segunda-feira, 29 de março de 2010

MEMÓRIA DA VIDA


MENSAGEM DOS POVOS ORIGINÁRIOS ANDINOS
Reunidos em La Cocha Guamues, Pasto, Nariño

Nós, as avós e os avôs, os mamos e as mães, os médicos e as médicas tradicionais, os taitas, sabedores da cultura ancestral e guias espirituais representantes dos povos originários, convocados em Nariño, Colômbia para o Primeiro Encontro Internacional das Culturas Andinas, temos uma palavra para compartilhar, uma mensagem para semear nos corações daqueles que desejem nos escutar.

Nós agradecemos ao Grande Espírito a oportunidade que nos oferece de viver este histórico encontro “TEMPO DE FLORESCER”, e ao povo de Nariño por convocar através deste, à união e o conhecimento dos povos originários da América.

Nós pertencemos a povos e a culturas diferentes, mas reconhecemos que, com base no sentimento da unidade e da lei da origem, a essência do nosso pensamento e da nossa ação é a mesma. Para nós, a diferença nos complementa não nos divide.

Nós, aqueles que tomamos conta da vida, amamos a nossa mãe terra, respeitamos os nossos homens e mulheres mais velhos, guardamos a memória das nossas raízes e sementes, a sabedoria ancestral. Nós, aqueles que preservamos a unidade da humanidade, aqueles que oferecemos o melhor de nós ao Grande Espírito, a nossa sagrada Mãe e o nosso Pai Sol, temos uma visão clara de como fazer as coisas.

É importante reconhecermos, mais do que nunca, que qualquer decisão tomada hoje, terá conseqüências para as gerações futuras, para os nossos filhos e para os filhos das nossas filhas. Nós somos responsáveis pelo futuro.

Historicamente, desde a conquista, temos sido atropelados e enganados pelos olhares do mundo que nos têm excluído. Denunciamos o abuso e o saqueio indiscriminado da nossa Mãe Terra, o despojo dos nossos territórios e da nossa cultura, o ataque constante contra a vida dos nossos líderes e dos nossos povos. Somos conscientes que não é suficiente a denuncia dos nossos problemas frente ao mundo, mas também, a universalização do nosso conhecimento como caminho de solução.

Algumas pessoas nos olham como se fossemos analfabetas já que não aplicamos os parâmetros das suas ciências, mas conhecemos e praticamos os segredos e o alfabeto da Mãe e da natureza, a nossa ciência tradicional.

O nosso pensamento e a nossa palavra são a nossa própria vida, por isso a importância dessa mensagem. Dizemos que a Mãe Terra é só uma. Somos filhos que se aquecem e se sentem acariciados pelo mesmo Pai Sol, pisam na mesma terra, respiram o mesmo ar e banham-se com a mesma água. Somos irmãos, como os dedos de uma mesma mão. Nós não falamos da cor da pele, embaixo dela, todos somos iguais, por isso devemos trabalhar unidos vermelhos, pretos, brancos e amarelos. Respeitando o pensamento de todos, pedimos que o nosso pensamento seja respeitado na prática da reciprocidade.

Evocamos a solidariedade dos povos do mundo e a justiça. Do mesmo modo como nós facilitamos o fluxo da vida, pedimos poder continuar vivendo de acordo às nossas visões do mundo e às nossas próprias formas de ser.

Temos sido responsáveis e guardiões da memória da humanidade, e embora freqüentemente tenham tentado nos destruir, a memória continua viva. Esta memória preservada pelos nossos ancestrais, da qual hoje nós tomamos conta e compartilhamos, é antes de tudo, a MEMÓRIA DA VIDA! Nós convidamos todos os povos da Terra para compartilhar esta memória, e renascer a partir da sua semente.

Temos falado do direito à vida. Respeitamos a mudança natural das coisas, o equilíbrio da vida; compreender que no universo tudo tem seu processo e seu tempo.

O convite à Minga do Pensamento que o governo de Nariño nos fez, as Nações Unidas na Colômbia, e outras instituições é um sinal da disposição para escutar a palavra da sabedoria ancestral daqueles que neste momento têm a responsabilidade de tomar decisões. Convidamos aos outros governos do mundo a seguir o exemplo, dialogar e construir conosco um futuro comum.
Propomos a união dos povos originários e destes com os outros povos acolhidos pela nossa única mãe, a Mãe Terra.

Convidamos a compreender e assumir que:

- A água não é só símbolo da vida, mas a mesma vida, o sangue da nossa terra. Pedimos que a água seja considerada um patrimônio da vida e da humanidade tanto nos nossos territórios ancestrais quanto no mundo todo.

- Iremos continuar sendo os protetores da natureza como parte do equilíbrio entre o ser humano e a mãe terra.

- Se gestem processos de integração das formas da medicina ocidental com a medicina ancestral; se reconhecerem, protegerem e promoverem como o patrimônio cultural dos nossos povos as práticas de cura próprias assim como os seus meios: plantas medicinais, rituais, conhecimentos ancestrais.

- Seja valorizado o lugar da mulher como garante da vida, transmissora da cultura e cuidadora da sabedoria e da saúde dos nossos povos.

- Os povos indígenas estão regidos pela lei da origem e pela lei natural com autonomia, governo e cosmovisão próprios. É necessário e um direito que sejamos reconhecidos como autoridades do nosso território e sejamos consultados para todas as decisões que afetam as nossas vidas.

Estas palavras e conhecimentos que temos herdado dos nossos ancestrais são o nosso legado às futuras gerações, aos nossos filhos e filhas. Com isto garantimos a permanência dos nossos próprios povos indígenas e o consideramos uma contribuição e um presente para a humanidade.

Em nome da reciprocidade, da justiça e do respeito que devem nos unir, pedimos a proteção dos nossos povos, nosso conhecimento ancestral como patrimônio espiritual, material e imaterial da humanidade.

Contem conosco para preservar a existência da humanidade e de todas as formas de vida no planeta terra. O nosso conhecimento ancestral pode ser acolhido como um caminho de cura frente às diversas crises e violências que afligem aos seres humanos, à família, à sociedade, aos estados, à natureza.

Comprometemo-nos ao trabalho e a promoção a partir da nossa força espiritual e cultural para que os governantes da terra trabalhem mais com o espírito e o coração, respeitem mais a natureza e virem preservadores da vida.

Assinado pelos povos:

KOGI, WIWA, ARHUACOS, INGAS, CAMENTSA, SIONA, UITOTO, MAYA KICHE, KOFAN, LAKOTA, GUANANO, DESANA, SICUANI, MAPUCHE, MAYA MAM, KICHUA INCA, KALLAWAYA, PIAPOCO, MEXICA, WAYUU.

sexta-feira, 26 de março de 2010

MESSIANISMO INDÍGENA


Em tempos imemoriais, muito antes da invasão da América do Sul pelos europeus, no século XVI, a população Tupi-Guarani engajava-se periodicamente em extensa mobilização espacial, envolvendo dramáticos êxodos durante os quais mortes, fome, privações várias pontilhavam o caminho. Era a busca da TERRA SEM MAL - YVY MARA'EY. Esse destino messiânico foi talvez o maior responsável pela enorme dispersão geográfica dos Tupi-Guarani, desde a base oriental da Cordilheira dos Andes, descendo até o sul do que é hoje o Brasil, subindo a costa atlântica até o Pará e mais além no rio Amazonas. Numa interpretação original desse processo migratório, Pierre Clastres contrapõe sociedade igualitária ao surgimento do Estado e vê a religião Tupi-Guarani como um mecanismo de preservação da primeira e de solapamento do segundo.

Os movimentos messiânicos desses povos, ocorrendo em ciclos, correspondiam à confrontação entre a emergência de um governo centralizado, decorrente de crescimento e concentração populacional, e a rejeição dessa centralizaão de pode pelos valores igualitários dessas sociedades. Assim, quando um chefe político chegava a dominar várias aldeis e mostrava sinais de exercer certos privilégios, como o uso exclusivo da força, surgia um profeta capaz de mobilizar a população contra esse chefe, procurando outros lugares onde não houvesse dominação ou coerção, enfim uma terra sem males. O efeito disso era a fragmentação de uma grande unidade política e a reinstalação, em outro local, de comunidades politicamente autônomas, descentralizadas, onde a forma de governo era ditada pelo princípio da persuação e não de coerção. Esses ciclos de alterância entre centralização e descentralização, entre desigualdade social e iguallitarismo são vistos por Clastres como uma fuga à dominação e à exploração antes que erstas se implantassem definitivamente, uma luta da sociedade contra a possível emergência do Estado, luta essa que já se travava antes da chegada dos portugueses à costa atlântica.

Com o decorrer dos séculos, a dizimação maciça da população Tupinambá e outros Tupi-Guarani por doenças, escravidão, ação missionária coercitiva e outros cataclismas levaram a busca da terra sem mal a se tornar a busca da terra sem brancos.

Entretanto, os movimentos messiânicos indígenas não estão limitados aos Tupi-Guarani. Entre os Tükúna e os Krahó, por exemplo, o messianismo - a busca da terra prometida, a construção de uma nova era, a tentativa de erradicar da terra o pior dos males conhecidos, que é o homem branco e suas conseqüências - tem sido uma das armas com as quais as populações indígenas tentam combater os efeitos desastrosos do seu contato com a sociedade ocidental. Quando mais poderosos xamãs não conseguem dar conta de tantas doenças causadas por epidemias de gripe ou sarampo, quando a terra começa a encolher com o avanço de ondas de gente alienígen que destroem fauna, flora, homens e mulheres, quando a população se esvai pela mortalidade generalizada, pela necessidade de abandonar o grupo e ganhar o pão lá fora, quando intrusos vêm minar o sistema de crenças, então o cosmos está em crise e necessita de renovação. O messianismo é uma tentativa de renovar o mundo.

Através de cinco séculos, os povos indígenas do Brasil têm resistido tenazmente à morte. O longo processo de resistência, desde 1500, tem posto à prova as energias e determinação dos índios para sobreviver. Gigantescas pressões que vão desde matança intencional, transmissão de doenças, usurpação da terra e medidas mais sutis de desagregação, não têm sido suficientes para eliminar todos os povos indígenas nesse continente. O processo histórico da conquista abalou enormemente os povos indígenas, transformou suas culturas, mas não os eliminou.

Pode ser que suas culturas tenham sido desfiguradas - e isso tem ocorrido em vários casos -, mas sua identidade étnica permanece. Podem usar roupa, relógio de pulso, sandália havaiana e rádio a pilha... mas isso faz um índio se tornar branco tanto quanto um colar de contas, uma pulseira de fibra, uma rede de algodão ou uma panela de barro transformam um branco em índio. O que conta é o modo de ser, a visão de mundo, a atitude diante da vida, a sociedade, o universo cultural... e isso não se destrói tão facilmente. Nem mesmo onde missionários ortodoxos mantêm internados, submetendo crianças indígenas a um constante processo de endoutrinamento, o resultado é a erradicação da tradição étnica. Na verdade, é do Alto Xingu, no Amazonas, onde padres salesianos mantêm tais internatos, que vem um dos fortes clamores indígenas pela preservação da sua identidade.

A lição que os povos indígenas nos dão é que a violência do processo de conquista não aplainou a diversidade cultural e etnica. Eles nos mostram, na sua prática social e política, que a tradição não é uuma coisa fossilizada do passado que só pode persistir no isolamento. Ao contrário, a tradição é o conjunto de significados - crenças, valores, saberes - que um povo construiu e vai transformando de geração em geração. É esse processo de revitalização constante da tradição que dá a cada povo indígena a força para continuar a preservar a sua especificidade étnica no meio a todas as vicissitudes que advém do contato com a sociedade nacional que o rodeia. Essa tradição continuamente revivida é só deles e ninguém a pode tirar.

Baseado em texto de Alcida Rita Ramos

sábado, 20 de março de 2010

RECIPROCIDADE X ACUMULAÇÃO

As demandas econômicas de uma sociedade originária da América são, na realidade, minúsculas quando comparadas com as de uma sociedade industrial, que garante a própria continuidade gerando sempre novas demandas de mercado. O acervo material de uma sociedade indígena é relativamente limitado, mas isso não quer dizer "pobreza".

Como aponta o antropólogo Marshall Sahlins, o conceito de pobreza não se aplica a sociedades onde todos os membros são igualmente aquinhoados com número e tipo semelhantes de bens materiais. Isso implica que, assim como a riqueza, a pobreza é uma relação social, isto é, ela só tem significado em contraste com a não-pobreza. Alguém só é pobre porque contrasta com quem é rico. Ele ainda indica que o gosto pela acumulação de bens materiais não é universal, nem algo dado pela natureza, mas simplesmente um valor cultural característico das sociedades de consumo.

Tomando por base o esquema "produção - distribuição - consumo", nas sociedades indígenas, embora exista uma certa separação temporal e espacial entre essas três fases, elas envolvem as mesmas pessoas; não há PRODUTORES X CONSUMIDORES, e muito menos intermediários, comerciantes profissionais entre eles. O que um homem ou uma mulher produzem todos os demais fisicamente capazes podem produzir. A divisão do trabalho em sociedades indígenas raramente envolve especializaçaões que excedam considerações de sexo e idade.

O que é produzido em termos de alimentação ou de utilidades, desde utensílios domésticos a casas comunais ou canoas, tem seus canais regulamentares de distribuição, que são frequentemente as relações de parentesco dentro ou entre comunidades.

Objetos de uso pessoal são considerados propriedade de quem os fabricou, ou de quem os usa e para quem foram feitos: arcos e flechas, cestas de carregar mantimentos, redes de dormir, tangas, objetos de adorno pessoal, etc. Alguns deles podem ser utilizados por outras pessoas, mas não seria correto alguém se apropriar desses objetos sem consentimento do dono. Como todos têm praticamente o mesmo acervo de bens materiais, esse problema não é muito frequente e, quando ocorre, não tem as mesmas implicações do "lesa-propriedade", que a noção de roubo entre os ocidentais.

A idéia de roubo está ligada a uma o utra, que é a de ACUMULAÇÃO. O direito de proteção à propriedade privada é também o direito de adquirir e conservar tanta riqueza quanto for possível. É também o direito de punir a quem infringir essa prerrogativa. Numa sociedade indígena, a no ção de acumulação é tradicionalmente negada por meio de uma série de mecanismos culturalmente estabelecidos, como por exemplo a forte condenação à avareza como atitude anti-social; uma pessoa que tem, por exemplo, mais facas do que necessita e se recusa a distribuir o excedente é malvista e desprestigiada; um líder de aldeia que, sistematicamente, se recusa a ser generoso, isto é, a dar do que é seu quando lhe é pedido, acaba por perder sua credibilidade como líder e, consequentemente, a liderança. Seja como for, há várias maneiras de inibir tentativas de acumulação, ou de desigualdade social com base na aquisição material diferenciada.

Os bens que circulam pelas comunidades indígenas têm, em sua grande maioria, um valor de uso, que pode ser estritamente utilitário (como uma panela), ou religioso (como um chocalho), decorativo (como um colar de miçangas ou um cocar de penas). Portanto, são bens de uso que geralmente passam de mão em mão nas trocas rotineiras ou em rituais.

Segundo Goldman, "há pelo menos tres tipos de troca: uma com os brancos, que é comercial. A segunda é intertribal, em que se trocam especialidades. Cada tribo tem suas especialidades reconhecidas e seus produtos são procurados. A terceira, intratribal, é menos econômica e mais de caráter social, em que as pessoas adquirem objetos que elas mesmas podem facilmente fazer". Existe, portanto, várias modalidades de intercâmbio, dependendo da situação e do parceiro. O princípio da RECIPROCIDADE é a mola propulsora no processo de distribuição da produção dentro das sociedades indígenas. Seja numa prática imediata, do "toma-lá-dá-cá", ou por um processo a longo prazo, vinculando parceiros de troca durante semanas, anos ou mesmo a vida inteira.

A troca de bens e serviços exige a obrigação de dar, como também a de receber. Recusar-se a dar alguma coisa que alguém pede não é simplesmente uma grosseria, mas um ato de agressão. Mas negar-se a receber um presente também pode ter sérias conseqüências. É como se uma parte de q uem dá estivesse impregnada na coisa dada, e uma recusa a receber equivaleria a uma afronta à própria pessoa do doador. Em ambos os casos, quebra-se a cadeia de direitos e deveres mútuos que cimenta a vida comunitária e intercomunitária. Portanto, uma troca nunca é apenas isso: ela é, acima de tudo, uma relação social; pode firma alianças ou, se fracassar, desencadear hostilidade.

Essse princípio da reciprocidade que rege a distribuição interna numa sociedade indígena envolve não só os membros de uma mesma aldeia, mas também os de várias aldeias ou de várias sociedades. Ainda segundo Goldman "a áreia do noroeste amazônico é uma rede de trocas vastamente complexa. Objetos de todos tipo, utensílios domésticos, ornamentos, instrumentos musicais, objetos cerimonais, plantas, animais de estimação e substâncias mágicas estão em circulação constante de tribo a tribo. Os índios que estão em contato com os centros comerciais de colombianos ou brasileiros servem muitas vezes de intermediários, bombeando bens manufaturados para a corrente de trocas - panos, sal, anzóis, armas, terçados, além de ornamentos baratos".

Além da distribuição de alimentos e bens q ue tem lugar rotineiramente dentro de cada aldeia, existem as ocasiões rituais ou de festas em que trocas intercomunitárias ou mesmo intergrupais são efetuadas em contexto revestido de simbolismo: rituais de iniciação, de nominação, de morte, de primeiras colheitas e muitos outros. Nessas ocasiões, visitantes e anfitriões engajam-se em jogos, danças, cantos, trocas de notícias e intercâmbio de objetos e alimentos. Tudo isso num contexto de reciprocidade: o convidado de hoje será o anfitrião de amanhã, de modo que o ônus de tais eventos é, a longo prazo, repartido pela rede de comunidades envolvidas no circuito desses rituais.


Essa rede de circulação de bens através do sistema de troca, bem como a distibruição ampla e o consumo imediato de alimentos faz parte de um código de obrigações sociais que visa manter o sistema de partilhas - um dos aspectos fundamentais da organização comunitária das sociedades indígenas.

Baseado em texto de Alcida Rita Ramos.

quinta-feira, 18 de março de 2010

TRABALHO E LAZER

A esfera econômica nas culturas indígenas originárias da América do Sul é interpenetrada por outras dimensões da vida. Por isso, a noção de TRABALHO para elas não é a mesma das sociedades ocidentais. No processo de produção econômica, seja ela caça, pesca, coleta, lavoura ou qualquer outra, o "trabalhador" não se isola de seus demais papéis e obrigações. Na produção estão sempre presentes considerações de ordem social, ritual, religiosa, para citar apenas as mais comuns e óbvias. Não existe, portanto, o fenômeno da "alienação", que é uma das características mais marcantes do processo de trabalho industrial. Na linha de montagem de uma fábrica é irrelevante se um trabalhador está planejando uma festa de casamento para a filha, se sua mulher está em vias de dar à luz, se ele é assíduo em suas obrigações religiosas, se tem obedecido aos padrões morais de sua sociedade... Enquanto operário trabalhando na fábrica, ele é reduzido à sua utilidade imediata, isto é, mera peça necessária no processo de produção. Esse desmembramento do trabalhador em produtor econômico, de um lado, e em ser social, de outro, essa alienação enfim, não existe nas sociedades indígenas. Mais importante ainda é o fato de que nessas sociedades é o produtor que controla os meios de produção, e o que ele produz não lhe é alheio, como uma mercadoria o é para o operário.

Quando um índio vai caçar, ele leva consigo não só arco, flechas e outros instrumentos, mas também uma série de direitos e obrigações engendrados na vida familiar e comunitária que irão influir na sua atividade econômica: que animais procurar, quem na sua aldeia pode ou não comer tal ou qual animal, quais as conseqüências de suas ações rituais anteriores à caçada e uma série de outras considerações, aparentemente independentes da produção econômica, mas cuja importância é decisiva no seu desempenho. O "trabalhador" numa sociedade indígena não é compartimentalizado; ele é um ser social total em todas as esferas da sua vida.

Um bom exemplo disso é a "caçada ritual" entre os Sanumá, subgrupo Yanomami do norte do território de Roraima. Alguns dias depois que nasce uma criança fisicamente normal e em condições sociais também normais, o pai vai caçar. O animal que ele matar será o epônimo da criança, isto é, esta será chamada pelo nome dado à espécie da caça morta. Ou seja: o pai sai a caçar literalmente o nome de seu filho ou filha recém nascido! Essa caçada se reveste de grandes cuidados, pois é misticamente sobrecarregada de perigos, em parte porque a criança receberá do animal, além do nome, também um certo espírito que se instala em seu corpo. O pai deve, pois, evitar ao máximo manusear o animal abatido; carrega-o para a aldeia pendurado em cipó e passa-o imediatamente para os seus afins, ou seja, os parentes consangüíneos de sua mulher. Nem ele nem ela podem comer a carne, sob pena de porem em risco a vida da criança. São esses afins do caçador que irão consumir a carne e dar o veredito: se a carne for de boa qualidade, a criança viverá; senão, morrerá.

Vista pelo prisma puramente economista, essa caçada não representa mais do que uma maneira floreada de fornecer carne à aldeia. Empobrecedora como seria tal visão, pois, quando muito, relegaria à categoria de detalhes aspectos culturais muito importantes para aqueles que vivem essa cultura, ela também teria o defeito de minimizar a interdependência das esferas da vida indígena. O caçador Sanumá não pode ignorar - e nem ele nem ninguém ignora - que tem responsabilidades para com o novo filho e para com as entidades sobrenaturais, que requerem ações e atitudes especiais, mesmo em contexto que rotineiramente são tão prosaicos como uma caçada. O caçador Sanumá satem tudo isso em mente quando procura matar um animal que não represente tabu como alimento e que seja adequado à ocasião por ter um nome apropriado para um ser humano, o que nem sempre ocorre.


Sendo tão intrinsecamente ligado a assuntos não-econômicos, o trabalho em sociedades indígenas não representa, estritamente falando, o lado oposto, a contrapartida do lazer. O sistema de produção é organizado de tal maneira que permite a quem produz a liberdade de manifestar convivilidade, tendências estéticas, gratificação física ou o que quer que esteja envolvido em atividades de lazer, isso no processo mesmo de produzir. Assim, como não existe uma divisão social entre classe ociosa e classe trabalhadora, também não existe uma divisão temporal entre tempo produtivo (trabalho) e tempo recreativo (lazer).

Um grupo de caçadores numa trilha da floresta não está compelido a obedecer a um horário fixo, dentro do qual é proibido divergir da atividade central, parar de trabalhar ou conversar com os companheiros. Eles têm a liberdade incontestável de trocar comentários, de parar para descansar quando assim o decidem, de interromper a caçada qual algo interessante surge - como, por exemplo, a descoberta de mel ou pegadas de inimigos no caminho. De maneira semelhante, um grupo de mulheres que vai à roça fazer limpeza ou buscar mantimentos não se limita apenas a isso. Grande quantidade de informações e desabafos é trocada no caminho, como também são coletados produtos como rãs e cipó para fazer cestas. Uma expedição rotineira de caça ou uma ida à roça podem consumir a maior parte do dia, isso porque, comumente, essas saídas envolvem atividades multivariadas.

Isso não quer dizerr que os índios sejam indolentes e não gostem de fazer esforço. Só quem participou de uma caçada, ou de uma expedição de coleta, ou do cuidado de uma roça, sabe avaliar o grau de exaustão física de tais atividades. Há quem diga, mal informada ou mal-intencionadamente, que caçar, pescar, coletar não é trabalho; é esporte. Se por trabalho entendem a rotina alienante do assalariado, definida pelo exercício do esforço físico ou mental em troca de remuneração monetária, o qual, afinal, acaba resultando no esfacelamento do trabalhador como ser social total, então o termo "trabalho" não é adequado para descrever o processo produtivo das sociedades indígenas e talvez necessitemos de um outro vocábulo. Certamente, o significado da palavra "trabalho", como ele é entendido na sociedade ocidental, não é inteiramente aplicável a essas sociedades. Enquanto entre nós apenas uns poucos privilegiados podem dizer que gostam do que fazem, que seu trabalho é um prazer, nas sociedades indígenas há sempre um grau maior ou menor de gratificação social na maioria das atividades produtivas. Naturalmente, há tarefas maçantes e pesadas, como cortar e carregar lenha, cobrir um telhado ou ralar mandioca horas a fio. Porém as pessoas se desembaraçam desses encargos geralmente em boa companhia, em meio a conversas animadas, piadas ou cantigas descontraídas. Também há frustrações, como uma caçada sem caça abatida mas os efeitos delas não chegam a se comparar com os de um dia perdido no trabalho da fábrica, com salário descontado. Essa experiência está reservada àqueles indígenas que se vêem obrigados a recorrer ao sistema salarial dos brancos, quando suas terras lhes foram tomadas parcial ou totalmente, impossibilitando a continuidade de um sistema que se reproduziu por tempo imemorial.

Poderíamos dizer que nas sociedades indígenas cada um estabelece o seu "fim de semana" próprio em qualquer dia que lhe aprouver. Se um caçador trouxe bastante carne para casa ontem, ele não precisa voltar a caçar hoje ou amanhã. Se uma mulher foi à roça e trouxe um carregamento de vários produtos e passou hoje o dia inteiro ralando a mandioca que será transformada em beiju nos próximos três ou quatro dias, ela não necessita voltar à roça amanhã. Entretanto, a imagem do fim de semana não é totalmente válida, pois quem não vai à caça, nem à pesca, nem à roça tem vários outros afazeres que aguardam sua vez, além do descanso puro e simples: um novo conjunto de arco e flechas para polir e emplumar; uma nova cabaça para a água; uma panela de barro para ser trocada na próxima festa; uma nova rede para o filho que está crescendo e precisa de sua própria rede para dormir; uma cesta nova para carregar lenha; um balaio cheio de algodão bruto para desfiar, ou uma sessão xamânica para a cura de um doente. Tudo isso é feito sem pressa, sem pressão, entrecortado de períodos de repouso solitário ou interação informal com outros.


É claro que nem tudo é trabalho, nem os índios passam o tempo todo ocupados com a chamada "luta pela sobrevivência", sem tempo para mais nada. Existem, certamente, jogos, danças, rituais diversos. Porém eles não são destinados a compensar horas de faina diária e restabelecer as forças dos "trabalhadores" para que posssasm continuar a trabalhar; são parte de um todo cultural no qual entra, também, a produção econômica. A periodicidade dessas atividades não está direta ou indiretamente ligada à rotina do trabalho, mas sim a considerações de ordem ecológica (como as festas sazonais da colheita), de ordem religiosa (como uma sessão xamânica propiciatória), ou está relacionada à maturação físico-social das pessoas (como rituais de puberdade, de nominação ou exéquias funerárias), à conveniência de reencontros sociais entre aldeias ou entre grupos distintos (como certos torneios verbais ou corporais), à importância política de certos indivíduos ou facções, etc, etc. De fato, muitas vezes essas ocasiões demandam tal esforço produtivo, na preparação de alimentos e outros bens, que seriam contrapoducentes se o seu objetivo fosse o descanso do trabalho.

Lazer e trabalho não são, portanto, facilmente separáveis nas sociedades indígenas. Se é falsa a noção de que os índios estão eternamente ocupados à procura de alimento, sem tempo para atividades mais criativas, também é falsa a idéia comumente ventilada de que o índio é preguiçoso, não trabalha, vive no ócio.

Baseado em texto de Alcida Rita Ramos.

segunda-feira, 15 de março de 2010

AMÉRICA LATINA

A América Latina é um caleidoscópio: nenhuma analogia lhe fará justiça e não tem sido fácil a construção de uma perspectiva pessoal acerca deste vasto continente e de seus povos. O turista vê somente a estreita realidade que lhe é apresentada, e raramente terá uma percepção justa, correta e abalizada da realidade latino-americana. Os repórteres internacionais, por sua vez, focalizam simplesmente aqueles assuntos que servirão de caixa de ressonância para as suas agências: criminalidade, violência na cidade e no campo, insegurança, instabilidade econômica, disparidade social, favelização dos grandes centros urbanos, etc. Mui raramente terá o turista ou o jornalista internacional condições de entender a complexidade histórica, social e cultural da América Latina, sua origem pré-colombiana e seu legado hispano-lusitano.

Cada um tem sua própria perspectiva, seja ele um historiador marxista, religoso ou secular. Mas espera-se que o pesquisador faça uso de todos os recursos disponíveis para entende-la e compreender seus povos. O problema é que trabalhamos já munidos de uma série de pressuposições ou pré-entendimentos, que conduzem à falha na leitura histórica holística sobre a América Latina. Willian Taylor, da Universidade de Dallas, sugere quatro razões para essa falha:
1 - a percepção histórida dos fatos já preestabelecida;
2 - a percepção histórica arraigada nos valores da classe média ou dominante, ou de um certo contexto socio-econômico;
3 - a percepção histórica autoprotecionista, visando salvaguardar o status quo de um determinado grupo político ou social; e
4 - a percepção histórica exacerbadamente influenciada pelos valores culturais dos povos europeus e do hemisfério norte.

Alguém que viaje pela região , mesmo que seja num só país, pode ser capar de concluir que não existe somente uma única América Latina, mas muitas. Pode-se focalizar suas múltiplas raças: espanhóis, portugueses, índios, europeus, africanos e orientais, numa profunda mistura genética que faz a América Latina ser o que ela é hoje. Pode-se constatar a sua variedade geográfica: das áreas desérticas até suas florestas tropicais, dos vastos pampas às altas cordilheiras dos Andes, que corta quase toda a sua extensão. Pode-se pensar, também, em termos de regionalidade: México, no morte, as nações caribenhas, os países da América Central, as nações andinas e os países do Cone Sul, incluindo Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.

Não existe somente uma língua falada por todos na América Latina. O espanhol é a língua oficial na maioria dos países (cerca de 320 milhões de habitantes). O idioma inglês é a língua falada em alguns (Bahamas, Guiana Inglesa, Belize e Jamaica) e o português no Brasil. Contudo, existem ainda cerca de 670 línguas e dialetos falados em toda a América Latina. A maioria absoluta dessas linguas já era falada antes de Colombro pisar nas terras do "Novo Mundo". A Guatemala, por exemplo, tem 25 línguas diferentes. Se atentarmos para o elemento socio-econômico como fator determinante, há várias Américas para confundir o observador: há uma classe alta dominante que corresponde a 3% a 5% da população; uma classe média correspondente a 15% e uma classe baixa composta por 80% da população. Inserida na chamda classe baixa, há uma faixa de 20% de miseráveis, ou seja, aqueles que vivem em extrema pobreza.

O renomado escritor colombiano Gérman Arciniegas faz a seguinte assertiva sobre os vários grupos étnicos que formam o mosaico latino-americano:

"A América está, hoje, dividida em quatro grupos étnicos distintos: Hispano-americanos, América portuguesa (Brasil), América inglesa (EUA) e América anglo-francesa (Canadá). Quando os quatro processos históricos são claramente delineados, um melhor entendimento de suas diferenças e semelhanças torna-se possível. Por causa de uma série longa de experiências (três séculos de dominação espanhola), os habitantes da América hispânica falam espanhol e, junto à língua falada, são predominantemente católicos como os seus colonizadores. A América portuguesa do Brasil recebeu como legado de seus colonizadores a língua portuguesa, o catolicismo romano e uma cultura diversificada de vários povos: negros, índios e europeus imigrantes nos últimos séculos. A América inglesa dos Estados Unidos construiu a sua língua e cultura herdando dos primeiro colonos de suas treze colôni
as. O povo da América anglo-saxônica do Canadá fala duas linguas: inglês e francês. O Canadá está incluido entre os cinco maiores países do mundo, com uma população bastante pacífica e homogênea. Para nós, estas quatro Américas são quatro processos numa massa continental, caminhando juntas em trilhas separadas na busca da mesma coisa: liberdade!"

Como, então, esta vasta área foi batizada com o nome de "AMÉRICA"? Na verdade, o título originou-se de um italiano que seguiu a Colombo, segudno historiado por Donald Marquand Dozer: "Entre 1499 e 1502, um homem de negócios de Florença (Itália) possuindo negócios em Sevilha (Espanha), Américo Vespúcci, realizou três viagens no curso das quais chegou à foz do rio Amazonas e explorou toda a costa da América do Sul, desde a Venezuela até o rio da Prata (Argentina). Suas descobertas tornaram-se notórias em toda a Europa da época, e assim as terras do novo mundo passaram a ser chamadas de América, em sua homenagem".

Os franceses, por sua vez, começaram a chamar os povos de língua hispânica e portuguesa de "latino-americanos" em virtude das línguas faladas, as quais são de raiz latina. Alguns outros nomes foram sugeridos, tais como "América Hispânica" ou "Ibero-América". A
realidade é que nenhum desses nomes é completamente abrangente e adequado para entender e descrever a rica complexidade histórica e cultural dos povos que compõem o que é chamado hoje de AMÉRICA LATINA. Todos esses nomes alijam completamente a herança dos povos originários.

Gérman Arciniegas ressalta alguns elementos que cimentam a história do
s povos latino-americanos: "Uma herança comum pré-colombiana, a conquista hispânico-portuguesa, o período colonial e os movimentos de independência, a herança religiosa da Igreja Católica Romana em todos os segmentos da vida, um misticismo religioso muito forte oriundo dos diversos povos originários, uma profunda diversidade cultural e musical, com seus ritmos eletrizantes, uma comunicação de gestos e de linguagem mais dinâmica e agressiva, tornando-os uma cultura tocável".

Baseado em texto de Antônio José do Nascimento Filho.