mantem em pé o fluir da palavra).

Em sua grande maioria são nomes que remontam uma profunda religiosidade, relacionando-se quase sempre a idéia de luz, desde o brilho ao troar do relâmpago, que são elementos fundamentais na mística guarani. Como também os diversos instrumentos utilizados durante a reza, como o maracá e o tacuapy. Assim como é comum os cr
istãos nomearem suas crianças com referências bíblicas, como João ou José, as crianças guarani recebem no nome toda carga espiritual do seu povo. Um arcabouço cultural que é repetidamente internalizado entre todos membros do grupo – e, principalmente durante a infância. É de se destacar que, a força cultural destes povos, reside basicamente nessa socialização, na qual alternam-se experiências individuais e coletivas. Bartomeu Meliá afirma que toda a reconhecida persistência cultural guarani encontra-se justamente neste trato com o sagrado. Somente o rezador poderá definir, através de seu contato com Ñanderu, de onde vem a alma e, dessa forma, definir seu nome. Mas, não só é permitido, como é esperado, o pai se adiantar ao rezador e entrar em diálogo com a alma da criança. Entre os grupos Guarani a experiência religiosa não é privilégio apenas dos rezadores ou sacerdotes, mas permeia toda vivência comunitária em uma grande festa coletiva.

Ainda segundo os Guarani, nos tempos antigos, a revelação do nome dava-se por volta dos dois anos de idade, mas hoje em dia "tem alguns que não querem esperar mais e dão nome bem antes". Com o advento do contato e a relação com o poder estatal, surgiram certas modificações em relação ao trato do nome, como por exemplo, a necess
idade sentida por alguns em receber um nome na língua do conquistador. Entretanto, apesar da poderosa pressão da cultura hegemônica, esta modificação tem um caráter superficial, pois todos continuam com seus nomes revelados, ou nomes "verdadeiros". A diferença acontece em relação à importância que se dá ao nome "verdadeiro" e ao nome em português. Os Guarani de Itariri relatam uma divertida história sobre este assunto, segundo contam, quando o cacique foi retirar a segunda via do documento de identidade de parte da comunidade, ele simplesmente esqueceu do sobrenome de várias famílias do grupo, e, rebatizou-os todos como "da Silva" sem muita hesitação. E ainda hoje isto é motivo de troça entre os guarani de Itariri, não havendo qualquer tipo de represália em relação ao cacique, que também dá boas risadas quando esta história é relembrada. Afinal, este nome não é o nome revelado e, por pertencer ao mundo não-índio, possui pouco significado para o portador, podendo ser alterado sem maiores traumas. Ao contrário do nome verdadeiro, este sim fundamental para quem o carrega. Em relação ao batismo cristão "os Guarani consideram absurdo o sacerdote católico perguntar aos pais da criança como se chamará seu filho”. Eles zombam do fato de o padre, que se considera superior ao pajé, sequer é capaz de saber determinar o nome certo da criança! Daí o menosprezo do Guarani ao batismo cristão e aos nomes portugueses.

Os Guarani dão tanta importância ao nome que lhes foi revelado, a ponto de, como último recurso em caso de doença de morte, o rezador rebati
zar o doente através de rituais, a fim de que o mal não continue naquele corpo. Não é raro encontrarmos guarani que, ao saudá-lo pelo nome, ele finja não ouvir e faça questão de não atender. De imediato, outros nos avisam que o seu nome foi mudado, ele agora possui um novo e se voltará apenas a este. No antigo nome toda doenças e eventuais feitiços ficam aprisionados, é urgente esquecê-lo o mais breve possível, a fim de estes malefícios também desapareçam. O nome guarani "é um pedaço de seu portador, quase idêntico a ele, inseparável da pessoa. O Guarani não ‘se chama’ fulano de tal, mas ele ‘é’ este nome".

Entendendo a importância do nome para o percurso e socialização do Guarani, percebe-se que neste grupo existe uma outra lógica em relação ao trato com a
criança, que é quem, na verdade, escolhe o nome, ou melhor, traz o nome. É como se esta já viesse pronta, com suas vocações e possibilidades de ação. Dependendo de sua origem, de seu lugar celeste, ela poderá ser um grande rezador ou uma grande liderança política, e é bom lembrar que entre os Guarani é muito comum as mulheres exercerem funções religiosas e, devido a isso, tornarem-se líderes de suas comunidades, como caso da Karaí Cunhã Catarina, rezadora da aldeia de Aracruz/ES, que até sua morte foi a principal líder deste grupo.

O fato de a criança escolher seu nome é também o fato da criança e
scolher seus caminhos, independente dos pais, que tem como função apenas facilitá-lo na medida do possível, pois este já foi traçado anteriormente. O principal objetivo dos adultos guarani é possibilitar a formação do que eles chamam de guarani eté, ou seja, um guarani de verdade. Uma pessoa que possua todas características de um bom homem ou uma boa mulher guarani, que entre outras, é ser religiosa e avessa à sedução das coisas do mundo não-indio. Nos primeiros anos, a grande preocupação dos pais é assegurar o crescimento da alma, pois a criança ainda está fraca e vulnerável. Nesse período é comum os pais adotarem a criação de animais domésticos como galinhas e cachorros, que servem de anteparo protetor a qualquer malefício de venha do mundo exterior, como doenças e feitiços, pois, os pais e os filhos ainda estão vulneráveis as maldades do mundo.

Como por exemplo, o acontecido na comunidade guarani de Brakuí em 1998, quando agentes de saúde municipais, preocupados com a quantidade de cachorros infectados com sarna e carrapatos, acharam por bem organizar uma aplicação geral de parasiticidas em todos animais da comunidade. O resultado foi tão bom, que em pouco tempo
, a cachorrada restabeleceu-se em cães saudáveis. Entretanto, neste mesmo período, houve uma curiosa epidemia de gripe nas crianças da aldeia. De imediato, os mais velhos reuniram-se na opy guasu (asa de reza) e após horas de jeroky (oração), referendaram que, como os cachorros ficaram muito fortes e bem de saúde, estavam imunes a doenças e feitiços, os quais, resvalando nestes, iam de encontro aos membros mais fracos da família. A saúde dos animais domésticos, no caso, cães, tornaram vulneráveis as crianças. Pois, apesar da criança ser um uma "pessoa completa", ela inspira vários cuidados em seus primeiros anos de vida, devido a sua fragilidade perante a um mundo que é considerado ñeychyrõgui arauka i anguãema (terrível e imperfeito).

A preparação para assegurar a vida e alma da crian
ça começa já durante a gravidez. A mulher nesse tempo devo abster-se de toda comida pesada (banha, sal, etc) e lhe está proibida a carne de um grande número de bichos do mato. (...) Assegurar o crescimento da alma da criança é a maior preocupação dos pais; são numerosas as ameaças contra os quais têm que se defender. Continuam as proibições alimentares. O pai deve se abster de trabalhos pesados. Deve sobretudo evitar comportamento violento. Arco e flecha ou arma de fogo não deve usar nem para caçar, mas pode pescar e colocar armadilhas. A criança mama quando quer, recebe o máximo de atenção, procura-se satisfazer suas necessidades. O período de lactência estende-se até os dois anos, ou às vezes mais. O desenvolvimento da alma, que em guarani é chamada ‘Palavra’, se considera completo, quando a criança começa a pronunciar suas primeiras palavras. É então quando o ‘vidente’, talvez vá descobrir o nome religioso da criança, isto é, o nome daquela alma-palavra estabelecido já antes do seu envio para se “assentar” no corpo da sua futura mãe.



Até os três anos, as crianças guarani são orientadas culturalmente no reko (costume) por todo o grupo social. Ë papel da sociedade como um todo a formação daquele indivíduo em um bom guarani, partilhando o seu dia-a-dia desde a interação do nascimento até a imersão completa na rotina cultural.

Após os primeiros anos, pequenos trabalhos, como buscar lenha ou cuidar dos irmãos menores, já se encontram no universo destas crianças, que os desenv
olvem de acordo com suas capacidades físicas e sexualidade. Com o tempo, estarão acompanhando os pais em seus afazeres rotineiros, sendo que, cada vez mais, a divisão sexual do trabalho se fará patente. No caso das aldeias do litoral paulista e carioca, as meninas guarani ajudarão a mãe na confecção e venda de artesanato durante as feiras municipais ou mesmo nas margens de rodovias. Os meninos, quando um pouco maiores, acompanharão os adultos em suas incursões as aldeias próximas, irão às cidades vizinhas e, provavelmente, começarão a explorar o palmito nativo existente em suas áreas. Porém, em todos os casos, a iniciação religiosa começa imediatamente após o “assentamento da alma”, ou seja, o nascimento. É comum encontrarmos nas opy guasú (casa-de-reza), diversas mães rezando, dançando e embalando seus filhos recém-nascidos ao som dos cantos e do maracá. A iniciação à religiosidade guarani, é, certamente, a primeira socialização formal do grupo. Nesse sentido, não há limite de idade, talvez, devido à criança ser originária das regiões celestiais, ela esteja realmente muito mais próxima ao que entendemos como sagrado. Mesmo assim, existem entre os Guarani (em especial, junto aos Kaiowá, no Mato Grosso do Sul) certas práticas ritualizadas de iniciação dos jovens no mundo adulto, como o Kunumi pepy, momento no qual os jovens meninos recebem prescrições dos mais velhos (seus padrinhos) no sentido de "serem perfeitos" (imarangatuvarã) e preparam-se para perfuração do lábio, e a utilização do adorno labial denominado tembetá, sinal fundamental dos grupos Guarani. Esta marca é exclusiva dos meninos Guarani, cabendo as meninas entoar (junto com os demais adultos) os cânticos e as rezas específicas para que o rito ocorra com sucesso.

Na festa do Kunumi pepy, que pode durar vários dias, os padrinhos cuidam dos seus escolhidos e cantam seus deveres em relação aos jovens durante a festa de perfuração labial:

Kunumi ambojegua / Eu adorno o menino
Kunumi poty ambojegua / Adorno a flor do menino
Kunumi ambojegua / Eu adorno o menino
Kunumi ku’akuaha ambojegua / Adorno o cinto do menino
Kunumi ambojegua / Eu adorno o menino
Kunumi ñe’e ambojegua / Adorno a palavra do menino
Kunumi ambojegua / Eu adorno o menino
Kunumi jeropapa ambojegua / Adorno o relato da história do menino
Kunumi ambojegua / Eu adorno o menino
Kunumi aupeguáko ore / Nós somos os que cuidam da alma dos meninos
Kunumi(a) jasuka marane’y / Somos os que cuidam da essência
Aupeguáko ore / do jeito do bom proceder dos meninos
Kunumi aupeguáko ore / Nós somos os que cuidam da alma do menino
He’i Ñengaju / Assim diz Ñengaju
Kunumi mba’ekuaa marane’y / Somos os que cuidam do saber
Aupeguáko ore / do bom proceder dos meninos
Kunumi aupeguáko ore / Somos os que cuidam da alma dos meninos
He’i Ñengaju / Assim diz Ñengaju
Kunumi(a) jeguaka marane’y / Somos os que cuidam da diadema
Aupeguáko ore / do bom proceder dos meninos
Kunumi aupeguáko ore / Somos os que cuidam da alma dos meninos
He’i Ñengaju / Assim disse Ñengaju


Neste puraheí (canto) percebe-se toda cautela que se tem na preparação do jovem em sua entrada para o mundo dos homens, que não é qualquer mundo, mas o mundo dos homens guarani. É necessário cuidar da alma, adornar a história e ensinar o bom proceder, pois, somente com a sua plenitude, tanto religiosa como de sua origem (que se confundem em seus significados) é que será possível a continuidade do reko, que será possível a construção do guarani eté.

O rito de passagem das meninas para o mundo adulto acontece durante sua primeira menstruação, quando são recolhidas a casa dos pais e recebem todo o tipo de conselho relativo ao bom proceder. Nas palavras do guarani Teodoro Alves, líder da comunidade de Ocoy/PR: "a menina já está preparada para o mundo adulto após menstruar, é sinal de que já pode casar e constituir família, mas, para constituir família, ela deve ouvir seus parentes, ouvir seus conselhos, participar da religião, somente aí é que ela será uma mulher".

Sobre a importância desta imersão cultural, alguns rezadores Kaiowá afirmam que os suicídios que vem ocorrendo nas comunidades do Mato Grosso do Sul são, em parte, devido à má formação das crianças guarani, pois estas não estão "adornadas" conforme os antigos. Em conseqüência, elas enfraquecem, entristecem e morrem.

Ainda sobre a necessidade das crianças cresceram adornadas, Pa’i Paulito, um dos rezadores Kaiowá mais respeitados e principal responsável pelas últimas festas de Kunumi pepy no Mato Grosso do Sul, profetiza "é certo: as criaturas que não são adornadas, são como aipim bichado – não servem para nada”.

Entre nove a doze anos de idade, os meninos deixam a casa de seus pais e passam a morar na ‘casa de solteiros’; recebem alimentos que suas mães e irmãs lhes enviam, mas dormem sempre nessa casa. Espera-se que andem todos juntos, que dividam tudo entre si, que sejam recatados e que evitem o contato com as mulheres. Isto se prolonga por cinco ou seis anos durante os quais os meninos são formados, desenvolvendo as qualidades que nesta sociedade são prezados como típicas de um verdadeiro homem: resistência física, agilidade, destreza e contato constante com o Sagrado. Também é nessa época que aprende a confeccionar seus instrumentos de trabalho e de caça e seus ornamentos. As técnicas de caça, agricultura e pesca, bem como atividades como a dança, o canto são também intensamente desenvolvidas nesse período.

Assim como o filho de Luís Werá apresentou-se através de sonhos; o continnum destes grupos apresentam-se nas revelações de seus rezadores mais tradicionais, como raízes que se prestam a boas sementes.

Baseado em texto de Paulo Humberto Porto Borges
publicado no Caderno CEDES 56 – UNICAMP

domingo, 12 de dezembro de 2010

RITOS DE MATURIDADE GUARANI

EKO... menstruação


A partir dos oito anos de idade a menina se abstém de mel (de açúcar e qualquer doce), já como prevenção contra futuras cólicas menstruais. No passado, conforme descrições de Montoya, no período de menstruação, a menina permanecia em redes, que eram costuradas deixando somente a parte do rosto aberta, para a respiração.
Essa reclusão evita a entrada de “coisas negativas” no corpo da menina.

Entre os antigos Guarani, as meninas não consumia
m carne até que o cabelo crescesse a ponto de cobrir-lhes as orelhas. E deviam evitar a presença dos homens e de certos animais, tais como os papagaios, sob pena de se tornarem tagarelas.


Atualmente, por ocasião da primeira menstruação, a menina tem seu cabelo cortado curto, permanece isolada em seu quarto ou em local reservado por três dias e recebe alimento da mãe. Após o terceiro dia a mãe a convida a trabalhar (carpir ou lavar roupa) junto com as outras mulheres. A partir daí, é considerada adulta.

TAMBETA e TEMBEQUA

Antigamente era feito um furo com espinho de porco-espinho no lábio inferior dos meninos, que facilitava o assobio para responder ao outro na mata. Esse ofício é chamado de TAMBETA.


Schaden informa que a perfuração do lábio inferior, entre meninos de dez anos, é parte de uma cerimônia precedida por um ano de abstenção de comidas pesadas; a alimentação preferencial, nesse período, é chicha (bebida de milho fermentado) ou mingau doce feito de milho. Segundo Chamorro, a bebida fermentada aparece na cerimônia da furação labial dos meninos com o sentido de “cozinhar os jovens para que não se tornem violentos e nervosos”.

Na idade em que o menino começa a falar grosso, entre 14-15 anos, fura-se as orelhas. Nesse furo, coloca-se o miolo de uma folha até o furo ficar bem curado, às vezes espera-se até três meses. Esse orifício é chamado de TEMBEGUA.

Quando o rapaz completa 15 anos, o pajé o conduz ao mato para que aprenda a colher o mel e o ensina a fazer com a cera do mel um pequeno lampião ou vela, que se usa nos rituais, especialmente na festa do “batismo do milho” (nimongarai), que ocorre anualmente em janeiro.

Baseado em texto de ZÉLIA MARIA BONAMIGO

sábado, 11 de dezembro de 2010

JAU... o nascimento de um Guarani


O nascimento de uma criança Guarani é bastante esperado, não só pela mãe, mas por todos os parentes.

A gravidez é atribuída, antes de mais nada, a causas sobrenaturais. Embora reconheçam que são necessárias relações sexuais para que uma criança seja concebida, são os Deuses que a enviam através do sonho do pai: o pai sonha que uma criança seria concebida, conta o sonho à esposa e esta engravida. Quando a gravidez se confirma, pais e parentes ficam alegres e cantam porque todo nascimento significa a vinda de uma alma do mundo divino para o mundo dos homens – sendo transportada por um apyka (banco), ela se assenta no ventre da mãe. Caso a gravidez ocorra antes do sonho do pai, dizem os mais velhos que o ayvu (alma), já estava procurando a mulher para nascer.

No momento em que a mulher entra em trabalho de parto, o marido ferve água com uma planta chamada kapi’i ou com suas sementes (kapi’i’a). A parturiente toma banho com essa água e em seguida a bebe para facilitar o parto.

Imediatamente após o nascimento, a placenta – que também é chamada de assento, pois é o lugar em que a alma vinda do mundo divino toma assento para entrar neste mundo – é cuidadosamente enterrada dentro da casa (com cinzas para não atrair animais). Dessa forma, o assento deixa de ser substância feminina passa a ser uma substância masculina, onde a potência máxima é a transformação de poder masculino e feminino. Isso explica o temor Guarani do nascimento em maternidades. Dizem que “a criança não será a mesma”, e indagam “o que fazem com a placenta?”. Deixar de realizar o enterro da placenta muda profundamente as relações sociais Guarani.

Após o nascimento da criança, a mãe se alimenta de mbojape (mingau de milho) por três dias. Depois disso, durante um mês não se alimenta de doces ou mel. Mas o pai também observa a restrição alimentar de carne por 10 a 15 dias após o nascimento de uma criança, visando a saúde da criança e ao seu crescimento e bem-estar físicos.

No primeiro ano de vida, a criança não deve comer alimentos com açúcar.

Baseado em texto de ZÉLIA MARIA BONAMIGO

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

DÍVIDA EUROPÉIA AOS POVOS ORIGINÁRIOS

Discurso feito pelo embaixador GUAICAÍPURO CUATEMOC, do México, na Conferência dos Chefes de Estado da União Européia, Mercosul e Caribe, em maio de 2002, em Madri. Com linguagem simples, transmitida em tradução simultânea para uma centena de Chefes de Estado e dignatários, ele provocou um silêncio inquietante na audiência quando falou:

"Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, para encontrar os que a descobriram só há 500 anos.

O irmão europeu da aduana me pediu um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram. O irmão financista europeu me pede o pagamento, com juros, de uma divida contraída por um Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse. Outro irmão europeu, um rábula, me explica que toda dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento.

Eu também posso reclamar pagamento, também posso reclamar juros.

Consta no arquivo da "Companhia das Índias Ocidentais", papel sobre papel, recibo sobre recibo, assinatura sobre assinatura que somente entre os anos 1503 e 1660 chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América

Terá sido isso um saque? Não acredito porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao Sétimo Mandamento!

Teria sido espoliação? Guarda-me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão

Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas, que qualificam o encontro de "destruição da Índias" ou Arturo Uslar Pietri, que afirma que a arrancada do capitalismo e a atual civilização européia se devem à inundação de metais preciosos retirados das Américas!

Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de outros empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indenização por perdas e danos.

Eu, Guaicaipuro Cuatémoc, prefiro pensar na hipótese menos ofensiva.

Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano "Marshal-Montezuma", para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho diário e outras conquistas da civilização.

Por isso, ao celebrarmos o Quinto Centenário desse Empréstimo, poderemos nos perguntar: os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo desses recursos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indo-americano Internacional?

É com pesar que dizemos não.

No aspecto estratégico, o dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em armadas invencíveis, em terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem um outro destino a não ser terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como um Panamá, mas sem o canal.

No aspecto financeiro foram incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de amortizar o capital e seus juros, quanto se tornarem independentes das rendas liquidas, das matérias primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo.

Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar. E nos obriga a reclamar-lhes, para o seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente temos demorado todos estes séculos para cobrar.

Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros que os irmãos europeus cobram aos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos emprestados, acrescidos de um módico juro fixo de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos.

Sobre esta base, e aplicando a fórmula européia de juros compostos, informamos aos descobridores que eles nos devem 180 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas as cifras elevadas à potência de 300. Isso quer dizer um número para cuja expressão total seriam precisos mais de 300 cifras, e que supera amplamente o peso total do planeta Terra.

Muito peso em ouro e prata! Quanto pesariam calculados em sangue?

Admitir que a Europa, em meio milênio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para pagar esses módicos juros seria como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a demêncial irracionalidade dos pressupostos do capitalismo.

Tais questões metafísicas, desde já, não nos inquietam aos índo-americanos.

Porém exigimos a assinatura de uma carta de intenções que discipline aos povos devedores do Velho Continentes e que os obrigue a cumpri-la, sob pena de uma privatização ou conversão da Europa, de forma que lhes permita nos entregá-la inteira como primeira prestação da dívida histórica."

Texto do escritor venezuelano LUIZ BRITTO GARCIA,

publicado no Dia da Resistência Indígena (12 de Outubro), de 2003.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

SIMBOLISMO DE TIWANAKU

O principal edifício de Tiwahaku é a PIRÂMIDE DE AKAPANA, perfeitamente orientada segundo os pontos cardeais. A noroeste dela, ergue-se o PALÁCIO DE KALASASAYA (onde se encontra a Porta do Sol), cuja entrada principal está orientada para o leste. Este templo encontra-se na frente de um pequeno templo subterrâneo, orientado no eixo norte-sul. Uma estrada passa entre Akapana e Kalasasaya, no sentido Nordeste-Sudoeste, indo até o TEMPLO DE PUMAPUNKU, a uns 980 m de Kalasasaya.

A partir desses elementos podemos ver, com clareza, a bipolaridade da cidade: HANA PACHA, a Cidade Alta, e HURIM PACHA, a Cidade Baixal. Em Tiwanaku, Kalasasaya, solar e diurna, se contrapõe a Pumapunku, lunar e noturna.

O pórtico de entrada do templo solar de Kalasasaya está orientado para o leste. Chega-se a ele por uma pequena escadaria de sete degraus, onde os dois últimos são formados por um bloco monolítico de dezenas de toneladas. Esse pórtico foi projetado para que o sol nascesse bem no seu centro nos Equinócios (de Outono, em 20-21 de Março e da Primavera, 20-21 de Setembro). Mas à frente, no centro trigonométrico do lugar, está o MONOLITO DE PONCE.

Este monólito tem diversas características interessantes: de dois metros de altura, em estilo geométrico, tem o aspecto de um sacerdote paramentado com roupas rituais e em postura hierárquica, trazendo sobre o peito dois vasos de oferendas. Parece que desempenhava uma missão de “relógio solar”, indicando as horas com sua sombra.

Saindo de Kalasasaya pela porta principal, após atravessar um calçada cheia de oratórios, chega-se ao templo semi-subterrâneo, cuja entrada é
uma escadaria de seis degraus no seu lado sul. Esta construção é uma das mais antigas do conjunto. Também orientada pelos pontos cardeais, é um espaço retangular de 26m x 28,50m. De suas paredes de andesita rosa destacam-se “cabeças” de pedra clara, projetadas para fora do muro, muito semelhantes às cabeças do homem-jaguar encontradas nas praças semelhantes em Chavin.

No pátio desse templo, encontram-se diversas estátuas, como por exemplo a de u
m músico tocando uma flauta-de-Pã e os dois ascetas guardando a entrada, mas cujas colunas se transformam em serpentes, - eles parecem simbolizar o sacrifício e o conhecimento adquirido. O aspecto esquelético de todas as estátuas, recorda aquelas de madeira encontradas na Ilha de Páscoa.

Uma das estátua mais interessantes de Tiwanaku é o MONOLITO DE BENNET, em cujo corpo estão gravados os mesmos "gênios alados" encontrados na Porta do Sol. Trata-se de uma representação de WIRACOCHA ou de seu Sacerdote, portador do poder do Jaguar Celeste. Em suas vestes encontramos pontos circulares na disposição da constelação de Órion (Constelação do Jaguar). Tem nas mãos vasos de oferendas, de onde saem peixes – símbolos de sacrifício à Lua.

Todos os aspectos do sol diurno e noturno estão representados no corpo desse monólito, vivificando cada um de seus aspectos e poderes. Uma l
arga “trompa” se destaca na sua toca, lembrando um elefante. Esse animal – chamado de WARI WILKA – representa o sopro da vida, a energia da Divindade. O mais interessante é que os elefantes desapareceram da América há mais de 7.000 anos.

A principal construção de Tiwanaku é, sem dúvida, a Pirâmide de Akapana: um edifício de base retangular, com terraços superpostos, coroados por um templo; grandes escadarias que dão acesso ao santuário. Akapana é o símbolo da terra seca e do fogo celeste, da ilha de fogo e da sabedoria que sobrevive aos cataclismas.


Nas escadarias desse templo piramidal, encontramos o ideograma HURAKESA, que representa a Terra. Mas, se invertido, passa a representar o Céu.
Dessa forma, aplicados nos degraus, fazem das escadarias de Akapana uma “ponte” de união entre esses dois mundos: UKU PACHA, a Terra, a Cidade de Baixo, e HANA PACHA, o Céu, a Cidade do Alto. Assim, subir as escadarias de Akapana leva os tiwanakus da Terra ao Céu; ao descer, voltavam do Céu para a Terra. Akapana é, portanto, a ligação entre os dois universos andino.

Perto dali, em outro monte artificial, encontra-se um pórtico de pedra semelhante à Porta do Sol, mas com representação de perdizes no lugar de condores. Esses dois pássaros eram considerados como portadores de luz através do céu: perdizes transportavam raios da lua, enquanto condores, levavam raios solares. Isso indica, portanto, que esse pórtico é uma representação lunar e, então, ficou conhecida como Porta da Lua.

O templo de PUMAPUNKU, cujo nome significa “A Porta dos Jaguares”, está, hoje, reduzido a um terraço, cujo principal enfeite é o signo “S” – que, em Tiwanaku está associado ao jaguar, representando sua cauda em movimento, e portanto um símbolo de vitalidade. Parece que havia ali uma grande pirâmide de pedra sobre a qual deveria estar o templo do Jaguar. Porém suas pedras foram deslocadas pelos invasores espanhóis para construção de palácios e igrejas.



sábado, 27 de novembro de 2010

ORAÇÃO A WIRACOCHA

Oração a CON TICSI WIRACOCHA, copilado por Guamán Poma de Ayala, em 1600.


Tiqsi Wira Quchá... Qaylla Wira Quchá... Pacha Kamáq, Runa Ruraq!
Fogo dos fundamentos... Fogo que impõe limites...
Princípio do espaço-tempo que faz a realidade dos homens.

Maypim kanki? Maypim kanki? Yayá!
Onde estás? Onde estás? Princípio meu...

Tiqsi Qaylla Wira Quchá!
Fogo que impõe fundamentos e limites

Maypim kanki, hanaq pachapichu, kay pachapichu qaylla pachapichu?
Onde estás? Acima daqui, nas profundezas ou aqui nesse mundo mesmo?

Kay pacha Kamáq, Runa Ruráq!
É tu quem faz a realidade dos homens!

Maypim kanki?
Onde estás?

Uyariway!
Olha por mim!

MITO DE WIRACOCHA

Mito inca sobre QUN TIQSI WIRAQUTRA (ou Com Titi Wiracocha, ou simplesmente Wiracocha) e a origem de Tiwanaku, copilada por Betanzos, cronista do século XVI:


Da lagoa de Collasuyo saiu QUN TIQSI WIRAQUTRA
Senhor muito poderoso
que criou o Céu e a Terra
e os seres humanos,
deixando tudo na escuridão.

Por sua desobediência,
estes primeiros homens
provocaram a cólera do Deus
que os transformou em pedras.

Este período é chamado PURUM PACHA.

Logo, QUN TIQSI WIRAQUTRA
saiu pela segunda vez da Lagoa de Titicaca
e se dirigiu às proximidades do lago
até um lugar chamado Tiahuanaco
E ali, criou o Sol e o Dia
e ordenou ao Sol iniciar sua carreira
que continua até hoje.

Depois, criou a Lua e as estrelas
e modelou uns homens-pedra
assim como um príncipe para governá-los.

Os mensageiros de QUN TIQSI WIRAQUTRA
percorreram todo o Andes
e vivificaram os homens-pedra
ordenando-os que saissem das grutas, dos rios e dos mananciais
de onde haviam nascido, para ir povoar o território
e instalar-se em diversas províncias.

Assim, pouco a pouco, se povoou toda a terra,
depois do Dilúvio HUNO PACHACUTI,
que havia destruído a primeira humanidade.

É em Tiwanaku
que QUN TIQSI WIRAQUTRA
deu vida ao primeiro homem de pedra:
WIRAQUTRA, seu filho,
um homem branco, vestido de branco
e levando um cetro de ouro.

Vindo para civilizar os homens
lhes transmitiu leis justas,
triunfando assim de seus inimigos.
Pecorreu os Andes até a costa
e andando sobre as ondas desapareceu no mar.

Já que andava sobre as águas
- como a espuma -
foi chamado de WIRAQUTRA: "espuma do mar".

QUN TIQSI WIRAQUTRA é o Deus
ordenador do mundo.

Sua obra se manifestou nos três mundos:
no céu, na terra e no abismo.

Cria o movimento diurno e noturno:
o Sol e a Lua.

Seu corpo constitui o eixo vertical do mundo.
Seu impulso, o eixo horizontal.

Nessa nova ordem, os tres mundos podem se manifestar:
- A TERRA, com o cedro duplo
- O CÉU, com o cetro do condor
- O ABISMO, com o cetro da perdiz

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

CHAVIN - Pacto entre o Céu e a Terra

CHAVIN DE HUÁNTA está situada na região montanhosa no norte de Peru, a uma altitude de 3.180m acima do nível do mar, entre os rios Mosna e Wacheska. Foi, durante séculos, o principal centro de religioso dos Andes. As ruínas arquitetônicas, as cerâmicas e outros vestígios que subsistiram, atestam ali se instalou um povo forte e enérgico, que, desafiando o clima dos Andes, implantou as raízes de uma importante civilização. Chavin é considerada a CULTURA MÃE por estar na origem das culturas que se sucederam por todo o território andino, deixando uma profunda influência religiosa e artística tanto na costa quanto nas montanhas. Chegou inclusive ao Império Inca, com a representação mágico-religiosa do JAGUAR, símbolo da origem e do fim do mundo pré-colombiano.

C
havin construiu um grande centro cerimonial, em torno de 1.800 a.C., que ficou em atividade até o século XIV d.C. – ou seja: por mais de 3.000 anos. No começo da construção, ergueram estruturas piramidais (hoje transformadas em colinas), plataformas e praças rodeadas por terraços. A parta mais antiga, chamada de TEMPLO DO LAZON tem a forma de um grande U com os três braços mais ou menos do mesmo tamanho. Posteriormente, construíram o que hoje chamamos de TEMPLO TARDIO ou O CASTELO. As duas estruturas não são maciças; pelo contrário, têm um complicado sistema de galerias subterrâneas.

As galerias do Templo do Lazon começam no alto de uma escadaria no lado ocidental da praça principal do complexo, com 21 metros de diâmetro, murada por pedras onde foram esculpidos imagens antropomórficas e jaguares (símbolo predominante nesta cultura). Essas galerias foram construídas em vários níveis, subindo e descendo, e são acompanhadas por um fantástico sistema acústico, alimentado por água, que produz sons semelhantes a rugidos por toda a sua extensão. Isso produziria um clima de sobrenatural, que preparava o encontro com o LAZON, no meio do templo, em uma larga câmara com orientação norte-sul. O Lazon é uma escultura de pedra, com 4,53m com a forma de um canino, e esculpida com a figura de um Jaguar. Essa é a divindade suprema de Chavin: o Jaguar Subterrâneo, em oposição ao Jaguar Celeste.

O Lazon representa a força da natureza, o Fogo primordial, a força telúrica. Em Chavin encontramos os três planos da natureza: o Jaguar Celeste (representado pela constelação de Órion), o Jaguar Diurno-Solar (representado pelo felino antropomórfico e caracteres ornitomórficos do Condor e de répteis das Amarus) e o Jaguar Noturno (o sol oculto durante a noite, representado pelo Lazon). Este último representa a união das energias celestes e subterrâneas, o pacto entre o Céu e a Terra!

Segundo estudos realizados por Lumbreras, em 21 de Dezembro – solstício – as estrelas de Órion (o Jaguar Celeste) se refletem exatamente em cada um dos orifícios do altar que fica na superfície, exatamente em cima da câmara do Lazon, de forma que lá de baixo se consegue ver toda a constelação brilhando em um “céu” de pedra escura – como se a constelação descesse à terra e mergulhasse em seu subterrâneo. Uma grande celebração acontecia, nessa câmara, na noite do solstício até a manha do dia seguinte, quando os primeiros raios do sol atravessam uma fenda na parede leste e ilumina plenamente o rosto do Lazon, representando a renovação de sua força. Ao longo do dia, para completar essa cerimônia, o sistema hidráulico de sons era colocado para funcionar em plena potência.

No centro da praça principal, ficava o OBELISCO DE TELLO – atualmente no Museu de Lima –, esculpido em um bloco maciço de diorita de aproximadamente 2 metros de altura. Este monólito tem a representação de dois felinos – macho e fêmea –; na extremidade superior, sobre suas cabeças, há várias figuras de condores (símbolo do sol) e perdizes (símbolo da lua), além da constelação de Órion (símbolo do Jaguar Celeste).

Não se conhece outro culto em Chavin. Só na época incaica é que o conjunto adquiriu também um sentido oracular e tornou-se um lugar de peregrinação.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

PARACAS

PARACAS é uma cidade do atual departamento de Ica, na costa peruana, aproximadamente a 250 km ao sul de Lima.

Frederic Engel descreve sua paisagem como:

“Um mundo vermelho, cinza, amarelado e turquesa, tal parece Paracas, com suas colinas, suas extensas áreas arenosas e sua baia de frente par
a a imensidão do Pacífico. Quando o sol se põe e reflete na areia cinzenta, se pode perceber, escondidas debaixo da areia branca,restos do cemitério daqueles homens que nos deixaram uma recordação inolvidável: os célebres 'tecidos de Paracas', cheio de cores, de vida, de magia, com testemunho de sua relação com essa enigmática baía. Aqui onde nunca chove, onde os ventos sopram formando 'chuva de areia', a natureza conservou, quase intacto, o milenar mundo da Baia de Paracas”.

O nome PARACAS significa, segundo alguns investigadores, “chuva de areia”, enquanto outros dizem ser “testa alta”. Na verdade, as duas acepções estão certas: os ventos, carregados de areia, são característicos dessa região e, por outro lado, as múmias descobertas têm uma testa achatada e alongada artificalmente.

A região de Pa
racas corresponde ao complexo agrícola mais antigo do qual se tem conhecimento no Peru. As datações através do carbono 14, demonstram que os “paraquenhos” conheciam o cultivo de plantas há mais de 9.000 anos. Cerca de 6.000 anos atrás, produziu-se um fenômeno climático que elevou uns 30 metros o nível do mar, chegando – por volta do ano 3.800 a.C. – a 3 metros acima do nível atual. Esse fenômeno de trasngressão marinha criou novas praias e destruiu outras. É interessante assinalar que quando o nível do Pacífico alcançou o nível atual – há 6000 anos atrás –, numerosos grupos de agricultores e pescadores apareceram na costa. Paracas é um desses grupos, surgido em torno de 3.100 a.C.

Paracas foi descoberta por J. C. Tello, em 1958, ao escav
ar um antigo cemitério onde encontrou uma grande quantidade de crânios estranhamente achatados. Junto dos esqueletos, encontrou utensílios do dia-a-dia desse povo – flautas, punhais de osso, agulhas, balas redondas de madeira polida, dados retangulares de quartzo e representações de animais de palha e junco. Segundo a datação por carbono 14, a cerâmica e a cultura do milho aparecem entre os anos 2.000 e 1.500 a.C.

As tumbas desse período eram escavadas no solo, com a forma de um grande frasco: “A tafera é dura debaixo do sol abrasador. Uma vez retirada a capa de areia, aparece outra de salitre; depois dessa, surge a boca de um poço vertical, escuro e profundo, quase circular, cujas paredes são revestidas de pedras, algumas salientes formando um tipo de escada. O poço tem a profundidade de 2 metros, por 1.50 m de largura, terminando na entrada de uma caverna propriamente dita com cerca de 3 a 4 metros de diâmetro por 2 a 5 metros de altura.Trata-se de uma gruta artificial, escavada na rocha, contendo fardos funerários revestidos com uma terra pegajosa. Em seu conjunto, a sepultura, incluindo o poço de aceso, é semelhante a uma taça invertida ou um frasco. O interior é escuro, mas os poucos raios de sol que se infiltram pela entrada permite ver o solo dividido em vários compartimentos, nos quais estão colocados os fardos funerários”.

A cerâmica encontr
ada junto é policrônica com uma pintura resinosa nas cores amarelo, verde, vermelho e preto, com motivos geométricos e, em alguns casos, a estilização de figuras felinas ou de pássaros (que recortam o estilo Chavin).

A mumificação seguia uma técnica muito elaborada. Primeiro, o morto era embalsamado; através de cortes verticais se tirava a massa muscular e adiposa das pantorilhas e coxas; outros cortes permitiam tirar o coração, os pulmões e a traquéia, todo o aparelho digestivo e, por fim, os olhos e cérebro. Supõe-se que em certos casos o cérebro
era extraído pelas fossas nasais. Depois de estar esvaziado, era colocado sobre areia quente ou próximo a brasas incandescentes para fundir a gordura restante, diluindo os tecidos graxos. Depois de toda essa operação, a pele descolada e flácida, e com uma coloração especial, torna-se pergaminosa, enrolando-se firmemente ao redor dos ossos, fazendo o morto parecer muito mais velho do que realmente era.

Depois disso, o corpo era amarrado com força para impor-lhe a posição fetal, fazendo-o parecer sentado, abraçando as pernas e as mãos sustentando a cabeça. A imagem resulta impressionante: é a morte liberada da putrefação cadavérica!

Muitas das múmias encontradas mostravam ma
rcas TREPANAÇÃO em suas cabeças deformadas. Acredita-se que estejam ligadas à ferimentos de combate. Com efeito, os grossos turbantes de algodão não conseguiam minimizar, sempre, os golpes de maça d
e pedra estrelada. A ineficiência do turbante provocava afundamentos e rachaduras no crânio, provocando a paralisia parcial ou total da pessoa, além de perder a consciência por um tempo indeterminado. A trepanação surge como tratamento para esses males. O cirurgião abria o couro cabeludo e cortava a carne ao redor do ferimento, usando uma faca de obsidiana, até chegar ao osso quebrado. A anestesia devia existir, pois essa é uma operação delicada e o paciente precisava ficar totalmente imóvel; provavelmente, usava-se a coca. Quando chegava no osso, fazia-se um corte nele; depois, mais um paralelo e dois perpendiculares, formando um quadrado ou retângulo ao redor do tecido ósseo deteriorado. Então, esse pedaço era cuidadosamente retirado. Feito isso, recolocava-se a carne e o couro cabeludo no lugar, e fechava-se com um curativo de ervas que agilizavam a cicatrização. Caso o pedaço ósseo retirado fosse muito grande, podia-se usar um tampão metálico em seu lugar, debaixo do couro cabeludo. Essa operação aliviava a pressão sobre o cérebro, trenando o hematoma que se formara com a pancada e que deixava a pessoa com paralisia.

A prática da trepanação em Paracas parece não ter sido mais desenvolvida que em qualquer outro lugar do mundo. A contar pelo calo ósseo encontrado nas bordas da abertura de 90% dos crânios trepanados, o índice de morte durante a operação (ou logo depois dela) é muito pequeno. A criação do calo demonstra que o paciente sobreviveu tempo suficiente para o osso cicatrizar; em alguns casos, os calos demonstram anos. Nos casos em que usaram a placa metálica em substituição do tecido ósseo retirado, os pacientes viveram o suficiente para o osso se soldar ao metal, tornando-a firmemente ajustada e imobilizada.